DUAS VERSÕES DA SUBJETIVIDADE: Psicanálise (Freud) e Psicologia Analítica (Jung)
Conferência realizada no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em 21 de novembro de 2024, no colóquio intitulado As múltiplas versões do pensamento.
I .Preambulo.
A intenção primordial deste ensaio é a de problematizar as relações teóricas entre os discursos de Freud e de Jung, no que concerne a leitura da subjetividade, que vai assumir uma dupla[J1] [MN2] versão diferenciada e que constituirão dois diversos discursos teóricos, a saber, a psicanálise com Freud e a psicologia analítica com Jung. Esta interlocução ocorreu no início do século XX e marcou de maneira indelével a história da psicanálise nos seus primórdios, nos registros real e imaginário, ao mesmo tempo.
Jung era incontestavelmente o discípulo preferido de Freud, em consequência de seu brilhantismo teórico e de sua produção intelectual. Em consequência, Freud o escolheu como o seu sucessor na direção do movimento psicanalítico internacional. Portanto, provocava ciúmes e invejas entre os demais discípulos de Freud por esta posição de preferido e de herdeiro intelectual.
O encontro de Freud com Jung teve o efeito decisivo, numa perspectiva histórica, de retirar a psicanálise do isolamento vienense e judaico, na medida em que o grupo de jovens analistas que cercavam Freud nos primórdios da psicanálise eram todos judeus. Neste contexto, Freud temia que psicanalise fosse identificada como uma ciência judaica, em decorrência de ser fundada no discurso da interpretação, assim como o movimento psicanalítico ser concebido como um gueto judaico, na medida em que Freud esperava que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência, de fato e de direito.
Portanto, o encontro com Jung retirou a psicanálise destas ameaças e foi assim um grande alivio para Freud, pois a psicanálise passou a se inscrever no campo social da Suiça protestante, retirando-a assim do seu isolamento judaico.
Por todas estas razões assim, a ruptura teórica entre Freud e Jung teve um efeito trágico no homem Freud e na história do movimento psicanalítico, promovendo então a oposição epistemológica entre o discurso psicanalítico e o discurso da psicologia analítica.
Enfim, serão todas estas questões que vamos problematizar neste ensaio, para enunciar assi a oposição teórica de duas diferentes versões da subjetividade;
II Uma questão de método
Pretendo me restringir aqui apenas ao período histórico no qual se realizou a relação entre estes dois gigantes do pensamento sobre o psíquico. Vale dizer, não vou considerar a produção teórica de Freud e de Jung fora do tempo que se inicia em 1906 e termina em 1914, isto é, anos onde eles se corresponderam e estabeleceram uma relação de colaboração.[1] Vou limitar pois a leitura dos textos de Jung a este contexto histórico.
Portanto, vou considerar aqui somente os ensaios de Jung que tematizam a técnica experimental das associações de palavras,[2] o conjunto de ensaios reunidos com o título “Freud e a Psicanálise”,[3] os artigos reunidos no volume intitulado “A psicogênese das enfermidades mentais”[4] e a obra denominada “As metamorfoses e os símbolos da libido”.[5] Não vou avançar mais na leitura de Jung pois ultrapassaria o período da correspondência que será devidamente considerada, mas vou enunciar eventualmente as respostas de Freud à Jung que aparecem em suas obras posteriores.
III. A diferença na transferência
A colaboração entre Freud e Jung se passa na Belle Époque, nos anos que antecederam de perto a 1ª Grande Guerra, que como acontecimento crucial marcou o início do século XX, pela subversão radical que provocou na totalidade das formas de vida. Então existentes.
Com efeito, apesar de já estarmos formalmente no início do século XX, estamos de fato ainda no século XIX, do ponto de vista dos valores e da mentalidade. O requinte da velha Europa vai logo depois ser substituído pela massificação norte-americana, que se espalhará progressivamente pelo mundo inteiro.
Trata-se da relação entre um homem intelectualmente maduro, Freud, e de um jovem brilhante e promissor, Jung. A relação entre ambos é evidentemente assimétrica. Jung reverencia Freud o tempo todo, pois se dirige a ele como ao “Honrado Sr. Professor”. Contudo, Jung é tratado por Freud como o seu “Honrado colega”. Esta assimetria funda a relação transferencial de Jung com Freud, que o analisa em parte pela correspondência e também pelos contatos de outra ordem. As diversas correspondências de Freud com os diferentes discípulos são sempre marcadas pela mesma reverência transferencial destes, definindo aquilo que marca o estilo singular destas cartas.
