A construção do tempo: Literatura, a reinvenção do tempo
COMENTÁRIO /
Chaim Katz* //
Comentário que segue a palestra de Affonso Romano de Sant’Anna, A construção do tempo: Literatura, a reinvenção do tempo.
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Vou começar por Platão e Santo Agostinho para refletir sobre a questão de como aparece a ideia de tempo para a razão.
O Affonso trouxe uma multiplicidade de tempos e modos diferentes de se abordar o que é o tempo. Para mim essa questão está posta conceitualmente na obra de Platão. E o que que Platão quer?Ele quer criar um universo que não seja degradado. O que significa isso? Significa que quando nós pensamos uma determinada experiência a respeito do que é o tempo, cada um pensa o tempo à sua maneira.
Contudo, Santo Agostinho vai dizer que na hora de elaborarmos conceitualmente o que é o tempo, esse modo de elaboração tem que dizer respeito a diversos regimes de temporalidade. Ele tem que dizer respeito àquilo que Platão achava que seria a essência ou a substância do tempo.
Na minha experiência pessoal, aquilo que sinto enquanto tempo, segundo Platão, não serve para pensar o conceito de tempo. Porque o meu corpo está sujeito à degradação, à queda, ao impacto da experiência e à temporalidade cronológica. Por isso esse tempo repetiria essa modalidade de existência, então esse não é um tempo que expressa uma verdade, mas uma experiência.
Qual é o tempo, então, que representaria a verdade? Seria aquele que fosse incorruptível, que dissesse respeito a um regime que não poderia ser posto sob a suspeição dos sentidos. Ele teria, pois, que ser uma verdade que não se atingiria nunca e que não serviria para ser enunciada apenas a partir de uma experiência. Em outras palavras, teria que se dar fora do alcance do sofrimento, daquilo que os gregos chamavam de pathos e nós de paixão. Essa é a característica proposta não só pelos gregos, mas que está presente, especialmente, na obra de Platão.
O tempo de um namoro é certamente muito mais agradável do que o tempo de um divórcio. Para ficar em um exemplo mais simples: o tempo de uma viagem de avião, para quem não é comandante e nem aeromoça, é necessariamente muito mais difícil do que o tempo de ouvir Affonso Romano de Sant’Anna, que é sempre agradável. Contudo, apesar disso, qual seria o critério para se pensar aquilo que organiza até mesmo a própria emergência da palavra tempo?
Os gregos conheciam duas noções do tempo: uma é o Cronos, que é o Deus que em castrando seu pai marca o limite para a filiação. O pai não pode mais continuar engolindo seus filhos, ele tem que deixar desdobrar esse tempo, que é o tempo do relógio, o tempo das estações, o tempo do dia e da noite. E o outro tempo, que os gregos também usavam e que esteve um pouco em desuso conosco até que Gilles Deleuze o trouxe de volta, é o Aión, que é o tempo do acontecer que não se fixa mais em um determinado fato, não é o fato que vai fazer esse tempo do acontecer, mas em um mesmo momento vários tempos podem se cruzar.
E como é que Platão resolveu a questão? Ele dividiu o humano como pertencendo a duas ordens inteiramente distintas e, na verdade, inteiramente irredutíveis. Uma seria da ordem do empírico ou sensível, que está sujeita ao nascimento, à corrupção e, finalmente, à morte. E aquilo que é eterno, que é permanente, diz ele, não existe na experiência sensível. Trata-se para ele de encontrar um regime de pensamento que não esteja suportado empiricamente e que possa caber a beleza da água, de uma mulher e de um cavalo.
Em um livro chamado A República, ele anuncia e descreve o Mito da Caverna, que é também o antigo mito órfico, que conta essa história de que os homens são animais presos em uma caverna e nela eles só veem escuridão. Contudo, em algum momento eles começam a sair da caverna e encontram a luz que ilumina um pouco da caverna. Devagar, olhando as sombras da caverna, eles vão se chegando até à luz e vão encontrar a verdadeira realidade. Essa realidade que ilumina os homens que estão na caverna é a verdade, é o belo, é o bom e é o justo. É aquilo que pode suportar o que é perene, o que é permanente e é nesse registro que cabe tudo aquilo que pertence a uma temporalidade verdadeira e que sobrevive permanentemente. Esta é a noção de eternidade que todos nós conhecemos através do cristianismo, mais especialmente através da Cidade de Deus e das Confissões,de Santo Agostinho.
É a eternidade que ilumina as várias possibilidades de fazer o tempo, e é por isso que os cristãos dizem que Deus é eterno, porque é dele que flui a possibilidade dessa experiência possível da eternidade. Mas esse Deus que produz esse tempo e para o qual, diz Platão, nós não temos acesso perfeito, completo: o homem não pode olhar o sol, essa é a metáfora dele.
Numa outra chave de leitura e para um certo tipo de interpretação daquilo que seria o Deus para os judeus, esse Deus se chama Shekinah, que alguns traduzem como Deus da presença. É um Deus dito feminino, mas que se não for feminino, certamente não é masculino.
Essa leitura diz que Deus não pode estar tão separado assim do homem, ele não pode viver nesse mundo como Platão e Santo Agostinho propunham, porque ele precisa das suas criaturas. Se Deus fosse essa eternidade que existisse sobre si própria, que fosse igual a si mesmo, que fosse o plenamente idêntico, ele não precisaria de ter criado os seus produtos, que somos nós além dos animais.
