A ciência e o esquecimento*
Nenhum estudante poderia pensar em diplomar-se em filosofia sem ter lido um diálogo de Platão ou uma obra de Descartes e Kant. Do mesmo modo, seria muito difícil pensar num currículo de estudantes de letras modernas que excluísse a leitura direta de Dante, Ariosto ou Shakespeare. Por que, ao contrário, nos parece óbvio e natural que um graduando em física ou biologia possa deixar de ler diretamente os Principia de Newton ou as memórias de Einstein ou A origem das espécies de Darwin? E ainda: por que nos parece óbvio e natural que um estudante de física ou de biologia – antes de começar a desenvolver pesquisas autônomas (sempre inseridas num projeto mais amplo) – leia e estude somente páginas que foram escritas para estudantes de física, genética ou fisiologia?
Quando uma ciência se constitui solidamente, seus especialistas esquecem o passado do próprio saber. Submetem-se, todos, a uma mesma ilusão: pensam que sua especialidade existe desde sempre. Essa é uma ilusão típica à qual se poderia aplicar com facilidade a definição de Vico sobre a “empáfia dos doutos (…) os quais, aquilo que sabem, pretendem que seja tão antigo quanto o resto do mundo.” A história das origens de fato é uma história difícil, dado que “é prioridade da mente humana, em que os homens, nos casos em que não podem ter certeza de coisas distantes e não conhecidas, imaginam todas pelas coisas conhecidas e presentes” (Vico, SN, 127, 122).
Os cientistas empenhados em pesquisa não tem muito interesse pelos estranhos modos em que foram inicialmente formulados os problemas sobre os quais trabalham. Na maior parte dos casos, não discutem sobre os modos de formação de sua especialidade. Muitos, de maneira simples, partem dela e assumem-na como ponto de partida. Tornam-se membros de uma comunidade aceitando determinadas regras. Como é obvio, não tem grande interesse por teorias e soluções ‘superadas’. Estas últimas surgem sempre como erros ou verdades parciais, ou como degraus necessários à obtenção da verdade.
Os avanços e os progressos do saber são confiados às contribuições que aparecem nas revistas especializadas. Os manuais de cada ciência (retomando uma das formulações de Thomas Kuhn) contém mais ou menos tudo o que os cientistas consideram saber e as principais aplicações de tal saber. As informações sobre ‘como’ tal saber foi adquirido num tempo mais ou menos remoto e sobre por que certas teorias ou soluções foram aceitas em detrimento de outras, se configuram como algo supérfluo (Kuhn, 1985, p.102). As chamadas ‘vicissitudes históricas’ dizem respeito, principalmente no caso da historia das ciências, às relações entre teorias e os ambientes culturais em que elas foram expostas, submetidas a exame, defendidas, combatidas. Essas complicadas contendas são totalmente ignoradas ou relegadas às notas.
Todos os historiadores profissionais que se dedicam, de formas diversas e com escopos diferentes, a fazer reviver partes mais ou menos consistentes do passado são, ao contrário, muito interessados exatamente nos como e nos porquês. Nesse caso, escolhemos como campo de trabalho a atividade multiforme a qual se dedicaram aqueles a quem foi atribuído (no Oitocentos) o nome de ‘cientista’; sua empresa resulta bastante difícil e complicada por duas razões: 1) porque, neste caso específico, o historiador assume como seu objetivo privilegiado um campo do saber no qual a dimensão do esquecimento não é marginal, mas constitutiva e essencial; 2) porque, conforme se viu, o ‘esquecimento’ não concerne só às teorias envelhecidas ou superadas, mas também à gênese das ciências singulares e aos modos pelos quais cada uma delas (em tempos diversos e em ambientes culturais diferentes) construiu o seu objeto, delimitou o seu campo, distinguiu as questões legítimas das que não fazem sentido, traçou linhas de demarcação, tornou-se (dado que na origem não o era) algo similar a um organismo, a um corpus coerente e compacto de definições, teorias e experiências.
Quando chamou a atenção de forma enfática para os aspectos institucionais da ciência, para o fato de a ciência (como linguagem) ser intrinsecamente propriedade de um grupo, Thomas Kuhn também reconheceu a presença, nos manuais, da dimensão do esquecimento constitutiva do saber cientifico. Os manuais não só ocultam o papel, mas a própria existência das revoluções passadas que contribuíram para produzi-los.
