A construção do tempo: Sujeito e temporalidade
PALESTRA /
Márcio Tavares D’Amaral* //
Comentarista: Benilton Bezerra Jr.** //
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MÃOS DADAS
Carlos Drummond de Andrade
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
[…]
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
homens presentes, a vida presente.
Fez-se uma tarde, fez-se uma manhã e a história que se vai contar agora é a história que se passa no sétimo dia, segundo o livro I do Gênesis.
Enquanto Deus descansa, inventamos para nós um modo de ser que viemos a chamar de sujeito. E habitamos o mundo que ele nos deu, a que chamamos de tempo.
A questão central dessa palestra, como no poema de Drummond, será o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
O sétimo dia, por falta de um nome melhor ou porque talvez seja mesmo um bom nome, nós temos chamado de contemporâneo. O contemporâneo é esse tempo que tem o mesmo tempo que nós; é um tempo que é tempo conosco, que representa e significa a nossa instalação no tempo, tem a nossa idade. Nesse tempo, nos dizem, passam-se algumas coisas. Nem todas muito agradáveis a nós, sujeitos.
Na leitura do Gênesis nós vimos que Deus criou o Homem, não criou um sujeito, não disse ao homem: “Eu te dou todos os atributos da inteligência para o conhecimento, todos os atributos da paixão para o desejo, todos os atributos da força para o poder, de modo que possas ser sujeito de conhecimento, sujeito de desejo, sujeito de poder”. Ele apenas disse: “dou ao homem todo o mundo que Eu criei, segundo um ritmo temporal, pois houve uma tarde e uma manhã e para que sobre esse mundo, no tempo, o homem reine”.
Por algum motivo, num dia mítico qualquer, nós decidimos que ser homem implicava e exigia de nós nos fazermos sujeitos. Que habitar o tempo pedia que ele se fizesse igual à eternidade, que o sétimo dia não tivesse uma manhã e uma tarde, que o sétimo dia durasse uniformemente para sempre e que esse tempo, que se chama eternidade, fosse aquele no qual poderíamos aprender a conhecer, a desejar, a dominar. E, desse modo, a ser sujeito.
Parece que alguma coisa aconteceu com o tempo que é o nosso, esse que, precisamente por isso, chamamos de contemporâneo ou de atualidade.
Algo aconteceu na ordem do tempo que abalou a subjetividade contemporânea.
Quando falamos de tempo e sujeito estamos falando no longo vigor, na longa vigência do sétimo dia. Mas, para alguns, que apressadamente se chamam pós-modernos, parece que o sol está se pondo no último ocaso, que a última noite está sobrevindo nessa longa duração da eternidade e que, de repente, sujeito não há mais, já não vamos de mãos dadas, já não se trata da vida presente, dos homens presentes.
Vamos tentar ampliar o escopo dessa questão.
A rigor, não há resposta para ela porque nem se está fazendo uma pergunta, está-se propondo uma ameaça. Vamos tentar transformar essa ameaça num enigma, quem sabe, esse enigma num dilema e, no fim, se for possível, vamos tentar nos posicionar diante desse dilema para continuarmos seguindo de mãos dadas.
De que sujeito, na verdade, estamos falando? Quando há muito tempo, 4 mil anos atrás, Deus disse a Abraão que deixasse sua terra e procurasse aquela que o Senhor lhe daria, onde sua descendência seria tão numerosa como as estrelas do céu e as areias das praias e dos mares, será que nesse momento nós começamos a ser sujeitos – de um desejo, de um sonho, titulares de um projeto de futuro?
De toda forma, há muito tempo que nós estamos acostumados à ideia de que o que nós humanos somos é sujeito. Diz-se mesmo quando se quer elogiar alguém que ele é um bom sujeito, onde é o bom que faz a diferença porque, afinal de contas, sujeito somos todos nós. Podendo ser qualquer outra coisa das muitas que Deus nos conferiu no sexto dia, decidimos, não sei quando, ser sujeitos.
O que quero propor é que tanto em relação ao sujeito, quanto em relação ao tempo, o fato de nos sentirmos um tanto desconfortáveis diante da excessiva evidência de que nós somos mesmo sujeitos e de que habitamos mesmo o tempo e que isso sempre foi assim, é a essência do ser humano: ser sujeito e como sujeito habitar o tempo e deixar-se afetar por ele.
