A construção do tempo: Sujeito e temporalidade
COMENTÁRIO /
Benilton Bezerra Jr.* //
Comentário que segue a palestra de Márcio Tavares D’Amaral, A construção do tempo: sujeito e temporalidade.
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Penso que o meu papel aqui talvez seja o de contribuir para que a gente possa debater as ideias que o palestrante apresentou.
Para isso vou tentar sublinhar o que me parece mais propício para um debate, levando em conta que, se todos estamos aqui numa segunda-feira à noite, é porque, além de algum gosto pela especulação das ideias, temos também uma preocupação com o tema da palestra dessa noite: o sujeito e a temporalidade.
O primeiro ponto para o qual gostaria de chamar atenção está no início do que o Márcio abordou em sua fala, que diz respeito à própria natureza daquilo que nós chamamos de sujeito. Em psicanálise há muitas maneiras de se definir sujeito, mas não é o caso de discutirmos aqui essa questão e creio que ninguém discordará da ideia de que uma das características do que chamamos de sujeito, do que a gente chama de experiência subjetiva, diz respeito ao tempo.
Ninguém nasce Sujeito na história do Gênesis. Inclusive, como o Márcio bem salientou, Sujeito começa com o tempo, começa verdadeiramente com o início da história propriamente humana, a história das ações, dos sonhos, a história dos feitos humanos.
Se isso é verdade no caso da espécie e se tomamos a Bíblia como uma metáfora, também acontece no plano do indivíduo. Qualquer um de nós quando nasceu era um sujeito em potência. O que nos transforma em sujeitos é o fato de termos uma habilidade que outros animais, pelo menos por enquanto, não têm; de termos uma relação especial com a vida, com nosso próprio corpo, com a existência, com os semelhantes, uma forma de relação que é atravessada por significação, e porque somos dotados de linguagem é que somos capazes de imaginar futuros.
Interrogar-se sobre o passado, refletir sobre o que somos, a possibilidade de contarmos histórias sobre nós mesmos, de termos uma narrativa sobre cada um de nós, individual e coletivamente, é isso que nos faz sujeitos.
Contrastando com o que é a negação de tudo isto, vou dar dois exemplos.
O primeiro é um caso clínico observado por Oliver Sacks, um neurologista inglês que tem vários livros publicados. Ele estuda pacientes com graves perturbações neurológicas e acentua em seus trabalhos, entre outras coisas, a capacidade de criação que a patologia tem.
Ele menciona o caso de um paciente que nos anos 1970 sofreu um AVC e, por conta do problema neurológico acarretado pela doença, perdeu a capacidade de processar-se no tempo. Aquele indivíduo vive 30 anos depois do acidente como se ainda tivesse em 1970. Ele se vê como uma pessoa de ‘vinte e poucos’ anos e só se dá conta de que isso não é realidade quando o espelho aparece na frente dele e, finalmente, se vê como um senhor de mais de 50 anos.
Vejam como um problema neurológico impede que o substrato daquilo de que nós somos feitos permita que aquele organismo continue existindo no tempo para si próprio. Esse é um exemplo de como uma multiplicidade de condições são necessárias para que essa experiência de ser alguém, de ser um sujeito no tempo, preservado e mantido, exige em primeiro lugar essa incorporação de que não somos seres etéreos, não somos seres transcendentes, encarnados, somos seres participantes da natureza. Somos, como disse o palestrante, uma partícula da natureza, mas uma partícula que tem, ao contrário de pedras, asteroides e planetas, a capacidade de pensar, refletir, duvidar, interrogar, prometer. É isso, essa capacidade, experiência e forma particular de estar no mundo que caracteriza ser um sujeito.
O segundo exemplo, que, por contraste, talvez ajude a elucidar e a ilustrar melhor nossa questão, vem do filme Blade Runner, do Ridley Scott. É um filme sobre androides que começam a se fazer perguntas que não deveriam: de onde vieram? Por que é que eles têm que viver só quatro anos? Que direito tem o seu programador de determinar a duração da vida deles? Também começam a exibir comportamentos singulares e inesperados, mostram-se imprevisíveis ao se apaixonarem, coisas que não estavam previstas e começam, claro, a se interrogar sobre sua própria existência.
