A biologia, uma ciência diferente das outras?
COMENTÁRIO /
Mario Novello* //
Comentário sobre o livro Après Darwin (La biologie, une science pas comme les autres), de Ernst Mayr, Ed. Dunod, Paris, 2004.
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1 – A biologia e a física
O biólogo Ernst Mayr examina em seu belo livro What makes Biology unique? a dissensão da biologia entre as demais ciências, em especial a física, ao rejeitar algumas das principais orientações tão populares entre os físicos como o reducionismo e a unificação. Em sua versão francesa, o livro adquiriu um título mais explícito: Après Darwin: la Biologie, une science pas comme les autres. Mayr elabora a síntese de vários de seus trabalhos e procura mostrar porque a biologia merece um lugar especial entre as ciências e, principalmente, as razões pelas quais ela não pode ser considerada como uma consequência da aplicação reducionista da física aos seres vivos, como muitos pretendem. O subtítulo desse livro já mostra sua intenção ao informar que a biologia não é uma ciência como as outras. Mayr organiza seus argumentos a partir de duas afirmações:
certos princípios da física não são aplicáveis à biologia;
certos princípios biológicos não são aplicáveis à física.
Dentre os primeiros, Mayr cita quatro que lhe parecem evidentes a partir da revolução realizada por Darwin:
tipologia;
determinismo;
reducionismo;
ausência de leis universais em biologia.
A tipologia ou essencialismo pretende que a diversidade dos fenômenos se estruture a partir de certas essências fundamentais. As variações se constituem de forma acidental. Segundo Mayr, esse modo de pensar levou ao conceito errôneo de raça humana, acarretando argumentos que se julgavam de natureza científica, dando espaço para o desenvolvimento do racismo.
O determinismo, em desuso na física moderna, através de críticas internas violentas produzidas tanto pela mecânica quântica, quanto por processos termodinâmicos fora do equilíbrio, mantinha-se soberano na biologia. Sua crítica abriu caminho para que na biologia se desenvolvesse o estudo das variações e fenômenos aleatórios.
Enquanto a maioria dos físicos aceitou e aceita o reducionismo, Mayr argumenta que tal princípio é por demais inibidor e deve ter seu papel bastante diminuído na biologia. Certamente não deve estar à frente dos geradores de inúmeros projetos globais que são estudados na biologia.
Finalmente, o mais criticado deveria ser a ausência de leis gerais, deterministas e aplicáveis a todos os componentes biológicos – como prescrito pela física.
Segundo Mayr, “a demonstração de que esses quatro princípios, que desempenham um importante papel na física, não são aplicáveis à biologia, foi uma etapa maior – e talvez a mais difícil – na tomada de consciência de que a biologia não é a física. Não se reduz a ela”.
O que chama a atenção no desenrolar da análise que Mayr faz dessas questões – e que demonstram o distanciamento da biologia da física – é a espantosa semelhança com a atitude da vanguarda dos cosmólogos que tem evidenciado nos últimos anos um igual distanciamento da cosmologia à física. Ou seja, a argumentação de Mayr para a posição da biologia, tem uma grande, e até certo ponto surpreendente, analogia no interior dessa outra ciência, a cosmologia.
Parece que os caminhos empreendidos pela cosmologia e a biologia das ultimas décadas possuem uma orientação comum, envolvem um olhar comum, particularmente nas suas criticas ao reducionismo. No caso da cosmologia, isso aparece claro ao reconhecermos que ela desempenha papel semelhante ao dos astrônomos do século XVI, permitindo, assim, a refundação da física.