E exatamente porque ele não se basta a sí próprio é que para se reconhecer ele precisa de criar alguma coisa que seja a sua imagem e semelhança. Deus precisa de se estilhaçar, de se partilhar, de se partir em várias imagens porque ele não dá conta de si próprio. Ele tem uma dívida para consigo mesmo, ele não é monólogo, é dialogo.
Nesse caso, existe alguma coisa na temporalidade dos chamados humanos – que é disso que eu quero falar – que é ao mesmo tempo divina, pois a natureza não seria mais algo separado de Deus, mas, sim, a possibilidade de uma manifestação divina.
Toda vez que ouço alguém muito empolgado apontando para o fato de que o homem é um animal que está em busca permanente pela transcendência, ao mesmo tempo escuto outro que me ensina que corpo e alma são separados. Essa não é a ideia de Spinoza e prefiro continuar a seguir esse caminho.
Temos também uma linha de colegas que pensam a psicanálise na ordem do que eles chamam de desejo. O desejo, do modo como eles leem, seria atemporal e não estaria no tempo, por exemplo, um homem que, aos 63 anos, poderia fazer o que ele quisesse desde que ele elaborasse o seu desejo. Então eu, que há 25 anos atrás corria 15 km aos domingos e matava de inveja Hélio Pellegrino, hoje, quando corro 5 km, mato de inveja a mim mesmo. Aí me pergunto: e o meu desejo? O que aconteceu com o meu desejo? Será que a ordem temporal não me ilumina mais, ou são as pernas que se cansaram, os músculos que se tornaram flácidos, que há uma queda progressiva do meu corpo anunciando a terceira idade? Como é que eu lido com isso no modo de teorizar?
Estou aqui podendo falar daquilo que posso e é desse lugar que eu quero teorizar, são meus limites e enquanto eu não invadir a seara do chamado infinito, enquanto eu estiver do lado de cá da finitude, é assim que eu me considero: um corpo que virtualmente pode estar cansado, certamente adoecido, que paga o preço da diferença sexual que tenho, que todos nós temos, e que tudo isso constitui modalidade de tempo, são coisas que não estão em um mundo ideal mas num mundo que vai se fazendo permanentemente.
Para voltar ao começo da minha argumentação: o sensível não obedece à chamada lei da razão, não obedece às leis das regularidades discursivas, nem de um equilíbrio homogêneo. O sensível não faz um cosmos, ele faz caos. Estou ficando velho, não consigo mais correr, estou fazendo aqui não uma confissão ao estilo de Santo Agostinho, mas uma provocação freudiana. A noção freudiana que nos serve aqui se chama resistência. O que é resistência? Naquele que é certamente um dos cinco livros mais importantes escritos em todos os tempos, que é A critica da razão pura, de Kant, ele dizia que se a pomba quando voasse pudesse pensar, ela diria: se não houvesse a resistência do ar eu voaria na velocidade de um jato supersônico. Ao mesmo tempo ele demonstra que esse pensamento está errado, pois se não tivesse a resistência do ar a pomba cairia.
Na psicanálise não se trata de resistência a alguma coisa, mas de um processo que diz respeito aos obstáculos que se colocam diante daquilo que se vai fazer. Por aí entra a proposta do tema de hoje que é o tempo enquanto invenção. Como no caso da pomba de Kant, Freud nos ensinou que ao tempo todo nós resistimos. Quando o sujeito se faz, quando ele se organiza através de formas de subjetivação e só consegue perceber certas apresentações estáticas do mundo, nesse momento ele está doente, porque reproduz o idêntico, quando diz a mesma coisa mesmo quando fala com outras palavras. Mas na repetição encontramos aquilo que é diferente, aprendemos aquilo que nos toca pela sensibilidade, aquilo em que nós podemos investir para ser de outro modo.
Essa é a grande diferença e é por isso que os religiosos não suportam o tempo como invenção, não suportam a ficção, e aqui vou me desviar um pouco do Affonso, porque também os religiosos escreveram grandes livros. Para que? Para serem reproduzidos com as mesmas palavras e do mesmo modo.
Leva-se não sei quantos mil anos para que se saia do latim para o português e no fundo para se dizer a mesma coisa. O que se diz é sempre o mesmo, num modo de dizer que é também sempre o mesmo, ao estilo do cantochão, que vem da reza dos judeus orientais, os serfaditas, uma forma de, pela repetição monocórdica, fazer com que o sujeito seja impregnado dela.
A ficção se coloca na ordem do sensível, procura a afirmação daquilo que se põe como acontecimento no sujeito, ela quebra com o fato que está escrito e se propõe a criar um novo. Nós fazemos ficção quando não ficamos no reino da reprodução do idêntico, quando pensamos que somos criaturas que podemos inventar, então nesse momento nós estamos ficcionando e fazendo o tempo.
E como o meu tempo acabou, vou apenas lembrar que o Affonso fez várias pontuações durante a fala dele sobre tempos que são múltiplos, mas entre a fala dele, muito mais poética, e a minha, ocorreu um regime afetivo que foi do mais agradável para o menos agradável, e que a gente tem que considerar que o tempo teve uma mudança que não está inscrita num ideal, mas em um regime afetivo de um encontro que nos toca e que pode nos sensibilizar.
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*Chaim Katz é psicanalista.