É como se aquelas máquinas, ao fazerem os questionamentos que nós humanos nos fazemos, exibissem aquilo que nos diferencia e que nos torna humanos, essa qualidade que não está no nosso corpo e que não é nada mais do que isso que a gente chama de subjetividade, de sujeito. E falar de sujeito e de subjetividade é falar de um agente que se move, se pensa e é capaz de se construir no tempo. Logo, tudo aquilo que de alguma maneira interfira na forma de percepção do tempo interfere na sua maneira de ser um sujeito.
Em todas as culturas a percepção do tempo varia. Já se falou dessa percepção no mundo grego e viu-se que a experiência do tempo para um grego era completamente diferente da nossa. Talvez fosse impossível para um homem grego, e mesmo para o medieval, imaginar o que é a sensação e a experiência de calcular minutos, segundos, coisas que para nós são completamente banais.
O homem moderno já se habituou a calcular quantos minutos gasta por dia para sair de um ponto e chegar a outro, o cálculo milimétrico do tempo se incorporou à nossa sensibilidade de tal modo que nós somos capazes de experimentar o tempo com extrema minúcia. Ao contrário de outras culturas, onde o tempo é sentido mais do que pensado, ele é sentido como algo cíclico, que se repete, que não é passível de mensuração objetiva.
O tempo abstrato, o tempo mensurável que a gente mede nos relógios, nos cronômetros, é uma invenção recente na história da humanidade. É claro que essa invenção teve muitas consequências, entre elas a possibilidade de criação de uma forma de ser sujeito, digamos, uma forma subjetiva típica de nós modernos. Só seres humanos dotados dessa sensação – eu digo sensação porque isso não é apenas uma representação –, só seres humanos dotados de uma sensibilidade para o mundo e de uma espécie de equipamento conceitual ou representacional, um modo de ver o tempo como os modernos do século XVIII tinham, somente seres assim eram capazes de imaginar uma revolução como a francesa ou a americana, de derrubar o que havia antes e dizer ao mundo que a sociedade vai, de agora em diante, ser aquilo que nós achamos que deva ser.
O futuro não vai mais ser efeito de causas externas, vontades divinas, coisas aleatórias ou exercício de poder dos nobres e sim aquilo que nós, o povo, consideramos que deva ser, o futuro como escolha dentre um leque de possíveis, nos quais, nós, os humanos, vamos agir para construir futuros melhores. Essa ideia é uma invenção recentíssima na história da humanidade e, de fato, eu concordo com o Márcio: não há nenhuma garantia de que isso se preserve eternamente, é preciso que a gente tenha os olhos abertos para ver quais são os riscos que se põem a essa forma de ser humano, essa forma de experiência objetiva que construiu um sujeito, um sujeito capaz de se pensar como herdeiro do passado e como projetor, como construtor do futuro.
Um outro ponto que acho superimportante enfatizar na fala do Márcio é de que também a palavra sujeito implica duas dimensões: uma, a de assujeitamento, isso é, nós na maneira de sentirmos, pensarmos, sonharmos, imaginarmos, refletirmos o nosso tempo, nós como testemunhas do mundo em que vivemos. A não ser os grandes gênios, aqueles que são capazes de visualizar o que ninguém viu, dotados da ideia que ninguém teve, capazes de escrever de um jeito que ninguém escreveu, nós, de uma maneira geral refletimos o contexto em que surgimos. Por outro lado, a própria palavra é dúplice na sua carga semântica, pois implica também automaticamente a possibilidade que nós temos e os cangurus não têm, de se alçar acima desses contextos que nos determinam, de inventar realidades novas, de inventar novas vidas individual e coletivamente.
Isso implica um ponto que o Márcio escolheu de uma maneira muito poética, lembrando Tales, mas vou resumir, dizendo o seguinte: ser um sujeito significa nesse sentido ter um ponto de vista, estar em algum ponto a partir do qual o mundo se apresenta, ser capaz de se colocar frente aos semelhantes, frente a si próprio, frente aos outros, configurando a realidade do mundo, dos outros e de si próprio de uma determinada maneira. Ter um ponto de vista, esse ponto que o Márcio, digamos, qualificou como aquele onde eu digo que o meu desejo de multiplicidade basta, aquele ponto onde eu já não estou imerso na multiplicidade, nem estou no ponto de vista de Deus, porque esse não nos é permitido a nós humanos, e eu estou num ponto de vista humano, estou no ponto de vista singular pessoal. Essa é, portanto, uma outra característica fundamental para a noção de sujeito, não só a inscrição no tempo, de se sentir, digamos, agente do tempo, mas a de ter um ponto de vista a respeito dessa agência.