Neste contexto, o jovem Jung deseja ser reconhecido pelo mestre Freud, nas suas retificações da teoria freudiana. Freud refuta Jung aqui e ali, reenfatizando a sua perspectiva teórica. Jung se desculpa com o mestre por sua ousadia. Porém, não obstante a reverência elegante, continua a manter a sua postura de diferença face ao mestre. Este acolhe eventualmente as sugestões do discípulo dileto, instaurado desde o início da colaboração na posição de “herdeiro”. Contudo, o abismo entre ambos cresce lentamente com o tempo, apesar da cordialidade e de respeito recíprocos.
Além disso, Freud não admira o tom conciliatório de Jung face ao mundo psiquiátrico de então, esperando dele, pelo contrário, maior radicalismo na exposição das teses psicanalíticas. Enquanto Freud indica a descontinuidade entre a psicanálise e a psiquiatria, Jung procura estabelecer as continuidades e os pontos de intercessões possíveis, por onde realiza as soluções de compromisso.
Isso se coloca assim desde o início da relação de colaboração e se mantém até 1912, quando então a ruptura começa a se materializar com as cartas em que Jung expõe a Freud as teses teóricas por ele apresentadas num curso realizado em New York, na Fordham University. Freud percebe então de uma outra maneira aquilo que sempre soube, isto é, que Jung retira os registros do sexual e do pulsional da psicanálise, quando passa então a cobrar daquele maior lealdade ao seu discurso. Neste contexto, a ruptura é inadiável e impossível de ser evitada. Logo em seguida Jung se demite da função de presidente da Associação Internacional de Psicanálise.
Os argumentos sustentados por Freud são bastante claros, desde o início da correspondência. Ele afirma que Jung evita o confronto, não se expondo inteiramente à diferença e não assumindo radicalmente a ruptura existente entre a psicanálise e a psiquiatria, pois acreditaria que iria com isso moderar a “resistência” dos psiquiatras em relação à psicanálise. Em contrapartida, Freud supõe que isso apenas aumentaria a tal “resistência”. Tratar-se-ia de uma sedução improdutiva e ineficaz, pois os psiquiatras com isso não deixariam de se opor à psicanálise, na medida mesmo em que se instituira a condição de “resistência”.
Vale dizer, Freud acredita que se deveria dialogar com os opositores teóricos da psicanálise da mesma maneira com que se considera os analisandos, isto é, como sujeitos que constituem defesas psíquicas para não se defrontarem com o que é doloroso e insuportável, na sua existência.
Contudo, é preciso reconhecer aqui que as mesuras conciliatórias do jovem Jung face inicialmente ao meio psiquiátrico europeu e posteriormente ao norte-americano evidenciam a sua diferença para com Freud. Com efeito, se no início da relação esta diferença não poderia ser assumida enquanto tal, pela imensa distância e pela gigantesca reverência transferencial de Jung, este vai assumi-la em seguida de maneira crescente. É necessário considerar aqui que esta foi a forma pelo qual Jung perlaborou a sua relação transferencial para com Freud, delineando a sua singularidade frente a este. Enfim, as diferentes teses teóricas delineadas por Jung seriam as marcas singularizantes que este constituiu como sujeito, de maneira a se diferenciar então de Freud no campo transferencial.
IV. Os obstáculos no movimento psicanalítico
Freud não poderia aceitar isso. Seria então intolerável para ele a autonomia intelectual e a singularidade de Jung? Talvez. Não gostaria ainda de responder a isso de maneira afirmativa e conclusiva. É preciso muita cautela nesta resposta. Para isso é necessário contextuar bem as questões que estão aqui em pauta, para delinear algumas das condições concretas de possibilidade da ruptura.
A intolerância de Freud seria um obstáculo crucial no diálogo com Jung? O mito de Freud ter sido um homem autoritário está na base de algumas das leituras da história da psicanálise. O autoritarismo de Freud o teria conduzido, nesta versão, a tornar impossível a convivência com os discípulos “rebeldes” no campo do movimento psicanalítico, como Ferenczi e Rank. Consequentemente, a exclusão daqueles deste campo se instituiu como um operador regular deste campo.