Os cientistas tendem a colocar sua atividade sob o signo de uma concepção linear do progresso. Reescrevem continuamente seus manuais, mas reescrevem continuamente ‘uma história ao revés’. Por que dar valor a algo que por meio da constância e da inteligência de gerações de pesquisadores foi possível abandonar? Por que colocar entre as coisas dignas de ser lembradas os inúmeros erros que a historia humana está cheia? Na ideologia da profissão cientifica – esta é a conclusão de Kuhn – acha-se profundamente radicada uma desvalorização da história (Kuhn, 1969, p.168-9). As novas descobertas provocam a rememoração dos livros e revistas ‘superadas’ de suas posições ativas numa biblioteca científica e seu deslocamento para um depósito. Uma vez encontrada a solução de um problema, as tentativas precedentes para resolvê-lo perdem relevância para a pesquisa, torna-se ‘uma bagagem excedente, um peso inútil’, que deve ser posto de lado pelo próprio interesse no crescimento da disciplina (Kuhn, 1985, p.381, 383). Com relação ao passado, artistas e pesquisadores da ciência tem relações nitidamente diversas:
“O sucesso de Picasso não relegou as pinturas de Rembrandt aos porões dos museus de arte. As obras primas do passado próximo e do mais distantes desempenham ainda um papel vital na formação do gosto do público e na iniciação de muitos artistas no seu ofício. Veêm-se poucos cientistas nos museus de ciências, cuja única função é, em cada caso, comemorar ou recuar, e não produzir excelência na profissão. Diversamente da arte, a ciência destrói seu passado.” (Kuhn, 1985, p.381.)
A afirmação da necessidade de esquecer o passado e a contraposição da ciência a historia são, na realidade, mais antigas do que pudessem pensar Ludwik Fleck, nos anos 1930, e Thomas Kuhn, nos anos 1960. Galileu Galilei contrapõe os filósofos naturais aos ‘historiadores’ ou ‘doutores da memória’. A mentalidade destes últimos é caracterizada pela necessidade continua de referir-se a um guia. A imagem que Galileu contrapõe a essa mentalidade é a de pesquisadores que, diversamente dos cegos, não precisam de guias:
“Quando vocês também quiserem persistir estudando assim, abandonem o nome de filósofos e chamem-se historiadores ou doutores da memória; pois não convém que aqueles que nunca filosofam, usurpem o honrado título de filósofo”.
Os testemunhos de outros não tem nenhum valor perante o critério do verdadeiro e do falso:
“Agregar tantos testemunhos não serve para nada, porque não negamos nunca que muitos tenham escrito ou acreditado em tal coisa, mas repetimos que tal coisa é falsa”. (Galilei, VII, p.139; VI, p.366-7)
Parece que se deve escolher : ser cientista ou ser historiador; acreditar na distinção de verdadeiro-falso ou aduzir testemunhos; conhecer a natureza ou a história. Descartes, sobre isso, pensa da mesma forma:
“Não conseguiremos nunca ser filósofos se tivermos lido todas as argumentações de Platão e Aristóteles sem ter condições de apresentar um juízo seguro sobre um problema determinado: neste caso, demonstraríamos ter aprendido não as ciências, mas a história.”
A história é aquilo que já foi inventado e se acha registrado nos livros; a ciência é a habilidade para resolver problemas, é a ” descoberta de tudo aquilo que a mente humana pode descobrir” (Decartes, 1967, I, p.23; Hogeland, 1913, p.2-3).
Todo pesquisador e praticante de ciências sabe muito bem que não apenas grande parte de seu trabalho será esquecido (como acontece com a maior parte das coisas humanas); sabe igualmente que no saber científico não existem ‘produtos eternos’ e que nenhuma das verdades a que lhes seja permitido acender está destinada a permanecer como tal. No melhor dos casos, ela será inserida num contexto diverso, transformada em elemento de uma verdade mais ampla e mais articulada. Diversamente do que ocorre com poetas, teólogos, romancistas, artistas e filósofos, o cientista sabe que as suas afirmações serão ‘adequadamente’ esquecidas. Não acredita na ‘eternidade’ de sua obra, da mesma forma em que nela acreditam os personagens recém-citados. Pode acreditar ter construído um degrau de uma escada sobre a qual deverão passar todos os que pretendem utilizá-la, mas sabe que seus textos não desempenharão , no curso dos séculos, o mesmo papel vital desempenhado pelos textos literários, filosóficos ou obras de arte. Sabe que suas descobertas serão resumidas nos manuais em seus ‘números de verdade’. Sabe também que seus textos acabarão nos depósitos e serão lidos somente por historiadores curiosos e não por seus colegas dos tempos vindouros.
A propósito, poderiam ser citados inúmeros textos sobre o tema do esquecimento percebido como valor. A começar pela célebre afirmação de Michael Faraday, que fazia votos para que, cinquenta anos após a sua morte, nada do que escrevera fosse ainda considerado válido. Por razões de espaço, vou me deslocar só nos dois extremos de uma longa corrente. “Vocês não devem esperar de minhas descobertas resultados tão grandiosos que lhes impeçam de esperar outras descobertas maiores de vocês mesmos.” As trilhas que abri “serão amplamente superadas”. Como é possível libertar-se das entidades fictícias as quais (como no primeiro movimento ou nas esferas celestes) foram atribuídos nomes? Assim, são necessários “uma negação constante e um processo que torna antiquada as teorias”: “Hoc genus idolorum facile eijcitur quia per constantem negationem et antiquationem theoriarum exterminari possunt.” (Bacon,1975, p.437, 570; O texto em latim está em Works, I, p.171. A afirmação de Faraday é citada por Franks, 1981, p.207).