Bem, acho que com isso ressaltei o que penso seriam as coisas mais fundamentais para a discussão da questão do sujeito e a temporalidade de hoje. Haveria muito o que falar também sobre o que o Márcio levantou quanto à natureza, digamos, de sonho da realidade e do eu, da experiência do eu, da experiência da realidade, mas essas questões ficam para um eventual debate.
Gostaria de finalizar minhas rápidas observações, abordando um pouco o que penso serem, talvez, os embaraços que o sujeito que o Márcio descreveu vive no mundo da contemporalidade. É claro que terei que falar de uma maneira mais afirmativa do que argumentativa, mas eu queria dizer que estou inteiramente de acordo com o Márcio ao qualificar os séculos XX e XXI como tendo entre as suas características principais a tecnologia, a ideia de que algo que apareça e que é eficaz por si só exibe sua justificativa. É típica desse mundo contemporâneo: em nenhuma outra experiência humana ocorre que algo simplesmente por funcionar já dispensa justificativa quanto ao seu uso. Esse é um procedimento típico da sociedade contemporânea e que evidentemente coloca em exclusão toda dimensão normativa, toda dimensão discursiva, toda discussão de que a ideia de sujeito implica na agência do mundo. Uma das características, além dessas que o Marcio apontou, do surgimento da tecnologia, como essa função entre logos e teknè, cuja consequência principal, penso, é a questão da missão, ou por outra, para que vamos usar tal tecnologia e quais são as consequências de se usar tal técnica.
Para que queremos, por exemplo, clonagens terapêuticas, quais são as consequências de utilizarmos as biotecnologias que temos hoje explodindo aos nossos olhos?
Ao invés de, como fazem boa parte dos grupos de bioéticas, simplesmente nos preocuparmos em normatizar os usos dessas tecnologias, deveríamos estar nos perguntando que tipos de consequências humanas surgirão dada a ação dessas tecnologias e, ademais, qual tipo de futuro queremos construir e que tipo de tecnologia precisaríamos desenvolver para a construção desse futuro.
É de certa maneira essa discussão quanto ao futuro que está em desuso. Nesta plateia temos pessoas de diversas gerações e há aqui pessoas de gerações que não são tão velhas assim, que experimentaram em sua juventude certa atmosfera. Nos anos 1960, 1970, ser um brasileiro, pelo menos, não só ser um francês ou ser americano, era de alguma maneira construir-se como sujeito, tendo um ponto de vista, sobretudo. A característica de um jovem dos anos 1960, 1970 era saber demais, era ter opinião demais, era ser rebelde contra tudo e contra todos, contra o sistema, era achar que sabia qual seria o melhor futuro para si, para o semelhante, para o Brasil e para o mundo.
Claro que houve coisas boas e coisas ruins como decorrência disso, mas quero chamar a atenção para a rapidez com que, em 20 ou 25 anos, essa atmosfera em que a juventude era, digamos, um caldeirão de ideias, de inquietação, de repente se transformou no que a gente vê hoje. Onde é que estão os nossos rebeldes, onde é que estão os nossos inventores do futuro, onde é que estão aqueles sujeitos que se arvoram na antecipação do amanhã? Que Brasil nós queremos? Que mundo temos? Esse tipo de pergunta que evidentemente faz parte do exercício cotidiano milimétrico do sujeito no tempo – e esse o ponto que acho que mais vale chamar a atenção –, é que vai um pouco se obscurecendo pela força fantástica que a tecnologia vem apresentando. Uma explosão tecnológica, e no caso da biotecnologia com efeitos impressionantes sobre a nossa vida cotidiana. E pela velocidade com que essas transformações se apresentam, nos impondo um ritmo vertiginoso, o tempo como projeto de realização vai se diluindo.