Contudo, a leitura cuidadosa das atas de reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena nos apresentam a figura de Freud como sendo a de um homem tolerante e amistoso no convívio com as diferenças.[6] Não obstante as exclusões de Adler e de Stekel, é admirável a presença neste grupo de trabalho da liberdade de expressão do pensamento e da experiência da diferença. Se compararmos o funcionamento deste grupo originário de analistas com as instituições atuais de psicanálise a distância é abissal e inquietante, no que concerne à liberdade, a diferença e a singularidade dos psicanalistas.
Poder-se-ia objetar agora que tudo isso ocorreu antes da institucionalização da psicanálise, que assumiu uma direção nova com a saída de Jung do campo freudiano. Assim, após a institucionalização da psicanálise num grande sistema burocrático de filiação, tudo teria mudado no campo psicanalítico. Estou de acordo com isso, pois tudo mudou mesmo. Contudo, a postura de Freud no conflito que se estabeleceu nos anos vinte, entre a Associação Internacional de Psicanálise com Ferenczi e Rank, revela a presença de um homem que sabia conviver com a diferença.[7] O que não era o caso, bem entendido, dos demais dirigentes da citada associação. Portanto, o argumento da intolerância de Freud é muito frágil para interpretar certos momentos da história da psicanálise, não obstante o fato de que a impossibilidade da experiência da diferença ter sido então já instituída no campo da psicanálise.
Para avançar um pouco mais na indagação da ruptura entre Freud e Jung, me parece que o caminho mais interessante inicialmente é aquele de delinear a inserção de Jung no campo analítico de então. Esta direção de leitura permite explicitar alguns pontos, possibilitando colocar entre parênteses a intolerância de Freud. Contudo, é bom se lembrar que esta interpretação não esgota também as razões da ruptura, como ainda veremos adiante.
Assim, desde o início da relação com o mestre, Jung foi reconhecido como sendo o “herdeiro” de Freud. A escolha deste foi imediata. Freud disse isso nas cartas iniciais à Jung e repetiu publicamente na sua “História do movimento psicanalítico”.[8] Por isso mesmo, Freud lhe nomeou para a direção da Associação Internacional de Psicanálise, além de lhe encarregar da organização das revistas psicanalíticas. Portanto, Freud reconhecia o gigantismo intelectual de Jung, instituindo-o pois positivamente na relação com os demais discípulos.
Evidentemente, que ao ser colocado por Freud na posição de “preferido”, os demais discípulos de Freud procuraram envenenar a relação deste com Jung, sabotando o lugar deste. Assim, os impasses que se estabeleceram entre eles e até mesmo a ruptura entre ambos não pode ser pensada fora deste contexto institucional. Assim, o “preferido” Jung foi o alvo da hostilidade, do ódio e da inveja dos demais discípulos de Freud, formas estas bem conhecidas de todos nós para destituir alguém de seu lugar de eleito. Todos nós conhecemos muito bem este destino bem funesto na atualidade da comunidade analítica, onde os analistas se massacram na luta pelo prestígio. Enfim, o afastamento de Jung do campo freudiano não pode ser pensado fora deste campo de forças e de interesses.
Evidentemente, este lugar de “herdeiro” não se fundava no vazio, mas no brilhantismo intelectual de Jung. Assim, Jung criou novos conceitos e palavras que foram definitivamente incorporadas no vocabulário freudiano, como por exemplo a idéia de complexo. Da mesma forma, a experiência analítica de Jung com a psicose e com a esquizofrenia em particular abriu campos originais de investigação para a psicanálise: o desenvolvimento do conceito de narcisismo é uma das derivações maiores disso. Enfim, o brilhantismo de Jung e a sua posição de eleito precipitaram a ruptura com Freud e alimentaram além disso os seus impasses.
Porém, se isso tudo é muito importante para que nos desloquemos da hipótese ingênua da intolerância de Freud, o fundamental não se encontra neste ponto. No fundamento deste impasse é preciso reconhecer que Jung mostrava desde o início a sua diferença para com Freud, tanto do ponto de vista político quanto teórico. Esta diferença produzia uma tensão criativa entre eles. Com efeito, Freud pôde caminhar teoricamente com as objeções que Jung levantava, para ele, mesmo que não concordasse inteiramente com elas e vice-versa. As objeções teóricas de um e de outro os levava a produzir idéias e conceitos novos. A correspondência entre ambos está cheia de exemplos disso, daí a sua riqueza e a sua atualidade.