É interessante pensar que talvez tenha havido um processo de produção do sujeito que bem poderia ter sido um trabalho, uma decisão. E o mesmo em relação à possibilidade de habitar o mundo sem risco algum, sobretudo sem risco de morte, porque o mundo é multiplicidade, demasia, excesso, pletora.
Os gregos tinham palavras para tudo, nós também temos, mas as deles eram, em geral, mais precisas. Usavam para isso uma palavra, hybris,que querdizer demasia, excesso e que pode implicar na morte, num mal, no desvio em relação à via reta.
Parece (digo parece porque essa é uma daquelas coisas que não se provam, não se demonstram) que os orientais – mais uma vez, orientais é um nome que nós, que nos chamamos ocidentais porque o sol se põe aqui, morre aqui, oxida, nós que somos os assassinos do sol damos aos que não somos nós –, aqueles de lá onde o sol nasce, tão diferentes de nós, têm em relação às multiplicidades, à demasia, ao excesso, à hybris, um posicionamento muito mais pacífico, diria: sentam-se, sorriem um sorriso provavelmente incompreensível para nós, que somos da ação, da produção, do fazer coisas, e compreendem que toda essa demasia, excesso, pletora e multiplicidade é sonho. E que a vida é um sonho dentro de um sonho, que a consciência é um sonho dentro de um sonho e que não cabe acordar desse sonho, cabe simplesmente saber que ele é um sonho e não se enredar na sua beleza e sedução, no seu brilho e peso, na sua graça e erotismo.
Nós, ocidentais, não somos assim. Tanto para os gregos quanto para os hebreus, porque são essas as duas fontes das quais fomos forjados, aparece um explícito desejo de lidar com as multiplicidades, de viver nelas e não morrer delas.
O desejo, o afeto em relação a outros elementos que não sejam humanos, as águas, o elemento árido, os peixes do mar, os répteis, as ervas, as plantas que contêm em si sua própria semente, o sol, a lua, toda essa multiplicidade nos encanta.
Imagino mesmo que Tales, de quem se diz que foi o primeiro filósofo e que por morar em Mileto chamava-se Tales de Mileto, um dia, diante da sua janela vendo o sol grego brilhando – e que dizem ser mais brilhante porque o céu é mais baixo –, em chapa sobre o Mar Egeu e diante daquela multiplicidade sedutora e encantatória, talvez tenha dito ou pensado: caramba! O equivalente a dizer que não é possível simplesmente abrir mão de tudo isso e pensar que se trata de um sonho. É preciso encontrar um princípio que ordene essa diversidade, segundo o qual seja possível viver com ela, mas não morrer nela.
Em outras palavras, frente a essa multiplicidade/diversidade, manter sua diferença, a qual depois se chamou homem e um pouco depois sujeito.
Manter a diferença no meio dessa hybris, dessa demasia que tanto encanta quanto aterroriza, que tanto atrai quanto repele, mas diante da qual não conseguimos nos sentar de pernas cruzadas e contemplar com um sorriso distante de um monge.
E essa não terá sido a primeira afirmação da diferença ocidental. É apenas um pequeno mito que trago aqui para podermos começar a pensar sobre a questão que está em pauta: sujeito e temporalidade.
Esse mito nos diz que havia o desejo do outro, outro diferente do homem. Mas tanto amor à alteridade corresponde também ao temor do abismo do outro, o desejo de outro também carrega o temor pela indiferenciação. Talvez o medo da indiferenciação tenha sido a forma conservadora de toda essa história e que no sétimo dia, enquanto Deus descansava, nós fomos inventando para darmos conta de viver na multiplicidade, na demasia, no excesso, e não morrermos neles.
Nada disso é comprovável cientificamente, claro. Não é possível trazer documentos (encontraram-se os papiros do Mar Morto, mas ainda não se encontraram os papiros do Mar Egeu) para demonstrar o que poeticamente estou aqui fantasiando como uma hipótese para darmos conta dessa experiência eufórica e temerosa, desejante e conservadora, de viver na multiplicidade e não morrer nela ou dela.
Quatro operações gregas – quando eu digo operações gregas é porque nós estamos extraordinariamente ‘ortopetizados’ a pensar que tudo começou na Grécia – brotaram para moldar as possibilidades de viver nas multiplicidades e não morrer nelas. Uma delas foi precisamente a que produziu o sujeito, a outra a que produziu o tempo.
Quando dizemos tempo com essa familiaridade como se ele andasse sempre conosco, esquecemos o mistério do qual Santo Agostinho fala: “quando não penso nele sei o que é, mas se penso aí já não sei mais”.