De maneira muito esquemática e quase caricatural, diria que nós vivemos hoje uma situação em que essa dimensão processual do tempo vai dando lugar a importantes fugas do instante, do momento. Tendo o consumo se tornado projeto imediato, a densidade mesmo do que é sujeito se esvai. Já não se questiona muito – nem aos jovens e nem a nós mesmos, sobre que tipo de vida queremos no futuro para nós, para os nossos semelhantes, para o nossos irmãos, para meu país, para meu planeta. Somos instados, ao contrário, a correr atrás do tipo dominante de imperativo de consumo porque, nas regras de construção da experiência subjetiva atual, nos construímos cada vez mais pelos objetos que somos capazes de ter e exibir do que pelos ideais e pelos traços psíquicos, morais, pelos traços públicos que podemos colocar como nossos. De certa forma, importa muito pouco qual história vamos poder construir cada um de nós para nós mesmos; muito mais importará que tipo de eficácia competitiva seremos capaz de exibir, que tipo de crescimento patrimonial, que tipo de ascensão social, que tipo de sucesso poderemos exibir. É evidente que isso não nos transforma em animais, mas nos transforma em sujeito de um tipo especial, de uma certa forma de experiência subjetiva que não é muito promissora. Então, além da dimensão processual do tempo dar lugar ao instante fugaz, é como se a gente tivesse também diminuição – não há aqui qualquer novidade –, da força dos ideais coletivos e individuais na vida, no cotidiano e na emergência da importância dos objetos.
Isso equivale, no plano de experiência individual, a uma ascensão cada vez maior da importância das sensações, da busca do prazer das sensações, e não é à toa que as drogas têm uma importância tão grande, não só as drogas ilícitas como a droga lícita, pois os números das indústrias farmacêuticas são impressionantes. A projeção que se faz hoje em dia, segundo analistas independentes, é que o mercado farmacêutico daqui a cinco ou dez anos vai ser da ordem de 5 trilhões de dólares no mundo e isso só vai crescendo na medida em que nos seja cada vez mais simpática a ideia de que é muito razoável simplesmente acabar com a dor, qualquer dor da existência. A ideia de que sofro e a ideia de dor vão prevalecendo sobre a ideia de sofrimento e isso não é um simples jogo de palavras, porque a noção de sofrimento implica conflito, implica uma distância entre o que você vive e o que você gostaria de viver, entre aquilo que você vive e aquilo que você imagina seria seu ideal de vida, implica uma distância que inevitavelmente traduz uma instrução temporal. A dor – não pensemos em uma dor de dente, não se trata de uma temporalidade, pois a dor de dente a pessoa acaba com ela e pronto –, pois bem, o que estou sugerindo é que na experiência subjetiva contemporânea cada vez mais se avolumam as forças que nos fazem viver a existência e viver os abalos da existência em termos de dor, a ser simplesmente enfrentada, sem o questionamento do sofrimento, sobre o qual deveríamos nos interrogar, pois é o que nos faz mudar de vida, ao contrário da simples dor que nos impele à analgesia. Trata-se de novo de mais um processo pelo qual a dimensão forte do sujeito vai se esmaecendo, estando muito mais presente a ideia de organismos humanos capazes de viver uma vida de prazer. A utopia do bem- estar, a utopia de uma sociedade do bem estar, que, nos anos 1930, era cada vez mais uma faceta do imaginário coletivo, dá lugar à ideia de que uma boa sociedade será aquela onde ninguém sofra.
É bem possível que isso venha a acontecer. O problema é que essa sociedade não será uma sociedade de sujeitos como esses sobre os quais estamos discutindo.
Outra maneira de dizer como o tempo é importante no contemporâneo, um ponto que o Márcio tocou, é que o tempo é o elemento que configura o mundo, que configura os indivíduos. No nosso tempo ele, de alguma forma, é também uma maneira de agenciamento da reprodução das formas instituídas de poder da sociedade. Em outras palavras, como foi possível a Revolução Francesa, americana, russa e outras, somente com sujeitos capazes de se interrogar em relação ao futuro e capazes de se verem como construtores do mundo.
Pois bem, creio que boa parte das pessoas que vivem hoje no planeta pense na África ou no Brasil; pense em um terço dos brasileiros que não entenderiam rigorosamente uma palavra do que nos estamos falando aqui, porque não tiveram acesso mínimo à educação e a um mínimo de bens culturais que produzimos. Esses, de certa maneira, estão excluídos do tempo, porque é muito difícil que eles se sintam capazes de se projetar nele.
Em boa parte, certas formas de violência que vemos atualmente no meio urbano têm uma raiz, creio, nessa experiência psicológica, pois quem não tem nenhum futuro também não se importa com o presente. Se o indivíduo não está inscrito no tempo, o presente é a antecipação do fim; a qualquer instante pode-se morrer e, todos os dias, acordar é enfrentar a possibilidade de morrer. O imaginário do futuro não está, pois, presente em todos os nossos irmãos brasileiros, pois muitos estão excluídos dessa possibilidade.
