A catástrofe dos cortes no orçamento da ciência
Robert Oppenheimer é reconhecidamente um dos mais renomados físicos do século passado. Prêmio Enrico Fermi de 1963, dirigiu o Projeto Manhattan para o desenvolvimento da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, no Laboratório Nacional de Los Alamos, no Novo México. No auge de seu prestígio internacional esteve em nosso país, e no Rio de Janeiro, no dia 23 de julho, pronunciou uma conferência da qual Renato Archer, futuro ministro da ciência e tecnologia (1985-1987) colheu a seguinte afirmação: “Se eu tivesse visitado o Brasil há três anos e me fosse dado percorrer o mesmo itinerário [centros científicos do Rio, São Paulo e Minas Gerais, em cinco semanas] teria vindo aos senhores para lhes implorar que criassem um Conselho Nacional de Pesquisas idêntico ao que ora existe” (cf. FILHO, Alvaro Rocha. Renato Archer – Depoimento. Contraponto, 2006, p. 64).
Pois destruir essa instituição, o hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq, vinculado ao MCTI, é o projeto do governo do capitão, a que se associa a maioria do pior Congresso que nosso país já teve em toda sua tumultuada vida republicana! Em ofício à Comissão Mista de Orçamento (CMO) do congresso nacional, o especulador Paulo Guedes decidiu, com a aquiescência de todos os partidos (menos o PSOL, registre-se), cortar os recursos antes carreados à ciência e tecnologia, no montante de R$ 690,00 milhões, para meros R$ 55,2 milhões destinados a pesquisas com radiofármacos (e insuficientes para esse fim). Trata-se de sentença de morte que pesa sobre os destinos do país, condenando-nos a atraso irremediável.
O macabro objetivo do bolsonarismo é destruir o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, construído numa saga que já completa 70 anos. A razia opera mediante o garrote financeiro. Enquanto os países da OCDE investem, em média, mais de 2% de seu orçamento em ciência e tecnologia, a Coreia do Sul e Israel mais de 4%, o Brasil, em 2020, investiu apenas 1% e ainda reduziu drasticamente os recursos destinados a 2021! O governo que desconstitui o ensino superior também investe contra a base da escolaridade. Segundo a mesma OCDE, entre 40 países avaliados, o Brasil é aquele em que o piso do professor do ensino fundamental é o mais baixo.
Em 2020 o MCTI (valores corrigidos) recebeu menos recursos do que em 2009, e o orçamento para 2021, tanto quanto o do MEC, já eram inferiores aos dos anos anteriores.
Os recursos desviados do CNPq serão distribuídos pelo governo através da artimanha “emendas do relator do orçamento”, excrescência da legislação orçamentária que permite irrigar as bases eleitorais dos apaniguados sem obedecer ao princípio constitucional da transparência.
Como combater as desigualdades em país que mais e mais aprofunda a concentração de renda, se não investimos em educação?
Na CAPES-Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, fundação do Ministério da Educação responsável pela consolidação do sistema de pós-graduação no Brasil, os recursos caíram de R$ 2,8 milhões em 2020, para R$1,9 milhão este ano. Quando no mundo faltam semicondutores, afetando até a produção industrial brasileira, o capitão está liquidando o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada SA – CEITEC, a maior empresa produtora de semicondutores do país, que forma mão de obra, promove pesquisa e desenvolve produtos para o mercado nacional. Como transitar da condição de país economicamente atrasado e politicamente dependente na periferia do capitalismo, como superar o estágio de tradicional exportador de matérias-primas para a de exportador de produtos com valor agregado, como industrializar-se e competir no mercado internacional, como, enfim, desenvolver-se, quando o sistema nacional de ciência e tecnologia é desmontado?
O governo, que já devastou nosso presente, trata agora de nos negar a chance de futuro, uma faina à qual se dedica desde o primeiro dia em que, com seus engalanados bem comissionados se aboletou em Brasília, perseguindo a inteligência brasileira, cortando recursos fundamentais para o ensino, a pesquisa e o desenvolvimento cientifico.
O Brasil, que na colônia foi campeão nas exportações de açúcar e café e outros produtos tropicais demandados pela Europa, e hoje é orgulhoso exportador de grãos e minérios, no regime que nos atanaza passa a exportar cérebros para os países ricos e desenvolvidos. Desesperançados, jovens pós-graduados, formados em nossas universidades, são obrigados a migrar, na busca de condições favoráveis para a continuidade de seus estudos e o desenvolvimento de suas pesquisas. O bolsonarismo aprofunda o atraso científico-tecnológico, e o projeta para muitas décadas adiante.
