A construção do tempo: Literatura, a reinvenção do tempo
PALESTRA /
Affonso Romano de Sant’Anna* //
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O que é o tempo?
Santo Agostinho, Confissões, Livro XI, item 14.
Que é, pois, o tempo? Quem o poderá explicar facilmente e com brevidade? Quem poderá apreendê-lo, mesmo com o pensamento, para proferir uma palavra acerca dele? Que realidade mais familiar e conhecida do que o tempo evocamos na nossa conversação? E quando falamos dele, sem dúvida compreendemos, e também compreendemos, quando ouvimos alguém falar dele. O que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, sei o que é; mas se quero explicá-lo a quem me pergunta, não sei.
No entanto, digo com segurança que sei que, se nada passasse, não existiria o tempo passado, e, se nada adviesse, não existiria o tempo futuro, e, se nada existisse, não existiria o tempo presente. De que modo existem, pois, esses dois tempos, o passado e o futuro, uma vez que, por um lado, o passado já não existe, por outro, o futuro ainda não existe? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Logo, se o presente, para ser tempo, só passa a existir porque se torna passado, como é que dizemos que existe também este, cuja causa de existir é aquela porque não existirá, ou seja, não podemos dizer com verdade que o tempo existe senão porque ele tende para o não existir?
Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, por que tende a não ser? O que agora claramente transparece é que nem há tempo futuro nem pretérito. É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro, mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem pois esses três tempos na minha mente e não vejo em outra parte: lembranças presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três, diga-se também que se há três tempos pretérito, presente e futuro, como de ordinário e abusivamente se usa,não me importo, nem me oponho, nem critico tal uso, contanto que se entenda o que se diz e não se julgue que aquilo que é futuro já possui existência, ou que o passado subexiste ainda. Poucas são as coisas que exprimimos com terminologia exata falamos muitas vezes sem exatidão, mas entende-se o que pretendemos dizer.
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Há uma coisa muito grave sobre nós, os seres humanos. Somos os inventores do tempo, pois Deus inventou a eternidade, portanto ele está fora, além do tempo. Ele faz parte do tempo, mas o tempo, estranhamente, não faz parte dele.
Os artistas, e no caso específico, nós, os escritores, onipotentes na sua pequenez, sentindo-se como deuses desterrados, não podendo exatamente inventar o tempo, tentam reinventá-lo como se pela reinvenção o dominassem, ou então dele escapassem. Ou, estribando-se em suas obras, julgando-se à margem do tempo e estimando-se além do tempo, os escritores pensam em aportar na eternidade. Não é à toa que alguns chegam a fundar agremiações onde se intitulam imortais.
Quando se estudava francês no ensino médio, normalmente decorava-se um poema de Lamartine, chamado O Lago, onde o poeta tenta deter o tempo por causa do amor: “Oh tempo! suspende teu voo… parai horas propícias… Suspendei vosso curso.”
Outro poeta, dessa vez inglês, mais cético em relação a isto, diz em um belíssimo poema: “Não deixe o tempo te enganar, tu não podes conquistar o tempo.”
Já Vinícius de Moraes consegue dizer, exemplarmente, em um poema intitulado Poética, aquilo que alguns analistas da questão metafísica do tempo têm gasto páginas e páginas para dizer. “Eu morro ontem, nasço amanhã. Ando onde há espaço. Meu tempo é quando.”
E Machado de Assis, sempre cético, em Esaú e Jacó diz que “o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. E também se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais sutil obra deste mundo.”
Em Quincas Borba, personagem que toma por coroa um chapéu, diz Machado: “Ele pegou em nada, levantou nada e se cingiu com nada.”
E é sobre esse nada que o escritor constrói o seu tudo. Portanto, empenhado em apreender o tempo, o artista é um Prometeu tentando roubar o fogo ao Olimpo e, por isso, acaba amarrado à pedra do próprio tempo, expondo em suas obras o sofrimento de ver o abutre devorar-lhe cruelmente o fígado tempo afora e alma adentro.
Um grande autor dramático romeno, Martin Sorescu, em um poema sobre Shakespeare, introduz uma questão pertinente ao que estamos falando: do artista sentir-se, ele mesmo, um Deus nas suas proporções, criando o tempo e o espaço na medida em que cria a sua obra e suas criaturas. Esse poema se chama Shakespeare criou o mundo em sete dias:
No primeiro dia fez o céu,
As montanhas e os abismos espirituais.
No segundo dia fez os rios, os mares,
Os oceanos e os sentimentos
Dando-lhes a Hamlet, Júlio César, Marco Antônio,
Cleópatra e Ofélia
Para Otelo e para os outros
Para dominarem, eles e seus descendentes,
Até a eternidade.