Pensemos nas populações de Ruanda e do Lesoto e imaginemos essas pessoas sonhando o futuro do país e o seu próprio futuro. É impensável. De certa maneira, então, a exclusão de contingentes enormes de pessoas da possibilidade de pensar-se no tempo é uma das formas contemporâneas de opressão política e de exclusão social.
É claro que em todas as sociedades houve pessoas que estavam marginalizados, excluídos. Afinal, o aldeão medieval não tinha a menor possibilidade de mudar a estrutura social indiana, por exemplo, não podia sonhar com a possibilidade de acabar com o sistema de castas. O fato é que nessas duas situações o problema é muito diferente da que vive um excluído social no Brasil de hoje.
Na Índia, a posição do excluído é percebida como efeito de uma trajetória no tempo muito além da sua existência individual, quer dizer, é a trajetória cármica que faz com que ele imagine o futuro que ultrapassa sua vida individual. Há, pois, um manto simbólico de significação que dá um sentido para sua exclusão. O mesmo poderíamos dizer de culturas tradicionais no Ocidente onde a religião imperava e dava significação e plausibilidade a este vale de lágrimas. A promessa de um mundo melhor sempre teve forte apelo no mundo contemporâneo. Então, essa forma de exclusão do tempo dos que são irrelevantes é talvez uma das maneiras pelas quais tempo e sujeito estejam hoje juntos. Mas não pensemos só nos excluídos social e economicamente, porque se pensarmos, conforme salientou o Márcio, que a força da ideia de sujeito é a sua inscrição no tempo, quando somos cada vez mais instados a viver na fugacidade do instante, de forma otimizada no consumo incessante de bens que são substituídos, porque a obsolescência dos bens é parte da indústria que mantém a roda econômica girando, quando estamos nesse movimento, de certa maneira também estamos excluídos do tempo, aprisionados no instante imediato. Já não nos sentimos herdeiros de tradições porque nos consideramos cada vez mais como indivíduos, dotados da liberdade absoluta; assim, não devemos nada às tradições e nos sentimos muito pouco responsáveis pelas gerações futuras. É uma outra maneira de imaginar ou pensar o que seria a exclusão do tempo como uma forma contemporânea de agenciamento das desigualdades sociais.
Concluindo, a ideia final do Márcio de que a noção de fraternidade ou a noção de solidariedade é crucial no debate ético é também crucial no debate político. Chamemos assim: a repolitização do tempo. O que isso significaria para não ser uma frase só de efeito? Uma das tarefas políticas mais importantes que temos hoje é reintroduzir certas questões que a força da tecnologia tem posto de lado.
Questões simples do tipo: que futuro queremos? Que tipo de vida eu quererei ter tido quando a minha acabar? Que tipo de vida eu vou querer para as gerações que me sucederão, meus filhos, meus netos? Que tipo de responsabilidade eu individualmente tenho, a minha geração tem, o pais que eu vivo tem, na sustentação de um mundo capaz de propiciar mais liberdade, mais equanimidade e mais solidariedade?
Repolitizar o tempo é trazer de novo a ideia de sociedade, de política, de discussão de bem comum para o centro da cena. Retomar, portanto, o que estava no início da discussão de hoje, a saber, a noção de que ser um sujeito da maneira como nos valorizamos nos últimos 200 anos – e não há maneira melhor até agora –, isto é, a de que todos são iguais, todos são livres, todos devem ser fraternos, todos devem se voltar para a construção de uma autonomia cada vez maior e de uma fraternidade cada vez mais sólida e que essa maravilhosa invenção não se perca, atropelada pela terrível força e pelo poder sedutor que têm todas as tecnologias.
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Perguntas da plateia
Pergunta 1 – Márcio, você arriscaria uma avaliação sobre essa nova ética a que você se referiu, isso é, que tipo e qual a natureza dessa nova ética que esse chamado sujeito do consumo esta construindo?
Márcio – Não é o sujeito do consumo que está construindo essa ética. O sujeito do consumo, se é que se pode chamar sujeito, está sendo desconstruído pelo fato de que o mundo se apresenta para ele como uma totalidade a ser consumida indiferenciadamente, onde qualquer coisa pode ser substituída por qualquer outra, onde não há falta, não há intervalo, não há tempo, não há demora, não há espera e, por isso, também não há esperança. A grande dificuldade que sinto toda vez que discuto esse assunto é que se ele está na cabeça de todo mundo é porque nos fomos programados para isso. Em geral, somos muito bons em diagnósticos e péssimos em prognósticos.