É justamente esta tensão criativa que quero sublinhar aqui e denominá-la de experiência da diferença. É a partir daí que podemos encontrar a fonte do que existe de trágico na relação de Freud com Jung. Se Mcguire se refere ao que há de “catastrófico” no desenlace da relação entre ambos, na apresentação da correspondência de ambos,[9] prefiro o têrmo trágico para me referir a isso, num sentido bem específico. Com efeito, o trágico é a impossibilidade do convívio com a diferença, o que há de insuportável no reconhecimento desta.
Contudo, antes de esboçar o conjunto das diferenças existentes entre Freud e Jung, é preciso indicar ainda alguns pontos que marcam o horizonte institucional desta relação. O encontro de Freud com Jung implicou na saída da psicanálise de Viena e a sua internacionalização pela via da Suiça. Além disso, a psicanálise se retirava do gueto judaico e passou a ser também aceita no universo protestante. Com isso, a psicanálise passava a ser reconhecida no universo da psiquiatria européia, pela mão de Bleuler e Jung.
Freud saiu então de seu longo isolamento, a que vai se referir posteriormente repetidas vezes, tanto com alegria quanto com tristeza. Isso possibilitou a Freud uma outra representação da psicanálise, já que lhe obsecava que esta pudesse ser encarada como uma ciência judaica. Assim, Jung e a Suíça protestante permitiram que a psicanálise ganhasse umoutro reconhecimento e até mesmo uma aura de grandiosidade, bastante distante da representação judaica. Portanto, não podemos deixar de considerar também que a importância e o valor que Freud atribuía à Jung na exterioridade deste campo de representações, independente de todos os méritos de Jung. Não podemos ser ingênuos a este ponto.
Porém, foi também no contexto desta problemática que se fundaram as diferenças fundamentais entre Freud e Jung, como veremos logo em seguida.
V. Inventário das diferenças
A diferença básica entre ambos, fonte de todas as outras, é a questão do sexual. Esta problemática seria fundamental para Freud e secundária para Jung. Com efeito, se o psiquismo era representado por Freud como tendo a pulsão como o seu solo, para Jung o pulsional não ocuparia esta posição fundante. Decorre daí o lugar estratégico que Freud atribuiu aos fantasmas sexuais e ao Complexo de Édipo, que seriam secundários no psiquismo para a perspectiva de Jung.
Assim, para o pensamento de Jung o pulsional e a sexualidade foram transformados na energia psíquica em geral, destituída pois de qualquer valor erótico no seu fundamento. Se o psiquismo para Jung admite uma energética, esta é contudo deserogeneizada. Esta energética seria representada como algo de ordem biológica, de forma a admitir uma leitura naturalista. Para Freud, pelo contrário, a energética do psiquismo seria permeada pelo erotismo e pelos seus impasses, de maneira a se delinear no horizonte teórico a problemática da morte, até mesmo no registro propriamente pulsional. Enfim, a energia psíquica para Freud é atravessada pelas marcas incestuosas do sujeito e dominada pelo desejo.
A conseqüência teórica maior, deste postulado freudiano, é a importância conferida às categorias do infantil e do arcaico no psiquismo. Desta maneira, estes registros do psiquismo estão sempre presentes na atualidade da experiência do sujeito, onde o presente dialoga com o passado durante o tempo inteiro, de forma absoluta. Em contrapartida, Jung valoriza o campo atual da experiência psíquica, não obstante a formulação da hipótese do inconsciente coletivo. Assim, as neuroses e as doenças psíquicas em geral remeteriam para um conflito inscrito na atualidade da experiência do sujeito, enquanto que para Freud o conflito atual é sempre reenviado para um conflito arcaico, fundado nos fantasmas e no Complexo de Édipo.