No terceiro dia, chamou todos os homens
E ensinou-lhes os gostos:
Os prazeres, a felicidade, o amor, a desesperança
O gosto do ciúme, a glória, e mais os outros
Até que todos tivessem sido contabilizados.
E, então, alguns personagens chegaram atrasados.
O criador afagou-os com carinho a cabeça
E disse que a única coisa que lhes restava era se tornarem
Críticos literários
Para negar suas obras.
O quarto e o quinto dias
Foram dedicados ao riso.
Ele deixou os palhaços a fazer cambalhotas
Para que reis, imperadores
E outros infelizes se divertissem.
No sexto dia
Resolveu alguns problemas administrativos.
Fez uma tormenta e ensinou a Rei Lear
Como colocar-se uma coroa de palhas.
Haviam restado ainda alguns resíduos da
Criação do mundo.
Então ele fez Ricardo III.
No sétimo dia olhou se
Havia algo ainda a fazer.
Os diretores de teatro cobriam
A terra com cartazes.
Shakespeare pensou que, por estar cansado,
Bem merecia um espetáculo.
Mas, primeiro, como se sentia bastante exausto,
Deixou a cena por um tempo.
Eis ai um escritor como reinventor do tempo e da história. Mas Shakespeare não foi o único. Um escritor atual como Milan Kundera, no livro chamado A arte do romance, diz: “Quando Deus deixava lentamente o lugar de onde tinha dirigido o universo e sua ordem de valores, separado o bem do mal e dado um sentido a cada coisa, Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz Supremo, surgiu subitamente numa temível ambigüidade; a única verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu e, com ele, o romance, sua imagem e modelo.”
Esse modelo de pensamento em que os homens e Deus estão envolvidos na criação e recriação do tempo está patente também nas ciências. Até Einstein, em suas notas autobiográficas, afirma: “No princípio, se é que existe tal coisa, Deus criou as Leis de Movimento de Newton com as necessárias massas e forças.”
Existe, portanto, um complô entre os artistas e os deuses na organização do universo e na descrição do tempo. Deus e o cientista, Deus e o artista como parceiros na reinvenção. Mas poderia me perguntar se seríamos os únicos seres vivos a temporalizar. Os animais não fazem seminários e nem literatura sobre o tempo. Farejam o sexo do parceiro e caçam alimentos, vivem essencialmente no espaço. Os homens dizem que eles não têm subjetividade, eu desconfio da subjetividade humana que garante isso. Seguramente, os animais têm memória, têm subjetividade e, para nosso espanto, sonham. E não só as galinhas, mas as vacas também sonham e ao som de Mozart produzem mais leite na ordenha. Meus cães volta e meia escutam concertos de Mendelssohn e Mozart, comigo, no crepúsculo de Nova Friburgo.
Têm as pedras consciência do tempo?
Disse-me o escultor Stockinger em uma visita que realizamos junto com Rubens Braga ao seu ateliê em Porto Alegre, que “há pedras verdes e maduras e que há que tratá-las de formas diferentes”.
Assim, além das amebas, até os minerais têm memória ou qualquer coisa que possa ser chamada de programação de vida; os átomos mostram intensa movimentação interna de partículas, há uma memória mecânica, interior, mineral, nos átomos que faz com suas partículas funcionem como um metrônomo.
Mas o que sabemos do interior da matéria? O que fazer do espanto quando nos informam que a partícula elementar chamada Pion Neutro tem uma expectativa de vida de 89 vezes um bilionésimo de bilionésimo de segundo? O que fazer com os nossos conceitos de tempo e espaço quando nos informam que, no macrocosmo, há uma muralha de galáxias, de galáxias que viajam a 300 quilômetros por segundo ao nosso encontro?
Mas as pedras, os cães e as vacas e as galinhas não só não fazem seminário sobre o tempo, como não escrevem romances e poemas, embora façam parte da literatura e componham a vasta narrativa daquilo que Galileu, e mesmo Michael Coco, chamaram de “o livro da natureza”.
Dizem-nos que o mundo tem 15 bilhões de anos e catastroficamente prenunciam que o Sistema Solar explodirá daqui a 8 bilhões de anos. Já há aqui um avanço, pois, no século XVII, o bispo Usher, usando a Bíblia como cálculo, decretou que o mundo havia começado em 4004 a.C. e, recentemente, muita gente esperava que o mundo acabasse no ano 2000. Mais 8 bilhões de anos, por conseguinte, dá uma folga bastante grande a todos aqui presentes.
No entanto, do surgimento dos primeiros protozoários ao advento de formação de uma rã, teriam se passado 3 bilhões e 25 milhões de anos e, depois, da passagem do mundo da rã para o espaço e tempo de Newton, de Einstein, de Haberlandt, de Beethoven, se teria consumido, em contraste, apenas um bilhão e meio milhões de anos para ser trilhado. Quando teria surgido a rudimentar linguagem que utilizamos?