Diagnosticar os efeitos avassaladores e extraordinariamente produtivos que desenham um mundo da explosão tecnológica, nesse diagnostico nos estamos todos mais ou menos de acordo. A questão é que o número de pessoas que não vêm problema em dedicarem a sua vida ao acompanhamento do sucesso tecnológico, desejando para si nada mais do que o acesso aos processos tecnológicos, ao excesso de informação, de modo que esse jogo de processo, acesso, excesso, que, sem dúvida, é extremamente sedutor, engole a subjetividade das pessoas.
Por outro lado, essa é a positividade do nosso tempo. Como é que podemos fazer para criarmos uma instância de resistência criativa, capaz de instituir desejos de futuro, procura por futuro, esperança no futuro, sem sermos puramente reativos ou ressentidos?
Os antigos sociólogos da comunicação, lá pela década de 1930, nos Estados Unidos, já vinham trabalhando com pequenas comunidades no interior do país e lá faziam seus experimentos de laboratório. Um desses experimentos era bombardear de informação essa comunidade, uma comunidade pequena, relativamente orgânica – comunidade mesmo, no sentido alemão do seu termo –, e verificar, depois de um certo tempo, o efeito a que denominavam, tanto tempo antes, de privatização. Aquelas pessoas consideravam que a informação que tinham recebido era o mundo e agora que elas já sabiam o que era o mundo, não precisavam mais sair dali, o mundo estava dado e sabiam do que se tratava. Essa privatização do sujeito torna-se, então, um risco imenso. No entanto, o arsenal tecnológico de que dispomos ao mesmo tempo produz virtualidade de mundos diferentes. Cabe não demonizar a tecnologia; contudo, é razoável nos determos um pouco sobre a palavra demonizar, digamos ‘diabolizar’, só para lançar uma contra a outra, duas palavras importantes nesse contexto.
Diabolon é o antônimo exato de Simbolom, ou seja, o diabo é o contrário do símbolo. Símbolo é do radical grego significando junto, em sintonia com, por exemplo, em jogar junto.
Isto é, fazer o mesmo lance de duas coisas que poderiam estar separadas e que, ao se encontrarem ali juntas, significam-se reciprocamente. A operação simbólica é, por conseguinte, essa operação produtiva de um terceiro diferente. A operação diabólica, ao contrário, é a separação do que está unido. A separação que nós experimentamos entre esfera pública e esfera privada em nossa vida, que não é mais atravessada pelas pulsões do coletivo, é uma operação diabólica.
Diante delas precisamos encontrar uma maneira de resistir que não seja simplesmente demonizar, reativa e ressentidamente à operação diabólica, a operação que separa. Como é que podemos encontrar forças de criatividade, de agregação de ressimbolização na nossa cultura onde o diabólico impera? Esse é o desafio que coloco sob as palavras fraternidade e solidariedade.
No início dessa palestra disse que talvez ela consistisse em transformar um problema num enigma, depois um enigma num dilema. Nós estamos justamente dentro desse dilema; nós podemos nos tornar ressentidos e reativos e entrar para uma espécie qualquer de monastério. Ou podemos ser ativos e encontrarmos um caminho para a fraternidade. Esse caminho só pode se dar no coletivo, na proximidade com o outro e esse é o grande desafio nesse momento, quando alguns dizem que o planeta é salvável, mas há uma sobrecarga de humanidade de 90% nele. É claro que não se está advogando um genocídio de 90% dos seres humanos, mas a ideia não é estranha a esse tipo de cálculo.
Quando os defensores da globalização dizem que ela é um processo viável, eu me pergunto: viável para quem, dado que a humanidade é muito grande? Ela seria viável para 2/3 ou 3/5 da população mundial, não me recordo exatamente qual é a fração correta. Digamos que para 2/5 da humanidade ela seja viável. Claro que não se está defendendo a eliminação da África e da America Latina, mas a ideia não é completamente estranha a esse tipo de raciocínio. Então, o que tenho chamado de principio do mal na cultura contemporânea, diz respeito a essa ideia de que o outro pode perecer, e isso é terrível e diabólico. Frente a isso é que nós temos que encontrar um princípio de resistência e a esse princípio eu chamei de fraternidade.
Pergunta 2 – Benilton, pode-se dizer que a economia de mercado promoveu um esvaziamento das utopias coletivas e que o homem preencheu esse vazio com valores atribuídos aos produtos de mercado?
