A justiça como extensão das paixões
Hume desvia-se da ideia banal de que no combate entre razão e paixão, deve-se dar preferência à razão, posto que o homem só é virtuoso quando se conforma a seus preceitos e quando regula suas ações pela razão. A justiça, pare ele, não será descoberta mediante um raciocínio demonstrativo, mas encontrada no próprio íntimo do sujeito, na experimentação de um sentimento ou de uma impressão. Isso porque a razão é incapaz de produzir uma ação ou mesmo causar ou impedir um ato volitivo, sendo essa apenas uma tarefa da paixão; a razão seria incapaz de, por si mesma, ditar leis que todos os homens, em todas as épocas, saberiam conhecer e estabelecer seus enunciados. Assim, as leis que versam sobre a posse, o cumprimento das promessas, ou quaisquer outras que garantam a paz social, não se fundam na razão, mas seriam impulsionadas pelas paixões – aquilo que há de mais vigilante e inventivo no homem.
Classicamente a justiça é compreendida como uma disposição natural da alma através da qual o homem pode fazer e desejar o que é justo, mas para Hume a justiça será entendida como uma virtude artificial, construída como um remédio para os inconvenientes humanos da vida coletiva. Isso porque tendo o homem inúmeras carências e necessidades e não dispondo de meios suficientes para satisfazê-las, ele encontra na vida em sociedade uma força, uma capacidade e uma segurança adicionais que se torna vantajosa.
Contudo, o amor que cada pessoa sente sobre si mesmo, que é maior do que o amor que sente sobre qualquer outro, o que Hume chama de parcialidade, é um inconveniente a essa associação. A parcialidade se traduz no fato do homem se apaixonar primeiramente por seus pais, seus próximos e semelhantes e assim a família é explicada pela simpatia: simpatia dos pais por sua progenitura e simpatia dos parentes entre si.
Ainda que a sociedade seja na origem uma reunião de famílias, o próprio das unidades familiares é não se adicionarem, mas se excluírem, isto é, serem parciais e não partícipes, reforçando a ideia de que a generosidade humana seja, por natureza, limitada.
Da não identificação dos interesses particulares nascem os conflitos e a principal perturbação da sociedade vem dos bens externos, adquiridos pelo trabalho e pela sorte, que não existem em quantidade suficiente para suprir os desejos de todos, ficando assim expostos à violência, podendo ser transferidos ao outro sem sofrer qualquer perda ou alteração.
Ocorre que não há na mente humana um afeto tão poderoso a ponto de, por si só, frear essa parcialidade. Assim, não será um imperativo da razão que estabelecerá a justiça, mas uma necessidade sentida, uma simpatia cunhada artificialmente. Uma paixão para vencer outra, porque essa avidez de obter bens e posses, para nós e nossos amigos mais íntimos, é insaciável, infindável, universal e destrutiva para a sociedade. Não há praticamente ninguém que não seja movido por ela, e não há ninguém que não a tema quando ela atua sem restrições, entregue a seus movimentos primeiros e mais naturais. Ao se projetar as paixões para além dos seus limites originários, cria-se o mundo da cultura, um mundo artificial onde a conversação é possível, a pacificidade substitui a violência, a propriedade substitui a avidez. Trata-se da construção de uma artificialidade onde se integram fins particulares, permitindo que interesses diversos possam se satisfazer e se realizar.
As teorias contratualistas consideraram a natureza humana egoísta e pretenderam que o problema social deveria ser o da limitação dos direitos naturais do homem. Na limitação ou mesmo na renúncia a esses direitos o egoísmo humano seria contido e nasceria o contrato social. Hume ao invés de propor uma limitação do egoísmo e dos direitos naturais a ele correspondente, dirá que a questão da justiça é um ultrapassamento das parcialidades, indo o homem de uma simpatia limitada a uma generosidade ampliada.
O problema então da justiça é como fazer para estender as paixões, como integrar as simpatias, levando o homem a experimentar uma parcialidade ampliada, ou seja, dar às paixões uma extensão que por si mesmas elas não têm. Ao invés de limitações contratuais e constrangimentos legais, a justiça seria uma experiência de ampliação do sujeito, uma experiência de integração e de afirmação. Daí que a essência da sociedade não é a lei, mas a instituição, posto que a lei marcada que é pela limitação, estabelece apenas um aspecto negativo, limitativo ou alienado da sociedade.
Hume vai dizer que pela simpatia o homem pode ter uma concepção tão viva de uma situação que chega a fazer dela o seu próprio interesse, tornando-se sensível a dores e prazeres que não lhe pertencem ou mesmo que não tenham uma existência real no instante presente.
Inventar artifícios que formem outros sentimentos morais, políticos e jurídicos é uma necessidade da vida em coletividade. Se experimentarmos essa ampliação das paixões seremos justos e aí, pela força da simpatia, nos alegraremos com o prazeres do outro e nos entristeceremos com suas aflições. Nada que lhes interessar nos será indiferente.