Os cientistas afirmam que a visão dos seres multicelulares surgiu somente há 700 milhões de anos. Quando surge a consciência em uma mente adulta? Quando alguém começa realmente a ter consciência do tempo?
Vamos, então, voltar ao princípio, ao tempo inicial de minhas palavras, mesmo porque falar e escrever é inscrever-se no tempo. Pensemos: seres humanos são criaturas capazes de pensar o tempo. E sendo o escritor aquele que reinventa o tempo, ele cria um tempo arquetípico, um espaço-tempo onde o leitor pode entrar, como se entrasse em uma máquina mágica e pudesse ele mesmo ampliar suas dimensões internas. Neste sentido, pode-se dizer que o imaginário humano sempre esteve na quarta dimensão interna, além da largura, da altura e da profundidade.
Ao pisarmos o terreno de Macondo, junto com Garcia Marquez, aos nos depararmos com os Aurelianos, em suas sucessivas gerações, na circulação circular, circulante, espaçotemporal desses personagens, ficamos todos enredados nesse tempo arquetípico. Igualmente, se subirmos A Montanha Mágica, de Thomas Mann, juntos com o autor e seu personagem Hans Castorp – aliás, a Montanha Mágica é lá em Davos, naquele lugar onde os líderes mundiais costumam internar-se numa espécie de sanatório para fazer o diagnóstico das nossas doenças contemporâneas –, vamos perceber que aconteceu com esse personagem um fenômeno: ele achava que iria permanecer ali algum tempo, que a sua visita era para se instalar no sanatório por um tempo determinado e que, depois, voltaria à realidade. Acontece que lá ele se deixa demorar e um dos estudiosos da questão do tempo em Thomas Mann diz: “Os dois primeiros dias parecem a Hans Castorp infinitamente ricos e cheios de experiências novas, de atos insólitos, de conhecimentos novos”. Há uma impressão de riqueza bem conhecida, típica do despaisamento, e se, no dia seguinte à sua chegada, Castorp poderia crer que havia estado no sanatório há pelo menos dois meses, ao fim de sete semanas o tempo lhe parece extraordinariamente curto. O romancista torna isso palpável dedicando 274 paginas à narração das 3 primeiras semanas e trinta e duas aos 3 meses seguintes.
A proporção material dentro da obra em relação ao tempo subjetivo serviu a que Jorge Luis Borges construísse toda a sua obra em torno dessa múltipla consciência que temos do tempo e do espaço, a ponto de não sabermos o que é ontem, o que é hoje, o que é real e o que é imaginário em seu trabalho. Ele tem um conto clássico, que chama-se O jardim dos caminhos que se bifurcam, no qual há duas narrativas superpostas, como é do seu estilo. Numa delas, um sinológo chinês procura decifrar a obra de igual nome do novelista Ts’ui Pen até que descobre que o tema daquela novela caótica é o tempo e, no entanto, isso não estava explícito. O personagem Albert nesse conto de Borges diz precisamente: “Os jardins das veredas que se bifurcam é uma enorme charada ou parábola, cujo tema é o tempo, essa causa recôndita que proíbe a menção de seu nome”.
E Borges diz, neste mesmo conto, misturando ficção e ensaio, como é de hábito, que “ao contrário de Newton e de Schoppenhauer, seu antepassado Ts’ui Pen não acreditava em um tempo uniforme, absoluto, acreditava em infinitas séries de tempos, em uma rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam, ou secularmente se ignoram abarca todas as possibilidades”. Não existimos na maioria dos tempos; em alguns, o senhor existe e eu não, em outros, eu sim e o senhor não, em outros, ainda, nós dois existimos.
Essa ideia do não tempo dentro da moderna literatura é exemplarmente fixada em um poema de T.S. Eliot, chamado Burnt Norton:
Tempo presente e tempo passado
estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
que poderia ter sido é uma abstração
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que poderia ter sido e que tem sido
ponto de um fim, que é sempre presente.
Caberia até a pergunta: isso é Santo Agostinho? Lá no século X? Ou Santo Agostinho é que é moderno, ou os modernos é que são medievais? No Livro Nono das Confissões de Santo Agostinho ouvimos essas considerações sobre o tempo. Dito isso, temos que voltar a uma obviedade: que o conceito de tempo não é o mesmo para todos os escritores, como também não é o mesmo para as pessoas de culturas diversas ou para quem viveu em diferentes períodos históricos.
Não é o mesmo para quem vive em uma metrópole cruzando ruas, pegando metrô, indo a restaurantes, dobrando esquinas, em comparação com quem vive nas planuras dos pampas ou nas planícies siberianas, pois a continuidade da paisagem sugere outro tempo, assim como a fragmentação do espaço urbano altera igualmente a percepção temporal.