Benilton – É exatamente esse processo que o Robert Kurz chamou de totalitarismo de mercado. Essa característica da sociedade que a gente vive nos últimos 20 anos de império de econômico sobre o político acaba por provocar esse efeito. Vivemos hoje, mesmo depois da Guerra Fria e devido a problemas diferentes, com o risco de extinção de parte da humanidade. Mas como nada no mundo é preto ou branco, tudo é complexo e tem várias facetas, uma delas, eu diria, a do bipolarismo da Guerra Fria era o fato de todos os cantos do mundo tinha importância. A Libéria e o Lesoto, por exemplo, tinham importância política.
Essa ideia de politização do mundo desapareceu e foi substituída pela hegemonia absoluta, sem contrastes, sem confrontos, pela economia de mercado. É como se a lógica abstrata, racional e impessoal do mercado se justificasse por si só. É assim porque é assim e pronto. O que existe de riqueza, de cultura, não dá para todo mundo e então algumas pessoas vão poder ter acesso a esses bens e outras não terão, ponto. Essa a lógica perversa com a qual o mercado opera.
Isso, evidentemente, provoca um sentimento exagerado sobre a importância dos objetos e isto entra na lógica da própria construção da experiência subjetiva de cada um de nós. Mas é preciso lembrar, também, que o socialismo real contribuiu para acabar com a produção de utopias coletivas. Digo isso de carteirinha porque durante muito tempo acreditei, e fiz o que pude, para dar suporte a essas utopias do socialismo real. Mas basta conversar com pessoas da minha geração que viveram nesses lugares para se dar conta de que havia algo dessa tecnologia também presente lá, e que minou, digamos, o espírito libertário e propriamente revolucionário que havia no inicio dessas experiências.
De modo que não é fácil resolver o dilema, porque não se trata apenas de acabar com a economia de mercado. O problema é um pouco mais complicado, inclusive porque não são apenas os objetos de consumo que se transformam, ganhando essa importância toda. É necessário refletir bem sobre o que tem que ser transformado em nossa vida cotidiana, em nossa própria existência física, que passou, de certa forma, a ser também objeto e a ser também rastreada e manipulada pela economia de consumo.
Cada vez mais, certas categorias físicas e biológicas começam a ganhar importância moral, e vou dar um exemplo: hoje em dia uma pessoa obesa já é alvo de um olhar um pouco crítico por conta do desleixo, da falta de cuidado, da presença de uma espécie de fraqueza de vontade que caracterizaria quem é obeso; quem tem colesterol alto, quem não tem o tônus muscular muito bem malhado, coisas que dizem respeito à otimização da performance corporal – que são coisas que vão, sorrateiramente, se transformando em referências em torno das quais a vida de muita gente gira –, isso tem a ver, sim, com a economia de mercado. Imaginem quantas academias de ginástica, quanto as indústrias farmacêuticas lucram com isso, quantas profissões surgiram, quanto dinheiro é movido pela nossa desesperada busca pela saúde perfeita e pelo prolongamento de nossa existência física. É a mesma lógica da tecnologia que tudo uniformiza e a tecnologia médica tem um poder evidentemente muito grande.
Uma das coisas mais impressionantes e cujas consequências a gente mal pode adivinhar, é o fato de que a própria vida se transformou aos nossos olhos num objeto manipulável, quantificável, patenteável e, portanto, comercializável. Sabemos que o processo de patenteamento de características genéticas já é uma discussão em processo avançado e já esta em operação a ideia de que poderemos comprar características vitais de certas pessoas, patrimônio genético para poder formatar nossa prole.
Já esta também em discussão a própria vida, que sempre foi, digamos assim, sagrada no sentido de que estava para além da nossa possibilidade de manipulação.
A história é assim e isso faz parte da história da vida. Nós somos uma virada na história darwiniana da evolução da vida, pois somos a primeira espécie capaz não só de dar seguimento a si própria, mas a inventar novas formas de vida, coisa inimaginável para os nossos avós. Já somos capazes de mexer naquilo que era antes o outro, o inalcançável, a autoridade radical que é a vida.
Num contexto onde a política e a ética estão em desuso e a racionalidade econômica impera, os destinos desse desenvolvimento tecnológico são preocupantes.
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*Benilton Bezerra Jr. é formado em direito e medicina, atuando como professor adjunto no Insituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.