Os gastos com cartão de crédito corporativo (pagos pela União, isto é, com nossos impostos) já somam R$ 50 milhões na gestão Bolsonaro. O patrimônio da Dreadnoughts International Group, offshore criada em 2014 nas Ilhas Virgens Britânicas, pelo ministro Paulo Guedes, é de R$ 52 milhões a ponta de um iceberg – que o especulador admite ter lá depositada em seu nome. Pois R$ 55,2 milhões é tudo que o CNPq receberá para pesquisa com radiofármacos (remédios destinados ao combate ao câncer e também usados para diagnóstico por imagem), cuja produção chegou a parar em setembro, por falta de recursos, consequência do corte de 92% das verbas destinadas ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-FNDCT, desviadas do MCT com a criminosa omissão do astronauta, a quem falta a necessária dose de amor-próprio para pedir demissão.
Mas, para pedir demissão, o ministro precisaria, antes, ser ético. Como militar candidato a astronauta, passou sete anos em doce e bem remunerada vilegiatura nos EUA, e, para desfrutar de algumas horas no espaço, obra sem serventia para o país, custou ao erário a bagatela de R$ 37 milhões, parte suprida pelo ministério que ainda ocupa. Quando de seu regresso, logo foi mandado para a reserva bem remunerada, montou empresa para gerenciar palestras – às quais comparecia com o macacão da NASA, até ser repreendido pelos seus chefes na FAB. Resolveu, então, vender colchões e travesseiros, e assim terminou a carreira de garoto-propaganda.
O CNPq, engenho pensado pela inteligência de Álvaro Alberto, seu primeiro presidente, vem desde 1951 fomentando a formação de pesquisadores brasileiros em todas as áreas do conhecimento. O que hoje podemos chamar de ciência brasileira é fruto do seu exercício na formação científica, na pesquisa básica e na pesquisa aplicada, no desenvolvimento tanto das ciências sociais como exatas, e no desenvolvimento da inovação tecnológica nas empresas. Por isso foi sempre respeitado pelos sucessivos governos, da mais variada cepa, inclusive no mandarinato militar. O primeiro a intentar esvaziá-lo é este que nos assola presentemente.
Valendo-me da experiência de ex-ministro de Ciência e Tecnologia, arrisco-me a afirmar que não há um só pesquisador brasileiro cuja carreira em algum momento não tenha contado com apoio da instituição. As principais conquistas da ciência brasileira, lembra o professor Wanderley de Souza — como o desenvolvimento do setor agropecuário, a exploração de petróleo em águas profundas e no pré-sal, a utilização do etanol como combustível, os avanços na área nuclear, a produção de vacinas — tiveram a participação do CNPq a quem ainda devemos o apoio a instituições fundamentais para o desenvolvimento da ciência brasileira, como o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, o Museu Emílio Goeldi, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, instituições cujo desempenho não podem dizer respeito ao mundo de interesse de um reles especulador financeiro, como é o atual ministro da economia, de um presidente de república réprobo e de um ministro de ciência, tecnologia e inovações que desconhece o que sejam tais coisas. Além de um congresso nacional hegemonizado pelo centrão, o que há de mais espúrio na abastardada representação política brasileira.
É o indispensável CNPq que o bolsonarismo, com a inefável colaboração de um congresso vexaminoso, se dedica a destruir: em 2013 seu orçamento foi de cerca de R$ 3 bilhões. Em 2021 caiu para R$1 bilhão. Redução de recursos significa, por óbvio, redução do apoio a projetos e menor número de bolsas de estudos – cujos valores, por sinal, estão congelados há vários anos. No caso concreto inviabiliza, ainda, a recuperação de parte da infraestrutura dos laboratórios e equipamentos, caríssimos, de alta especialização, perdidos com os cortes de verba que vêm atingindo a área desde principalmente 2015. País que não investe na formação de quadros superiores é sociedade que renunciou ao seu desenvolvimento, abdicou das esperanças de soberania, conformou-se com a pobreza e se alimenta de profunda desigualdade social. Este o país, em marcha à ré, que estamos condenados a herdar em janeiro de 2023, se antes não tivermos condições de nos livrar da satraparia governante.