O executivo que faz um lanche de negócios cedo no Rio, toma um avião de manhã, vai a São Paulo faz reuniões em dois ou três lugares diversos, encontra sua amante, almoça com o representante de um grupo aqui, toma um jatinho ali, vai a Brasília reunir-se nos Ministérios, dá telefonemas e volta à noite para a sua casa e esposa, pela quantidade de deslocamentos e peripécias no espaço nas 8 ou 10 horas vividas tem uma sensação infinitamente maior do que a do porteiro do seu edifício, vivendo monotonamente a entrada e saída dos moradores, ou então, da sua mulher que apenas cuidou das crianças. A menos que a mulher tenha um amante, a sua noção de tempo não será modificada.
O tempo além do cronômetro é uma categoria a ser construída com a consciência e que não nos é dada. O que nos é dado é a cronologia ou a percepção das nossas modificações físicas; a percepção metafísica do tempo é uma elaboração sofisticada. O tempo tem que ser gerado e parido de nossas próprias entranhas, ou melhor, de nossa consciência. Quanto mais primitivo e jovem o ser vivo, mais ele vive apenas espacialmente, a criança e o jovem deslizam no espaço.
Lembramos todos do dia quando, na infância, aprendemos a olhar e a decifrar as horas no relógio. O verdadeiro avanço cultural!
Diz Cassirer, em sua Filosofia das formas simbólicas: “O desenvolvimento da linguagem infantil mostra que os advérbios de tempo são formados consideravelmente mais tarde que os termos como hoje, ontem e amanhã”. Segundo ele, algumas tribos primitivas usam o mesmo advérbio para designar ontem e amanhã, confirmando a visão do tempo na mentalidade infantil e primitiva. Com efeito, há até uma tribo para a qual só existe o hoje e o não hoje, sendo por demais sofisticado para seus membros o conceito de ontem.
É curioso que somos tidos como civilizados, porém nossas culturas têm uma noção gramatical do tempo também diferente. Lembro-me de um professor quando dei aula na Universidade da California, em Los Angeles. Era um professor americano que usava desenhos e grandes cartões, uma espécie de charge com a qual explicava aos estudantes o que era o imperfeito do indicativo em espanhol, porque no inglês era diferente, uma sutileza que precisava ser detalhada. E me lembro também do esforço que eu fazia para explicar o que era o futuro do subjuntivo em português, um tempo que não existe na maioria das línguas, o que, aliás, deve explicar porque o país ainda é o país do futuro.
Imagino a violência que deve ter sido para os indígenas da América quando aqui foi introduzido o sino. Até então, os índios, como seres ligados à natureza, funcionavam através do tempo biológico, medido pelos dias, pelas estações. Os padres introduziram os sinos nas missões e este batia às 5 da manhã: o índio tinha que sair para rezar e sair para trabalhar; sino batia às 10 horas e ele tinha que parar para se alimentar; o sino batia às 4 horas da tarde tinha que parar, rezar e voltar e o sino batia de noite para que ele rezasse e dormisse. O sino ainda batia às 3 horas da manhã para que os índios copulassem, porque era uma hora que os padres achavam apropriada para a procriação e que não prejudicava o trabalho durante o dia. A introdução desse sino foi uma violência cultural inenarrável.
Curiosamente, os primeiros relógios mecânicos de que se tem ideia surgiram na China lá pelo século IX e começaram a se propagar no ocidente por volta do ano 1000. Em 1364 há o registro de um famoso relógio feito em Pádua, por Giovanni de Dondi, mas foi no período barroco, no século XVII, que os relógios mecânicos ganharam um espaço até então não visto, a ponto de hoje todos nós carregarmos no pulso o tempo, termos relógios em todos os cômodos da casa, em todas as esquinas da cidade e essa multiplicação de artefatos registrando o tempo tem, evidentemente, uma relação com a subdivisão do espaço na vida contemporânea.
Não estranha, portanto, que James Joyce tenha dito, junto com outros autores, que “a história era um pesadelo do qual deveríamos despertar um dia”, a história enquanto tempo pesado. Viver no tempo, portanto, é de alguma maneira uma condenação dos indivíduos que têm consciência; instalar-se no tempo pressupõe passar por um rito de iniciação.
Já lí em em uma crônica que nem todos fazemos 30 anos aos 30 anos. Uns fazem 30 aos 25, outros aos 40, e há quem não os faça jamais. Assim como no relógio biológico, há um relógio psicológico que é a chama da vida.
Durante algum tempo me dediquei a estudar a questão do tempo na obra de Carlos Drummond de Andrade e não vou tocar em Drummond nessa palestra exatamente por ser um autor que estudei muito, sobre o qual me manifestei em outras oportunidades, e a experiência do contato com essa obra abriu para mim toda uma bibliografia e um conhecimento metafísico e poético dessa questão do tempo.