O tempo, portanto, como um primo muito próximo, alguém da família, é o resultado de uma dessas quatro operações a que estamos nos referindo. E quando usamos ‘sujeito’, referindo-nos a nós próprios e a todos os outros, é também o resultado de uma dessas quatro operações a que nos referimos acima.
Então vamos imaginar, num exercício de ficção, nossos antigos gregos situados mais ou menos aqui onde estou posicionado [o palestrante levanta-se e caminha até o centro da plateia] e esse movimento indica os elementos que estão próximos ao sujeito: tempo, espaço e verdade.
Estou aqui, no meio das multiplicidades, aderindo a elas, no gozo da graça, da sedução, do encanto e no temor do excesso, da demasia, do descontrole, da perda de si, da minha indiferenciação.
O palco, onde ainda há pouco decidia como palestrante e onde continuam os meus companheiros de mesa, já se distanciou porque estou envolvido agora numa outra dinâmica de multiplicidades e preciso resolver esse problema, porque a memória é muito curta, e também porque o pescoçotem certaslimitações musculares. Daqui vejo, daqui digo o que vejo, ver é dizer, ver é dicção, esse é o ato que na sequência da decisão de parar o movimento do meu corpo me constitui sujeito.
Sujeito é o que resulta da abdicação de um corpo em movimento, que aceita parar para se pôr a uma certa distância das multiplicidades – depois que o meu desejo por elas está satisfeito –, a uma certa distância enquanto não se tem muita certeza, mas que depois, com o tempo e com o aparecimento dos métodos, vai se tornando cada vez mais uma distância correta e cada vez mais vou tendo a segurança do que consiste ser um sujeito.
Ora, houve nessa pequena demonstração de deslocamento físico um momento de decisão, houve tempo, houve a constituição de uma distância considerada boa, na medida exata do desejo, houve espaço, houve um corpo que abdicou de si como movimento e singularidade para se pôr na relação da visão e da dicção, do ver e dizer, houve também, portanto, verdade.
Tempo, espaço, sujeito, verdade. Sobre essas quatro instâncias parece que se fizeram as mencionadas operações paradigmáticas e necessárias para que se pudesse viver nas multiplicidades e não morrer delas.
Do espaço e da verdade não vamos falar porque, afinal de contas, não são aqui o nosso tema, mas podemos dizer que foram operações que deram muito certo. Sobretudo o espaço, sobre o qual nem havia palavra na língua grega que representasse o sentido do espaço neutro, do espaço abstrato. Espaço era o tempo que se levava para atravessar um território entre um ponto e outro.
E essas referências espaciais eram, na verdade, dois deuses investidos de potência sobre esses territórios. A ideia de espaço como existe na geometria tridimensional abstrata não existia antes, mas passou a existir.
A experiência da neutralidade do espaço, como a experiência da neutralidade da linguagem, é essência para a verdade, para que o ser se instale na linguagem. O que os gregos conseguiram admiravelmente, talvez a sua mais extraordinária realização, foi quando inventaram o verbo ser no infinitivo. Não que não existisse em outras línguas, mas passou a ser a referência, a essência de todo dizer. O verbo ser no infinitivo não diz nada, precisa de um nome à direita e de um acompanhamento à esquerda, mas neutraliza toda potência disruptiva da linguagem e permite, portanto, a pacificação das multiplicidades.
Vamos agora ao sujeito, que é o tema essencial dessa palestra. Ele é o resultado positivo de uma produção e de uma abdicação do corpo vivo e desejante, quando ele se põe na dimensão de uma boa distância, de uma decisão em relação à autoridade e na dimensão do que depois se chamou de verdade.
O sujeito é um resultado positivo, mas assujeitado. Quando a gente diz, por exemplo, que uma pessoa é muito sujeita a gripes, não está falando nada de muito positivo, pelo contrário, se está dizendo que é súdito de uma certa invasão, como aliás em grego esse sentido de súdito ainda existe.
Mas o sujeito foi uma operação que deu certo. Perceber a demasia do corpo é pensar em Platão e no horror do corpo, nas exigências do corpo, nas paixões, nos desejos. E de como isso influência a alma intelectiva com as suas paixões, com as suas demandas, com as suas necessidades. Pensar em como seria melhor viver na dimensão extracorpórea das ideias.