Desta maneira, na leitura de Jung a enfermidade psíquica seria provocada por algo que retiraria o sujeito do universo da “comunidade” e da sociabilidade, lançando-o inapelavelmente no vórtice do “egoísmo”.[10] É justamente aqui que podemos registrar a prioridade conferida à atualidade do conflito, sem referência a um tempo originário. Jung retoma aqui uma teoria psiquiátrica antiga, enunciada no século XIX por Esquirol, onde este articulava as idéias de loucura e de paixão, onde estas se opunham à experiência da sociabilidade e do compartilhamento.[11]
Nesta perspectiva, Jung acabou por identificar a psicanálise com o tratamento moral, forma de tratamento inventada pelos alienistas no início do século XIX. Assim, a psicoterapia seria a herdeira na atualidade das formas tradicionais de regulação das almas, realizadas outrora pelo poder religioso. Com isso, a psicoterapia visaria a salvação do “carneiro que se desgarrou do seu rebanho”, reinserindo-o no campo da sociabilidade e da existência em comum.[12]
Além disso, a não consideração por Jung da posição fundante da pulsão no psiquismo, lhe impede de reconhecer o estatuto de parcialidade da pulsão, que é absolutamente crucial para Freud.[13] Com efeito, para este a psicanálise é uma analítica das pulsões, justamente porque estas são radicalmente parciais, não existindo pois qualquer possibilidade de que venham a ser transformadas em totalidades. Consequentemente, a parcialidade da pulsão remete para a divisão insuperável do sujeito, para a sua fragmentação essencial e para a sua impossível unidade.
Todas estas diferenças teóricas de base reenviam para diferentes leituras do que seja o processo psicanalítico. É o método de operação deste, que está em questão. É aqui que se impõe a diferença essencial entre a análise e a síntese. Assim, para Freud o analista deveria promover a análise, como indica o seu próprio nome, isto é, produzir a analítica das pulsões pela sua desarticulação. O analisando promoveria em contrapartida as novas sínteses, as novas junções, de maneira quase automática e “natural”. Enfim, não caberia ao analista sugerir outras possibilidades de articulação, pois não deveria ocupar a posição de propor ideais ao sujeito, que realizaria à seu modo as novas junções pulsionais.[14]
Pelo contrário, para Jung seria essencial que o analista realizasse posteriormente a síntese das pulsões desarticuladas, após ter promovido o trabalho da análise. Jung temia pois a fragmentação do sujeito, a angústia advinda da perda da unidade daquele, na medida em que supunha o sujeito como totalidade. Com isso, a fragmentação pulsional sem síntese teria o risco de produzir uma experiência possível de psicotização. Consequentemente, o analista deveria propor ideais identificatórios, que como emblemas unificantes pudessem regular as novas sínteses.
Evidentemente, isso revela a diferença essencial dos dois autores face à teleologia, a uma certa concepção dos fins e da finalidade do sujeito. Assim, Jung se preocupava bastante com o futuro e o valor, como formas de retirar o sujeito do conflito atual e reenviá-lo ao campo da sociabilidade. Nesta medida, o analista seria o representante de um mundo superior e mais elevado do que aquele onde estaria o analisando, já que condensaria em si mesmo os valores supremos da comunidade.
Para Freud, isso não se colocava como questão, pois o analista não representaria este universo superior de valores, não tendo, pois , ideais e emblemas identificatórios para propor aos analisantes. Estes teriam que descobrir os seus valores próprios, baseados nas inscrições psíquicas produzidas pela sua história. Por isso mesmo, Freud dizia que ao analista caberia tão somente fazer a análise, enquanto que o analisando deveria se incumbir da síntese.
Estas diferenças revelam as diferenças de Freud e de Jung face à religiosidade. Assim, se para o primeiro estamos num mundo desencantado e sem Deus, para o segundo a divindade ainda encanta o mundo com a sua presença, mesmo que aquela seja oculta. Isso não quer dizer apenas que Freud seria ateu e representante do Iluminismo, enquanto que Jung seria um homem religioso. Esta formulação seria ingênua e de curto alcance de leitura, pois silenciaria o que é essencial nesta diferença, qual seja, as diversas concepções de sujeito que estão em questão. O que enunciei antes sobre o estatuto das pulsões, o erotismo, o método de tratamento, os ideais, e a fragmentação e a totalidade remetem todas para esta problemática essencial, isto é, as diferentes concepções de sujeito que estão em questão.
Com efeito, para Freud o sujeito é essencialmente fragmentado, para sempre dividido, em conseqüência da parcialidade das pulsões que lhe fundam enquanto tal. Para Jung, o sujeito é unidade e totalidade, justamente porque não admite a condição parcial das pulsões. A questão da religiosidade se inscreve justamente aqui, pois para Jung a divindade é fonte da unidade possível do sujeito e da não parcialidade das pulsões, enquanto que para Freud a ausência da divindade coloca o sujeito face ao seu desamparo radical,[15] advindo da parcialidade das pulsões, da sua fragmentação essencial.