Há, no entanto, um outro poeta que deveria ser reativado na memória literária brasileira, que se chama Paulo Mendes Campos. Ele colocou como epígrafe em um poema de sua autoria chamado Pesquisa, uma frase que me parece axiomaticamente perfeita e irrefutável. É uma frase do filósofo alemão, Novalis, que fala que o “tempo é espaço interior, espaço é tempo exterior”.
A etimologia da palavra tempo remete a templo, que provém do grego templum, que significa cruzamento, significa cortar. Assim, estar no tempo é estar no cruzamento, é estar crucificado no tempo e no espaço. Em geral, pensa-se a literatura como uma arte temporal, diz-se que a música também é uma arte temporal e que as artes plásticas são espaciais. Vocês se lembram que Pitágoras chegou a construir todo um sistema na Grécia, imaginando o universo como uma construção musical relacionando exatamente o tempo e o espaço. Ele dizia que havia um intervalo musical entre a Terra e a Lua que era um intervalo de um tom, da Lua a Mercúrio um semitom, de Mercúrio a Vênus um semitom e assim por diante. A literatura é uma arte predominantemente temporal, embora o romance coletivo se divida em espaços diversos, ou seja, embora tenha surgido um esforço de espacializar a literatura, principalmente no período barroco e no século XX.
Quando estamos na faculdade, no curso de Letras, estudamos, sobretudo, a evolução dos estilos de época a partir da Idade Média, Renascimento, Barroco, Arcadismo, Neoclassicismo, Romantismo, Realismo, Simbolismo, Modernismo, e a distribuição desses movimentos sucessivos em uma linhagem evolutiva, linear, poderia, na verdade, ser redistribuída a partir da noção de tempo e espaço. Alguns momentos como Idade Média, Barroco, Romantismo e Simbolismo privilegiam o tempo e momentos como Renascimento, Neoclassicismo, Arcadismo, Realismo privilegiam o espaço, são estratégias de entrada na obra de arte e organização da própria visão do mundo.
Sobre isso poderíamos falar mais amplamente, mas economizemos o nosso tempo. Em um trabalho anterior, uma aula inaugural na universidade, intitulada “O que aprendemos até agora”, eu havia tentado fixar a ideia de que havíamos conhecido pelo menos três conceitos de tempo e de História. Um conceito circular e esférico, que é o conceito primitivo e que era também grego: entre os gregos ou entre os índios brasileiros, o tempo não flui, mas roda em torno de si mesmo, porque o que se busca é a esfericidade, a harmonia entre o pequeno e o grande, o micro e o macrocosmos. A esse tempo esférico, grego e mítico sobreveio um tempo judaico, cristão, marxista mais recentemente, que é a ideia do tempo como flecha: que o mundo começou, a vida começou em algum lugar e vai para outro lugar, vai do Gênesis para o Apocalipise. Esse não é mais o tempo esférico, é o tempo em forma de flecha, ou seja, tanto na doutrina socialista, comunista, quanto na cristã, é uma visão triunfalista e penalizadora como o apocalipse e a salvação. Após esse conceito, sobreveio um outro em nossa cultura ocidental, de tempo ou de história enquanto ruptura e que começou a ser praticado no começo do século XIX, sobretudo. Nas artes isso se tornou claro com a presença do futurismo, que propunha a destruição da história, dos museus, para que se recomeçasse tudo do nada. A arte moderna fundou-se portanto, no contexto do binômio destruição e construção e de ruptura em ruptura, destruição em destruição, chegamos àquilo que Octavio Paz, em um dos seus ensaios, chamava de “o estágio da ruptura das rupturas”, como se estivéssemos caindo em um circulo vicioso.
Num texto que publiquei em um livro chamado Análise estrutural de romances brasileiros, tentei fixar duas estratégias de entendimento das narrativas, sejam elas literárias ou artísticas, as quais chamo de narrativas de estruturas simples e narrativas de estruturas complexas. As narrativas simples atuam dentro do esfericidade do mito, dentro da linearidade, dentro da ideia de princípio, meio e fim de acordo com a ideologia dominante e com os mitos ideologicamente revertidos.