2 – A cosmologia e a fisica
No século XXI começa a se propagar a ideia de que a cosmologia não se identifica com a física. Isso se deve, em particular, ao reconhecimento de que a física, estabelecida graças à experiências e observações realizadas nos laboratórios terrestres e em nossa vizinhança, não poderia ser aplicada indiscriminadamente a todo o universo e em todas as situações, ou seja, sua extrapolação para todo o universo deveria sofrer mudanças na escala global. Mesmo sem poder determinar com rigor as propriedades associadas a intensidades bastante superiores às observadas em nossa vizinhança, das forças gravitacionais e eletromagnéticas que existem além de nosso sistema solar, quer em regiões compactas – como na vizinhança de certos corpos massivos, no que se convencionou chamar de candidato a buraco negro –, quer em regiões para além de nossa galáxia, envolvendo enormes quantidades de espaço e tempo, havia até bem pouco tempo uma espécie de fé animal, resquício de um antropocentrismo arcaico, de que a ciência não precisaria fazer nenhuma alteração nas leis da física conhecidas para produzir uma história completa do universo. O conhecimento local dessas leis seria suficientemente abrangente para produzir um relatório preciso e completo sobre a totalidade do cosmos.Essa atitude se consubstanciou na expressão astrofísica extra-galática, cunhada para se referir à ciência que se dedica ao exame das características globais do universo. Com esse nome rotulava-se a atitude daquele que ao aceitar a universalidade das leis físicas descobertas na Terra e sua aplicação inalterada ao universo, organiza uma versão do mundo a partir daquelas leis e somente daquelas leis. Claro está que, como método de trabalho, essa extrapolação deveria ser realizada em um primeiro momento, pois ela permitiria inclusive delimitar o alcance da aplicabilidade daquelas leis. Entretanto, essa atitude adquiriu um caráter dogmático e inibidor levando-a a se transfigurar em um conceito reacionário e inibidor, gerador de barreiras ao aparecimento de novas ideias igualmente simples e capazes de exibir uma abrangência e uma melhor adequação às observações.
Não podemos dizer que essa atitude, que hoje pode parecer simplista, tenha sido completamente abandonada, mas creio ser correto aceitar que na comunidade cientifica ela não possui mais a força e a arrogância que demonstrava até bem pouco tempo. E, certamente, não tem mais a grande maioria dos cientistas a seu lado. A noção de que a cosmologia está produzindo a refundação da física começou a ser aceita e difundida. Isto é, aspectos globais do universo começaram a adquirir importância entre os cientistas. Para que isso pudesse ocorrer, foi necessário uma mudança de atitude levando a uma autocrítica, que, no entanto, encontrou enorme dificuldade de ser institucionalizada. A principal questão envolvia o status do princípio reducionista, tão importante para os físicos. Esse princípio, que ao longo do século XX teve um sucesso extraordinário, pretende que qualquer processo na natureza, qualquer sistema, independentemente do grau de sua complexidade, pode ser explicado a partir da redução a seus elementos fundamentais, conforme, por exemplo, àqueles descritos pela física microscópica. Aplicado esse princípio ao Universo, concluiu-se, de modo simplista, que não poderia haver nenhum efeito novo capaz de modificar as leis da física a nível da totalidade do que existe. A única alteração seria quantitativa, não seria qualitativa. Esse princípio, dito ‘do microcosmos para o macrocosmos’, foi usado como um guia para o tratamento das questões cósmicas. Por outro lado, sabemos o sucesso que teve o alcance da compreensão das propriedades das diferentes substâncias a partir do reconhecimento e exploração de seus constituintes, seus átomos fundamentais. A tabela de Mendeleev trouxe notáveis avanços na compreensão de propriedades comuns a diferentes substâncias. Sem a noção de átomos, de elementos fundamentais a todos os corpos, a dificuldade de dar sentido e de compreensão para um grande número de processos com que nos deparamos no cotidiano ou em experiências programadas, seria certamente maior. Esse sucesso, no entanto, foi levado a um extremo que passou a ser não mais um instrumento útil de análise da realidade, mas, ao contrário, um conceito inibidor do pensamento. Passou-se das moléculas aos átomos e desses aos componentes mais elementares, prótons, elétrons e, continuando esse