Isso pode parecer hoje um pouco aberrante e talvez Platão nem tenha dito exatamente o que mencionamos, mas foi assim que o platonismo o entendeu e o legou a nós: perder a dimensão do corpo demandante, as paixões, perder a mobilidade da hybris, da demasia, no sentido da contenção da individuação. Mais uma vez uma palavra grega para dike, que, em geral, se traduz por justiça ou que pode ser a medida certa, o ajustamento, o equilíbrio, a ordenação. Fora disso, vigora o desajustamento, o caos, as pulsões.
De um jeito ou de outro, enfim, deu certo: criaram-se sujeitos, o homem fez-se sujeito.
Conhecemos muitas figuras de sujeitos: o sábio, o político, o cidadão, o membro do rebanho, se é da fé que se trata, mas a figura com a qual nós estamos mais acostumados, e essa parece que está ameaçada há uns dois séculos, é um sujeito que é um indivíduo dotado de interioridade. Interioridade essa preenchida pela consciência. E, sobretudo, pela consciência de ter consciência, pela consciência reflexiva; o sujeito como um pleno de si na consciência, um sujeito cheio de si.
Esse sujeito é que, por volta do século XIX teria sofrido uma série de crises. Foi açoitado por todos os lados pelo sentimento de finitude. A começar pelo inconsciente, aquilo que precisamente o sujeito não sabe de si, mas o é. Mas, há ainda mais e mais finitudes. O sujeito é assolado também pelo sentimento da morte, pela vida que o excede, pelo tempo que o excede. Enfim, nós podemos estar falando de 15 bilhões de anos e este é um tempo que não nos pertence, é o tempo talvez do universo. Podemos estar falando de centenas de milhões de anos, podemos esta falando de uns 4 bilhões de anos e aí estamos falando de galáxias, de planetas, podemos estar falando de algumas centenas de milhões de anos, de algumas dezenas de milhões de anos e são todos tempos que não nos pertencem. Até, finalmente, falarmos de uns 53 anos e esse tempo, sim, pertence todo a mim e eu a ele, naturalmente.
Assolados, portanto, pelo inconsciente, pela vida, pela morte e pelo tempo, nós, sujeitos, nos descobrimos, lá pelo século XIX golpeados pelo tempo, mas de que tempo estamos falando?
Porque da mesma forma que um processo pragmático modelar operou sobre o sujeito, sobre a linguagem e sobre o espaço, operou também sobre o tempo. Os velhos gregos não tinham apenas uma palavra para dizer tempo, tinham várias. Mas, mesmo quando afirmamos que eles tinham várias palavras para representar o tempo, provavelmente nós estamos pronunciando uma sentença logicamente incorreta, porque eles, na verdade, tinham várias palavras para dizer alguma coisa que poderia significar tempo. Heráclito, por exemplo, usava a palavra aiôn, a qual, em geral, se traduz por tempo, mas é apenas uma tradução. Ele usa essa palavra, não para significar tempo, mas para designar uma invenção, alguma coisa como um jogo infantil. Portanto, algo que não se submete às leis e às regras contingentes, alguma coisa que talvez hoje chamássemos de acaso.
Podemos dizer, então, que os gregos tinham uma palavra para dizer esse tempo que é acaso: aiôn.
Kairos, outra palavra que os gregos utilizavam para expressar o tempo, refere-se a um momento que, embora indeterminado, representa a oportunidade, o bom momento, o momento exato para se fazer alguma coisa. Ele não é da mesma ordem de Aiôn, pois em um não há decisão, no outro há.
Os gregos utilizavam ainda a palavra kronos, que nada tem a ver com aiôn e nem com kairos,para indicar o tempo cronológico, aquele que pode ser medido e que resiste a passar. Ainda hoje retemos esse sentido de tempo, quando falamos que uma doença que resiste a passar é crônica. Usamos a mesma expressão para dizer que Rubem Braga, por exemplo, foi um grande cronista, pois escreveu maravilhosas crônicas. Ou seja, pequenos textos feitos para durar um dia.
Os gregos também tinham uma intuição de que passado, presente e futuro não se sucedem em uma ordem que hoje, pobremente, nós chamamos de cronológica, em que metemos a lógica em cima da duração. Havia a ideia de que passado, presente e futuro são simultâneos.
Dessas coisas todas não temos mais hoje notícias, quando falamos do tempo. A redução dessa extraordinária multiplicidade temporal que os gregos conheceram – e que precisaram reduzir para não morrerem nela –, gerou uma espécie de processo de modelagem necessário para viver nas multiplicidades, mas não morrer nelas. Essa foi a que mais resistiu.