A narrativa de estrutura complexa, por sua vez, quebra a continuidade, lida com a simultaneidade, com o complexo e as coisas heterogêneas, fazendo como Joyce havia feito em sua obra. Nas aproximadamente 800 páginas de Ulisses temos uma antiepopéia em uma linguagem quebrada, estilhaçada com efeitos cubistas que o autor exploraria mais ainda em Finnegans Wake, uma obra difícil de ler – não é à toa que, desde 1936, existe na Universidade de Chicago um grupo que continua a estudar esse texto esperando chegar um dia à compreensão total do seu significado. Nesse texto, Joyce usa da estratégia da palavra cubista com várias frases com vários significados e é interessante que ele, irlandês de língua inglesa, tenha chegado a influenciar a música o pensamento em língua inglesa, através de John Lennon, e até mesmo a influenciar o tropicalismo brasileiro que construia textos igualmente utilizadores desta estética cubista. Palavras significam três coisas ou várias coisas ao mesmo tempo. Por exemplo, em um trecho de um livro de John Lennon, valendo-se da técnica de Joyce, ele diz do personagem que “he had immigratedful” – completamente imigrado. Inventou a palavra “completamente imigrado”, como inventou “loved inBarcelover”, ao invés de “em Barcelona”. Alguém que ele amava em Barcelona passa a ser em “Barcelover”. Quer dizer, fundiu duas palavras. Corrigido por um linotipista enlouquecido, onde eu havia escrito “wishful thinking”, ele colocou “whiskyful thinking”, um recurso joyceano que o linotipista poderia ter melhorado, pondo “whiskyful drinking”, um tipo de jogo que seria ainda melhor.
Quebrar a linguagem é fundamental na estética da estrutura da narrativa complexa. Cortázar escreveu um livro chamado La Rayuela (O Jogo da Amarelinha), no qual, na introdução, diz que você pode ler aquele livro de pelo menos duas maneiras, que o livro tem várias ordens de leitura e que se ler o “capítulo tal, tal, tal, tal, tal”, é uma história e se ler o “capítulo tal, tal, tal, tal” é outra história. Isso se parece com o que fez o romancista chileno Enrique Lafourcade,
que escreveu um livro onde, na página impar, existe um tipo universal, na página par, um tipo redondo e a página impar conta uma história e a página par, outra, sendo que essas duas histórias se encontram no final do livro. Chama-se Invenção a duas rodas. Daí chegamos, por exemplo, ao teatro do absurdo com Beckett, Ionesco, Adamov, Albee, Arrabal e outros, sem falar em Pirandello, que foi o primeiro a fazer uma espécie de making of do fazer teatral, do ensaio de teatro, de seis personagens em busca de um autor.
E na arte, nas artes plásticas, a explosão do tempo e do espaço culminou quando Malevich, depois de passar por todas as figuras, começou a pintar uma série de quadros de uma cor só: azul, vermelho etc., até que chegou a um quadro que era o preto sobre o branco, depois, a uma série de quadros que eram o branco sobre o branco, como se artista tivesse chegado a destruir o interior da mosca azul a que se referia Machado de Assis. Em 1936, um austríaco publicou um livro em branco onde tudo já estava dito e, durante a ditadura dos anos 1970, uma romancista chamada Maria do Socorro Trindade, em protesto contra a ditadura brasileira, escreveu um livro todo em branco intitulado Nada a declarar.
Estava pensando que, se o tempo fosse uma qualidade subjetiva nós iríamos muito bem. Diria que todos esses autores, alguns dos quais mencionei, do século XX, sobretudo, poderiam ser classificados em três estirpes: as dos perplexos, a dos paralisados e atordoados diante do tempo como Kafka, Joyce e Beckett, e a dos sofistas como Borges e George Perec. George Perec escreveu um romance chamado La Disparition, um romance bem grosso onde não usa a letra e, não há uma palavra com a letra e. Pois bem, George Perec, assim como Borges e outros, transforma a linguagem num jogo de espelho, em uma ilusão de realidades, e inscreve-se entre os sofistas e o terceiro tipo, os utópicos engajados, os quais continuam a acreditar na modificação da sociedade e elaboram obras contendo drama espiritual e social, como Albert Camus, Grahan Greene, Carlos Fuentes e outros.
O fato é que o tempo tornou-se um assunto essencial, básico e fundamental na literatura do século XX e é interessante acordamo-nos do seguinte: se a Idade Média levou mais ou menos 1000 anos entre o século quarto e os séculos XIV, XV, se o Renascimento levou 200 anos, se o Barroco levou 150 anos, se o Arcadismo e Neoclassícismo levaram 100 anos, se o Romantismo levou 50 anos, se o Realismo levou 30, se o Simbolismo chegou daí a 10 a 20 anos, a modernidade fez com que todos os momentos estéticos começassem a ocorrer ao mesmo tempo, a tal ponto que Mario de Andrade, em seu Prefácio Interessantíssimo, que é um prefácio em prosa e poesia ao mesmo tempo, tenha fundado um movimento literário com a duração especifica da leitura daquele texto, isto é, quando terminado o texto, aquele movimento estaria já superado e extinto. É o instantaneismo a que se chegou a partir de tanta superposição. Com efeito, há umas figuras básicas que informam esse trauma, essa perplexidade nossa diante do tempo na literatura, e que marcam a cultura ocidental: Freud, Einstein, assim como Bergson, Proust e Joyce.