No registro mais radical da experiência clínica esta diferença se revela nas diferentes leituras sobre a psicose realizadas pelos dois autores. Assim, para Freud a interpretação da esquizofrenia e da paranóia lhe remete para os registros psíquicos do auto-erotismo e do narcisismo, onde a questão da fragmentação insuperável do sujeito está radicalmente colocada. A conseqüência maior disso é uma leitura das diferentes formas de delírio à partir da estrutura básica da linguagem, onde a ênfase atribuída ao sujeito, ao verbo e ao complemento permitiria compreender as diversas organizações delirantes. Além disso, a loucura é inscrita no campo da verdade, de maneira tal que o delírio seria uma forma de cura.[16]
Ao contrário disso, a esquizofrenia remeteria para um distúrbio orgânico de natureza tóxica, segundo Jung. Este sustentou sempre esta hipótese de trabalho, desde o seu célebre livro de 1907 sobre a esquizofrenia, “A psicologia da demência-precoce”, até os seus textos finais sobre isso.[17] Pela mediação desta hipótese tóxica o que está em questão é a leitura da unidade insuperável do sujeito, que apenas seria rompida em pedaços na psicose em função de um distúrbio primariamente orgânico e não psíquico.
VI Os fundamentos antropológicos
É preciso que nos perguntemos agora, para concluir, a que tudo isso que foi dito nos remete. A que nos reenvia este conjunto sistemático de diferenças, inscritas nos registros teórico, clínico, técnico e ético, dos discursos de Freud e de Jung? Suponho que estas diferenças cruciais se inscrevem em tradições filosóficas, étnicas, religiosas e éticas bem diversas, de maneira a se constituir leituras opostas da psicanálise e da psicologia analítica.Por isso mesmo, a ruptura entre Freud e Jung foi impossível de ser evitada, independente do fato das diferentes formas psíquicas de ser de um e de outro, e dos impasses institucionais que lhes impactaram. Seria na matriz diferente de pensamento, onde se regularia a produção discursiva diversa de um e de outro, que gostaria de inscrever finalmente a diferença entre estas duas leituras radicalmente opostas da psicanálise e da psicologia abalítica, respectivamente.
Assim, a concepção unitária do sujeito em Jung remeteria a tradição originária do individualismo, que se constituiu no Ocidente nos séculos XVI e XVII.[18] Esta concepção do indivíduo se articulou intimamente com emergência do protestantismo e a constituição de uma ética protestante.[19] A interlocução com Deus se realiza de forma individual, no campo da interioridade de cada um, mas a figura divina permite a constituição da comunidade dos crentes e dos fiéis. Sabe-se hoje que as origens históricas da modernidade está essencialmente ligada à construção antropológica da categoria de indivíduo na tradição protestante, na Alemanha, na Suiça e nos demais países europeus marcados pela tradição reformada.
É importante recordar aqui como sempre foi bastante complicada a relação do sujeito com a sexualidade na ética protestante. Isso se revelou historicamente tanto na tradição pietista e no discurso luterano na Alemanha, quanto na tradição calvinista na Suiça. O puritanismo é fundante da ética protestante. Enfim, a posição subalterna ocupada pelos registros da sexualidade e da pulsão no discurso teórico de Jung e a sua conseqüente concepção de sujeito se fundam nesta matriz de pensamento.
Em contrapartida, a concepção dividida e fragmentária do sujeito em Freud remete para a tradição judaica e talmúdica, onde o diálogo do sujeito com a lei ética impõe uma relação com o invisível e com a voz. Com isso, a estratégia do deciframento das escrituras sagradas remete para uma relação de interpretação do sujeito face à invisibilidade do divino, de maneira a se amplificar numa outra modalidade de discurso ético. A linguagem aqui assume uma posição crucial na constituição do sujeito. A falta se coloca assim no fundamento da relação do sujeito com a lei e a divindade.
Além disso, em Freud a ética judaica se articula com a matriz do pensamento romântico, onde a questão da divisão do sujeito ocupa uma posição essencial. Por esse viés, a divisão do sujeito se articula de outras maneiras com a questão da falta e da culpa. Nessa perspectiva, o discurso freudiano se funda na matriz de pensamento de uma segunda modernidade, constituída no século XIX, tendo pois no Romantismo o seu maior referencial.