O que Francis Bacon chamava “antiquatio theoarium” era o elemento central de sua noção de crescimento ou de advancement. À distância de três séculos não serão ditas coisas muito diferentes. Seria pura presunção para qualquer físico – escrevia Pierre Duhem em 1905 – “supor que o sistema para cuja consecução ele trabalha será subtraído à sorte comum dos sistemas que o precederam”. Diferentemente do filósofo, reitera Ernst Mach,
“o cientista da natureza (…) não possui princípios indestrutíveis e se habituou a considerar provisórios e modificáveis por novas experiências inclusive suas concepções e princípios mais bem fundamentados”.
Porém, a asserção mais límpida da esquecimento como um valor está presente numa célebre conferência de Max Weber. Falando da ciência como de uma profissão, escrevia em 1919 que
“todo o trabalho científico (…) quer ser superado e envelhecer, portanto, ser superado cientificamente não é só o destino de todos nós, mas também nosso objetivo.” (Weber, 1967, p.18)
O processo de avanço da ciência, o englobamento e a utilização do saber presente – já se viu – comportam processos de seleção e descarte. Quase sempre, o descarte e o abandono de asserções e de teorias são verificados no terreno do saber científico só quando uma substituição de novos objetos e de novas teorias aos velhos objetos e às velhas teorias é realizável ou parece aceitável. E permanece verdadeiro que a ciência é a única entre as muitas formas de saber humano na qual os erros são (com frequência notável e sem derramamento de sangue) identificados, corrigidos, utilizados; é a única entre as formas de saber que assumiu a atitude que Rescher chamou de ‘copernicanismo cognitivo’. A atitude que consiste em afirmar que “a nossa posição no tempo não é cognitivamente privilegiada” e que o presente (inclusive o nosso) não possui nenhum privilégio epistêmico (Rescher, 1990, p.107).
Nas Considerações não atuais, Nietzsche chama de “supra-históricas” as “potências que afastam o olhar do futuro, dirigindo-o para o que da à existência o caráter de eterno e imutável”. Tais potências são a arte e a religião. Ao contrário, a ciência é essencialmente incapaz de afastar o olhar do futuro e “considera verdadeira e justa, ou seja, científica, só a consideração das coisas que vê por todo lado um transformado, um elemento histórico, e em nenhum lugar um ente, um eterno”. A ciência não vê coisas eternas, mas somente o resultado da transformação. Por isso, “vive em contradição íntima com as formas eternizantes da arte e da religião”, e vê nelas “forças adversas”. Ela trata de “eliminar todas as delimitações do horizonte e lança o homem num mar infinito e ilimitado de ondas luminosas, no mar do devir conhecido”. Nesse mar não se pode viver porque “o terremoto de ideias que a ciência provoca tira do homem o fundamento de toda a sua segurança e paz, a fé naquilo que perdura e é eterno.” (Nietzsche, 1981, p.156).
Talvez a ‘natureza essencial da empresa científica’ deva de algum modo ser reconduzida à noção, já presente em Francis Bacon, da antiquatio theoriarum, ou da capacidade de tornar ‘velhas’, ‘obsoletas’ ou ‘superadas’ as teorias que, num presente qualquer venhamos a atribuir a qualificação de ‘verdadeiras’. Não importa o que foi feito, trata-se de ver o que se pode fazer. A ciência vê em qualquer lugar um resultado de transformação. Todo o trabalho científico quer ser superado, e ser superado não é apenas seu destino, mas seu objetivo. Pensadores tão diferentes quanto Bacon, Nietzsche e Weber concordam nesse ponto. Insistir na quantidade notável do material que é descartado na história da ciência, falar do esquecimento na ciência é, na realidade, apenas um modo, embora não de todo habitual, de falar em ‘progresso da ciência’ e de afirmar e reconhecer sua presença.
*Fragmentos retirados do livro “O passado, a memória, o esquecimento” de Paolo Rossi, publicado pela editora UNESP em 1991.
Referências bibliográficas
Bacon,1975, p.437, 570.
Decartes, 1967, I, p.23.
Franks, 1981, p.207.
Galilei, VII, p.139; VI, p.366-7.
Hogeland, 1913, p.2-3.
Kuhn, 1969, p.168-9.
Kuhn, 1985, p.102.
Kuhn, 1985, p.381, 383.
Kuhn, 1985, p.381.
Nietzsche, 1981, p.156.
Rescher, 1990, p.107.
Vico, SN, 127, 122.
Weber, 1967, p.18.