É curioso como Freud e todos esses autores tenham produzido obras aí pela virada do século, enquanto aconteciam coisas no cubismo, na música de vanguarda, nas artes, ou seja, isso tudo estava acontecendo na filosofia e na ciência ao mesmo tempo.
A interpretação dos sonhos, escrita por Freud em 1902, funciona como um consolo para todos nós, pobres escritores que um dia gostaríamos de ser lidos e ter algum sucesso. A primeira edição dos Sonhos, de Freud, foi só de 600 exemplares e, dois anos depois, só haviam sido vendidos 351 exemplares. Somente em 1909, sete anos mais tarde, é que terminou a primeira edição e, no entanto, isso modificou totalmente a nossa visão de mundo e do século XX.
Einstein, com a Teoria da Relatividade, alterou tudo na física. Mas há um problema na teoria de Einstein, pois todos nós pensamos que a entendemos e, na realidade, não é bem assim. Quando fiz a tese sobre o Drummond, li vários livros sobre ciência e quanto mais lia, menos compreendia. O último não entendimento que tenho da Teoria da Relatividade veio de um físico chamado Géza Szamosi, em um livro precioso que se chama Tempo e Espaço, onde ele estuda ciência e arte ao mesmo tempo, e diz o seguinte: “Que o fato de o espaço e o tempo serem relativos parecia tão original na época em que essa descoberta foi feita que deu nome à teoria, sabemos agora que esse nome não é realmente apropriado, pois a teoria como está evidente em seus postulados básicos procura propriedades absolutas e não relativas”. E, para comprovar isso, acrescenta: “A Teoria da Relatividade se baseia em dois postulados, declarações fundamentais: todas as verdadeiras leis da física são absolutas e a velocidade da luz é absoluta”. Estamos, então, diante de uma situação curiosíssima, porque a Teoria da Relatividade é absoluta e talvez eu devesse até modificar um poema meu, curto, e introduzir mais um verso. O nome do poema é “O impossível acontece”:
O Messias nasceu de uma virgem.
O grande pensador grego nunca escreveu um livro.
A Nona Sinfonia é fruto de um homem surdo.
Na Biblioteca de Babel o leitor era um poeta cego.
E não tinha mãos, o homem que fez as mais belas esculturas do meu país.
Deveria inserir aqui: E é absoluta a Teoria da Relatividade.
O pensamento de Bergson valorizou a questão da duração, do instante dessa permanência, dessa fusão semelhante ao que Santo Agostinho havia clinicamente chamado de presente do passado, presente do presente e presente do futuro. Isso é uma alteração muito grave na nossa maneira de ver as coisas, tão grave quanto algumas alterações que ocorreram a partir da física, nessa época, quando Rosenberg converteu o que era uma certeza matemática apenas em probabilidade, quando Niels Bohr arrematou que o princípio da complementaridade era importante e que nós poderíamos aceitar como válidos os termos opostos da contradição, acabando com esse maniqueísmo de origem medieval que divide, falsamente, o mundo entre o bem e o mal, entre o certo e o errado.
Se nós nos lembrarmos aqui de um filme de Kurosawa, chamado Rashomon, vamos ver que é uma metáfora da física e da arte moderna. O mesmo crime é visto e interpretado de várias maneiras por todas as pessoas que o testemunharam ou que dele participaram. A verdade em circulação, os tempos e os espaços múltiplos se superam.
E aqui vou caminhando para o final com uma questão: existiria um tempo brasileiro?
Alguns antropólogos falam de comunidades e tribos que têm histórias “frias” e outras que têm histórias “quentes”, alegando com isso que as comunidades com histórias frias seriam aquelas onde pouca coisa sucede, ao passo que as histórias quentes seriam recheadas de fatos e eventos, estariam muito mais próximas da chamada civilização do que da vida primitiva. Frio como ausência de quantidade, quente como presença de qualidade.
Essa ideia de tempo e espaço já foi culturalmente revista. No Japão, por exemplo, os mapas do mundo nas salas de aulas são diferentes dos mapas que nós temos em nossos colégios, porque lá o Japão não está na margem, e sim no centro do globo terrestre. A localização se dá no tempo e no espaço.
Pois bem, no caso brasileiro alguns autores se esforçaram no sentido de atualizar e dar contemporaneidade à cultura brasileira. José de Alencar quando fez todos os seus romances descrevendo o gaúcho, o sertanejo, o índio, as festas na corte, tentou mapear o espaço nacional para resgatar um certo tempo brasileiro.
O Modernismo brasileiro também fez isso e Mário de Andrade é o grande autor que atualizou, digamos assim, a cultura brasileira. O romance nordestino, ou melhor, o romance que soma Érico Verissímo, Jorge Amado, Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos, também mapeou o espaço brasileiro para atualizar a cultura e a consciência desse país.