Portanto, o discurso teórico de Jung remete aos valores inaugurais da primeira modernidade, ao passo que o de Freud reenvia para o da segunda modernidade – o que não quer dizer, evidentemente, que o fato de que o discurso de Freud se inscrever na segunda modernidade o faça superior ao de Jung, e vice-versa. Isso significa apenas que são duas matrizes de pensamento radicalmente diferentes, que constituem as condições de possibilidade para duas concepções de sujeito radicalmente opostas.
Finalmente, a leitura de Freud da psicanálise não poderia ser a mesma que a de Jung, pois o que está em questão aqui são duas interpretações antropológicas do sujeito e do psiquismo que não se superpõem e que são irredutíveis entre si. Por isso mesmo, os impasses progressivos entre Freud e Jung levaram inevitavelmente a uma ruptura radical, impossível de ser evitada, pois estavam em questão diferenças antropológicas insuperáveis.
Resumo
O autor faz uma releitura crítica da correspondência Freud/Jung enfatizando os sistemas de filiação, a metodologia e a diferença na transferência, assim como de alguns textos de ambos os autores em questão.. Os fundamentos antropológicos dos autores são revistos, concluindo-se que, devido às diferenças insuperáveis tanto na formação cultural quanto na ética religiosa, a ruptura Freud/ Jung seria inevitável.
Abstract
The author offers a critical reinterpretation of the Freud/Jung, highlighting the máster/disciple relations, the methodology and the divergente views of transference. After reviewing their anthropological foundations, the author concludes the rupture between Freud and Jung was unavoidable because of insurmountable differences of culture, ethics and religion.
[1] Freud, S. Jung, C. G. Correspondance (1906-1914). Volumes I e II. Paris, Gallimard, 1975.
[2] Jung, C. G. “Studies in word association” (1904-1910). In: Jung, C. G. Experimental Researches. The collected works of C. G. Jung. Volume 3. Londres, Routeledge & Keagan Paul, 1974.
[3] Jung, C. G. Freud and Psychoanalysis. The collected works of C. G. Jung. Volume 4. Londres, Routeledge & Keagan Paul, 1974.
[4] Jung, C. G. The psychogenesis of mental disease. The collected works of C. G. Jung. Volume 3. Londres, Routeledge & Keagan Paul, 1974.
[5] Jung, C. G. Symbols of transformations (1911-1912). The collected works of C. G. Jung. Volume 5. Londres, Routeledge & Keagan Paul, 1974.
[6] Les premières psychanalystes. Minutes de la Société Psychanalytique de Vienne. Volumes I, II, III e IV. Paris, Gallimard, 1976-1982.
[7] Birman, J. Freud e a experiência psicanalítica. 1ª parte, capítulo V. Op. cit.
[8] Freud, S. “On the history of the psychoanalytic movement”. (1914). In: The Standard Edition of the complete psychological works of Sigmund Freud. Volume XIV. Londres, Hogarth Press, 1978, p. 43.
[9] Mcguire, W. Introduction. In: Freud, S., Jung, C. G. Correspondance. Volume I. Op. cit., p. 7.
[10]Jung, C. G. “The theory of psychoanalysis”. In: Freud and Psychoanalysis. Op. cit.
[11] Esquirol, J. E. D. “De la folie”. In: Des maladies mentales. Volume I. Paris, J. B. Baillière, 1838.
[12] Jung, C. G. “The theory of psychoanalysis”. In: Jung, C. G. Freud and Psychoanalysis. Op. cit., p. 192.
[13] Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité (1905). Paris, Gallimard, 1962.
[14] Freud, S. “Les voies nouvelles de la thérapeutique psychanalytique”(1918). In: Freud, S. La technique psychanalytique. Paris, Presses Universitaires de France, 1972.
[15] Freud, S. Malaise dans la civilization (1930). Paris, Presses Universitaires de France, 1971.
[16] Freud, S. “Remarques psychanalytiques sur l’autobiographie d’un cas de paranoia (Le President Schreber)” (1911). In: Freud, S. Cinq Psychanalyses. Paris, Presses Universitaires de France, 1978.
[17] Jung, C. G. The psychogenesis of mental disease. Op. cit.
[18] Dumond, L. O individualismo: Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
[19] Weber, M. L’ethique protestante et l’esprit du capitalisme. Paris, Plon, 1964.
[MN2]Recebido!