Produziu-se, então, o tempo em duas representações: como passado e como eternidade. Para Aristóteles o tempo verdadeiro é a eternidade, mas o fato é que isso só é possível dizer a partir da experiência de que as coisas passam, de que o tempo produz passado de forma incessante.
Ora, depois de uma longa duração desse sétimo dia em que tudo começou e em que a Verdade – com vê maiúsculo – reinou sobre o ocidente, o tempo cismou de entrar em cena. Alguma coisa como, na psicanálise, se chamaria de o retorno do recalcado. E dizem que entrou em cena no século XIX para fazer diferença, o que é uma coisa complicada, porque é difícil manter o delicado equilíbrio entre a indiferenciação e a indiferença.
Pois o tempo entrou em cena e quebrou esse equilíbrio com a invenção da história no século XIX. Digo invenção, porque é aí que a história vem a ser o que antes não era: um projeto de inteligibilidade do mundo na ordem temporal. O mundo passa a ser requerido quanto ao seu sentido numa ordem temporal, do passado para o futuro, e a historia é o sistema de discurso capaz de dar conta disso.
No século XX, o tempo continua em cena para fazer a diferença e a história, ao contrário do que pensou Fukuyama, não acabou. Mas há aqui uma diferença importante, pois o século XX inventou a ‘tecno-logia’ – fiz de propósito um intervalo entre as duas palavras para caber um hífen –, tecnologia que não está sendo usada como o conjunto de técnicas disponíveis a serviço do homem, e sim como um acontecimento inédito e extraordinário, pelo qual talvez o triste século XX ainda venha a ser reconhecido: uma fusão quentíssima entre o saber, saber do logos antigo, logos grego fiel escudeiro da verdade, e o saber fazer, a teknè, a antiga teknè grega, que não é regida pela verdade, mas, sim, pela proporção, pela justiça, pelo ajustamento, pelo bem. São, pois, duas ordens diferentes que o ocidente manteve distintas o tempo inteiro, mas sempre suspeitando de que alguma coisa aí se passava de mais ou menos tendencialmente escandaloso, porque Aristóteles foi obrigado a perguntar: “O que é? O que é que vale mais? É a vida especulativa ou a vida prática?”
E respondeu, com bem fundados argumentos, que é a vida especulativa.
São Tomás de Aquino teve que fazer a mesma pergunta 16 séculos depois.
O que vale mais, a vida meditativa ou a vida ativa? A vida meditativa, que depois levou Descartes àquela famosa cisão entre o cogito e a extentio, a extensão. O nosso corpo na extensão faz parte da natureza; isso bem poderia ser de Descartes, uma invenção de um gênio maligno com intenção expressa de nos enganar. Agora, quanto ao cogito, não, porque ele é capaz de duvidar e, se duvida, pensa, e, se pensa, é aquela coisa toda que já sabemos não valer muito a pena reprisar. Deu-se, a meu ver, importância demais ao pobre Descartes.
Mas bem, posteriormente a toda hora ao longo do século XIX, desde a primeira tese sobre Feuerbach, desde Marx que diz: “A filosofia clássica tem se contentado em explicar de diversas maneiras o mundo; cumpre transformá-lo”, a teknè ganha então uma certa prevalência dialética sobre o logos. Em verdade, até Lênin, que não era propriamente um versado em filosofia, mas andou um bom tempo, contra o conselho expresso do partido, metido na biblioteca para responder a uma tese de um físico austríaco, Mach, e escreveu, então, “O materialismo e o empiriocriticismo”, onde, lá pelas tantas, diz: “A prática é o critério da verdade”.
Inversão, portanto, da relação entre logos e teknè, mas inversão significa que antes a coisa estava sendo vista daqui para lá, e agora está sendo vista de lá para cá. A ordem conta pouco, já que a tecnologia contemporânea, a tecnologia dos séculos XX e XXI, é uma fusão do saber e do saber fazer, do logos e da teknè, tal que saber é já fazer e fazer é já transformar, porque não é mais na ordem da verdade que se dão as coisas, mas, sim, na ordem da eficácia e isso é que muda tudo.
É aí que o sujeito está ameaçado, pois somos capazes de nos ater a uma ordem causal: o passado e o presente juntos produzem o futuro.