Apesar de Juan Rulfo, autor mexicano, ter dito várias vezes “que a literatura brasileira era mais importante e rica que a literatura latino-americana” e apesar de ter ouvido de Vargas Llosa, em 1967, de que aquilo que estava começando a ocorrer com o romance latino-americano, a chamada Literatura Fantástica, já havia ocorrido com a literatura brasileira nos anos 1920 e 1930, mas nossa literatura, no entanto, não é conhecida e nem divulgada.
Curiosamente, quando tive que ler algumas coisas de Heidegger para entender melhor Drummond, me pus a pensar que livro teria ele escrito se, ao invés de Holderlin, tivesse tomado Drummond como exemplo. Ele foi o poeta que mais aguda e metafisicamente realizou o projeto heideggeriano.
E aqui se põe, finalmente, uma questão espaçotemporal que é uma implicação também geoeconômica e política: o fenômeno da globalização e a sua função como coordenada espaçotemporal. É inevitável que o neoliberalismo como sinônimo de pensamento único acabe gerando um tempo único no espaço encolhido. Do ponto de vista espacial coloca ao nosso alcance os produtos geridos e gerados pelo Centro, deslocando para cá tais produtos e fazendo com que sejamos objeto de consumo enquanto consumimos os objetos deles, sem que nossos objetos e sujeitos consigam o mesmo trânsito na ordem inversa.
O século XIX gerou um certo conceito de país a partir dos processos de independência de espaços territoriais e o século XX multiplicou essas territorialidades. Mas, na passagem para o século XXI, estamos assistindo a uma desterritorialização dos espaços nacionais.
É possível que o conceito antigo de país dentro em pouco já não exista mais. Do ponto de vista temporal nos tornamos contemporâneos e instantâneos ao que é produzido no Centro. Não só assistindo a entrega do Oscar diretamente pela TV, recebendo os best sellers e tudo que flui eletrônicamente pela internet. É sem dúvida não só uma superposição de tempos e de espaços como de subordinação de imaginários.
Estimam os especialistas que, na profetizada aldeia global, só haverá um tempo e um espaço e quem resistir a isso será descartado e expelido até que mudemos de novo nosso conceito de tempo e de história. Se possível, para um outro modelo que nos dê chance de existir tanto temporal quanto espacialmente com a nossa individualidade possível.
Até que isso ocorra, melhor mesmo é finalizar retomando o pensamento de um poeta barroco, um padre chamado Frei Antonio das Chagas, que escreveu um impecável e magistral poema sobre o tempo.
Deus pede estrita conta do meu tempo
Forçoso do meu tempo é já dar-lhe conta
Mas, como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei, sem conta, tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, sobrando tempo, fazer conta,
Hoje quero acertar conta e falta tempo.
Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis o vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo, em fazer conta!
Mas, se os que contam com seu tempo
Fizessem desse tempo alguma conta
Não chorariam como eu em não ter tempo.
Perguntas do público:
1 – Affonso, como você vê a ideia de obra imortal, eterna, há uma potencialidade na obra literária que a faça resistir ao tempo?
No princípio desse século apareceram uns teóricos russos, dentro de um movimento chamado Formalismo, que estudaram o conceito de arte e de literatura como um conceito que muda de acordo com as diferentes culturas e épocas. Uma obra que é considerada artística em uma determinada época literária, pode não ser em outra; uma carta escrita no século XVI pode se transformar em um documento literário do século XX.
2 – Não sendo artista, muito menos escritor, como pode o homem comum subverter o tempo da maneira como lhe é imposto cotidianamente? Ao homem contemporâneo, aparentemente, não é dado o privilégio do tempo da espera e ele se atropela tendo que reaagir e agir instantaneamente a tudo. Como você vê isso?
Existem hoje alguns pensadores que estão desenvolvendo um outro tipo de valorização, depois que a estética da modernidade, no principio desse século, valorizou muito a velocidade e as máquinas. Existe hoje uma corrente que está valorizando e mesmo fazendo um louvor à lentidão. Isso que nós estamos aqui fazendo é um louvor à lentidão: paramos com as nossas vidas, abrimos um parênteses e estamos simplesmente meditando. É um exercício lindissímo quando nós resolvemos dar às coisas o nosso tempo e não assimilar o tempo das coisas.
3 – É possivel encontrar algum espaço para a poesia na Física?
Sou vidrado em Física. Talvez porque eu não entenda os enigmas que ali estão. Mas tem uma coisa poética na física. Há pouco tempo comprei um livro escrito por um físico norueguês e usando de uma técnica de literatura que se chama de apropriação, e que Manuel Bandeira usou muito, tirei dele alguns poemas simplesmente transcrevendo e organizando aquelas palavras. Você lê um enunciado daquele e é poesia pura. Daí acreditar que os melhores físicos são poetas, como Einstein, que era um tremendo poeta do tempo e do espaço.
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*Affonso Romano de Sant’Anna é escritor.