procedimento, aos quarks e possivelmente outros constituintes fundamentais. O reducionismo a componentes elementares foi entendido não como uma tentativa de compreensão baseada em observações, mas como uma prática de pensamento que deveria desempenhar o papel de uma superlei, a partir da qual toda e qualquer proposta científica deveria se submeter: como se fosse uma verdade que deveria ser isenta de critica ulterior. Descartar a importância da ação de processos de natureza global que não podem ser compreendidos pela justaposição de processos elementares foi, certamente, um retrocesso no caminho desbravador dos astrônomos, que iniciaram no século XVI a revolução cientifica e estabeleceram a ciência moderna. No século XXI, graças ao aperfeiçoamento de poderosos instrumentos capazes de aprofundar um novo olhar para os céus, foi possível produzir modos inesperados de compreender e reestruturar as leis da natureza. Assim, astrônomos e cosmólogos estão uma vez mais criando condições para o surgimento de uma profunda mudança no modo racional de descrever a realidade. Talvez fosse importante lembrar aqui que o reducionismo vai a par com outro princípio que tomou conta da ciência de modo bem menos racional do que ele é comumente apresentado: o princípio unificador. A ideia de unificação dos processos observados na natureza está associada a um movimento do pensamento que requer simplificações. Nos níveis em que ela funciona, essa unificação traz uma economia de pensamento que não pode ser desprezada. Podemos tomar como exemplo a enorme quantidade de conhecimentos acumulados ao final do século XIX, que permitiram tratar os efeitos elétricos e magnéticos como um só processo, como duas faces da mesma moeda. A influência de efeitos elétricos sobre magnéticos e vice-versa adquiriu então uma formulação que os uniu em uma só estrutura formal, o campo eletromagnético. Desde então, e por diversas razões, esse conceito unificador – herança de épocas anteriores à revolução cientifica e cujas origens vamos encontrar em seus antecedentes em diversos movimentos religiosos – se alastrou na física, tornando-se em alguns setores uma real obsessão. Em sua formulação mais impessoal e racional, com uma roupagem lógica que o torna bastante atrativo, ele prescreve que a função máxima do cientista, sua meta utópica e altamente desejável, a finalidade maior da caminhada cientifica, consiste em poder descrever todos os processos da natureza a partir de uma só estrutura formal. Será? Não vou estender essa análise nesse momento, mas posso assegurar ao leitor que Cosmos e Contexto voltará a ela em outro número e, consequentemente, examinará com mais detalhes a revolução do pensamento que Mayr explicita em seu texto.
Essa breve descrição serve para apresentar aqui, mesmo que superficialmente, o ambiente na ciência da física que conduziu à formação de certos apriorismos que produzem menos conhecimento e mais restrições ao pensamento.
E para finalizar, termino essa incursão inspirada no livro de Mayr com um comentário envolvendo as criticas que biólogos e cosmólogos têm feito ao despotismo da fisica.A introdução da história na compreensão dos fenômenos biológicos é a mais contundente das características dessa ciência em oposição à formulação da imutabilidade apriorística das leis da física. Curiosamente, há também uma interpretação da cosmologia segundo a qual haveria igualmente esse fenômeno de evolução das leis físicas – o que se costuma chamar de dependência cósmica das interações – e ele requer, por coerência interna, a introdução da historicidade na compreensão dos fenômenos naturais de modo análogo ao que reconhecemos existir na análise dos fenômenos da vida. Assim, a cosmologia histórica poderia caminhar junta com a biologia histórica em seus questionamentos da rigidez e perenidade das leis físicas.
De modo análogo a como os astrônomos fundaram a ciência moderna – a ciência da natureza, isto é, a física – seus companheiros de hoje ao olharem para os céus estão criando um movimento de reflexão que abriu a caixa de Pandora onde os físicos pretendiam (res)guardar suas leis eternas e imutáveis. Nas últimas décadas, os cosmólogos começaram a investigar essa evolução, mostrando que, assim como na biologia, essa análise pode ser empreendida sem que tenhamos que enfrentar o fantasma da teleologia.
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*Mario Novello é cosmólogo do Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica ICRA/CBPF.