Mas, agora, parece que nós estamos diante de uma conjuntura em que as novas tecnologias informacionais, virtualizantes, comunicacionais, biomédicas, as nanotecnologias ganharam uma tal velocidade que é como se o futuro estivesse já presente e não precisasse mais ser aguardado. Para pior ou para melhor, dependendo como se olha, nós, que estávamos acostumados a pensar que a causa sempre antecede o efeito e que o futuro é efeito do presente e do passado, agora talvez tenhamos que lidar com a ideia de que o efeito antecede a causa em uma ordem de eficácia tecnológica na ordem do imaginário, do consumo, que é aquela a qual somos chamados a ser sujeito.
Não é mais da diferença que se trata; é da novidade, e a novidade não se avalia pela diferença, se avalia pela velocidade da sua produção para o consumo, de tal maneira que nos é dito que virtualmente nada falta, qualquer coisa que falte pode ser imediatamente reposta por outra coisa que lhe é análoga ou que lhe é idêntica. Ou seja, falta não há mais, o grande imperativo dacultura contemporânea pode ser o consumo; consequentemente, não sofra, porque não há mais falta. Consumo e não sofrer significa: “Não seja mais sujeito com uma interioridade reservada em si, um indivíduo pleno de consciência”. Já não se requer mais isso, o sujeito virtualmente sai de cena no mundo virtual informacionalizado no qual nós vivemos. Tão longamente tememos a indiferenciação, tão longamente vivemos nesse temor, que talvez tenhamos chegado ao ponto extremo da indiferença – o sujeito já não conta. Talvez nem mesmo com um mínimo que se puder desejar: se nada falta, para que serve o futuro sobre o qual o século XIX fazia repousar todas as esperanças, logo o século XIX que foi tão fértil produtor de utopias?
Pois eu queria justamente dizer que o futuro serve para alguma coisa, o presente serve para alguma coisa, serve para continuarmos indo de mãos dadas para não nos afastarmos muito, não nos afastarmos demais, continuarmos ligados aos nossos companheiros indo de mãos dadas. Mas, para isso é preciso que uma nova ética do sujeito contemporâneo entre em cena na ética da espera, da demora da desaceleração tecnológica. Cabe lembrar que os franceses ainda conservam a palavra demeure para dizer o lugar onde fulano mora, ali é seu endereço, rua tal, número tal. Demora, para os gregos antigos, aqueles que dispunham de palavras melhores que as nossas, eles chamavam de ethos, o lugar da habitação e o tempo que se permanecia na habitação própria. Lugar e tempo, portanto, constituem a possibilidade de uma ética nova, na qual uma utopia seja de novo possível. Uma ética da espera que suscite novas dimensões da verdade em que sujeito e tempo estejam em movimento segundo o ritmo das diferenças, sem o temor da indiferenciação e sem a renúncia da indiferença, segundo os ritmos diferenciais sujeito e tempo, porque sujeito é ritmo e tempo é ritmo. Em que estes estejam de novo em movimento, em consonância com a alta dimensão de uma palavra que existiu na bandeira da Revolução Francesa, a fraternidade.
Eram três palavras: liberdade, igualdade, fraternidade. Pela primeira se fez uma revolução. A revolução da lei que diz que todos são iguais independentemente de suas diferenças é uma revolução da indiferença, uma revolução da indiferenciação, isto é, quaisquer se sejam as diferenças devem ser eliminadas em benefício de uma igualdade superimposta.
A Revolução Francesa pela liberdade e a Revolução Russa pela igualdade, constituíram um Estado que não nos deixa esquecer que este foi produto dessas revoluções. Pela fraternidade (a terceira palavra) não se fez Estado algum, porque a fraternidade é a movência das diferenças, é o jogo dos irmãos.
Recentemente, acabou-se a cúpula do milênio. Vocês devem ter prestado atenção aos valores que ficaram decididos e estabelecidos no último dia, como sendo aqueles que deveriam reger a vida no planeta lá no século XIX: a liberdade, a igualdade, o respeito à ecologia e ao meio ambiente, mas a fraternidade ficou de fora.
A convocação que eu poderia deixar aqui a título de conclusão é de que dure o sétimo dia e o repouso de Deus e que nós, como diz Nietzsche na sua Segunda Consideração Intempestiva, que é exatamente sobre a história – das vantagens e desvantagens do estudo da história –, aprendamos no presente e em função dos ritmos das diferenças, a lutar com o tempo, contra o tempo, em benefício, talvez, de um tempo por vir. Porvir, que já foi um bom nome para o futuro.
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*Márcio Tavares D’Amaral é filósofo, professor e autor, dentre outras obras, do livro O homem sem fundamentos: sobre tempo, sujeito e linguagem.
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