Sobre o combate inortodoxo a uma ortodoxia triunfante.
Este será um artigo em primeira pessoa. Porque tem qualidades de relato e relatório. Não terá a objetividade da escrita científica. Mesmo porque vem de um filósofo (em crise, que é boa coisa) que calha de também ser poeta. Explicação feita.
Toda a minha já longa vida de pesquisador, que vai para mais de 50 anos, tem sido uma tão paciente e persistente quanto obsessiva procura da verdade. Dito assim parece banal. E é. Quem não procura a verdade? Refino, então: em toda a minha vida de pesquisador tenho procurado a conexão entre a verdade e o real. Já não é tão óbvio. Porque a modernidade, já talvez desde o Renascimento, cindiu as relações entre o que é real – e fica lá fora – e o que é relativo à verdade. Essa cisão tem uma pré-condição: a conversão da mais do que bimilenar busca da Verdade do Ser para a procura da garantia e certeza do conhecimento verdadeiro. Vejam que a verdade passou de sujeito a predicado nessa mudança estratégica. De substantivo a adjetivo. Não é pouca coisa, é uma das mais radicais mudanças paradigmáticas operadas na cultura, na civilização iniciada pelos filósofos do século 6º a.C. – então chamados físicos -, da qual, a trancos e barrancos, somos ainda herdeiros nesse nosso século 21. Maus herdeiros. Herdeiros em estágio terminal. Porque o certo é que vivemos numa época que decretou a pós-verdade, o que, com o mesmo gesto de enfado e impaciência, entronizou o mundo virtual regido pelos algoritmos e revogou o real e a sua verdade. A sua verdade, essa é a grande questão. Porque na maior parte da nossa longa história de 26 séculos acreditamos que há um real mesmo, independente da nossa observação, anterior ao seu conhecimento, persistente em ser o que é, subsistente, consistente consigo mesmo. Demos-lhe diversos nomes, conforme as épocas e suas possibilidades de pensar e dizer: Physis, Idea, substantia, Natura, Deus. E suas variantes. Desde a physis pré-socrática até o Deus cristão correram pelo menos dezenove séculos. É tempo. Um tempo em que a verdade pertenceu ao Real (o nome Ser foi o mais praticado para exprimir a realidade íntima do que é real). Tempo em que o Real, o Ser, deu a verdade aos homens, ou, ao contrário, a escondeu e nos obrigou a criar rigorosos métodos para desentranhá-la do caos e das aparências de real. Tempo em que possuir a verdade do real – a Verdade do Ser – foi determinante para nós, humanos, sermos o que somos, em cada época pensarmos e dizermos o que dissemos e pensamos. Para construirmos nossas cidades, e nelas os templos em que honramos nossos deuses, e as praças em que discutimos nossas ideias, votamos nossas leis, onde se fez, quando possível, justiça. Tempo em que floresceram as artes que fizeram, em cada época, nossa grandeza, e em que exprimimos o que compreendíamos do sentido de serem todas as coisas, a vida e o mundo como são, ou nos pareciam ser. Tempo em que a razão humana se aplicou a encontrar os invariantes, as leis que regem a Terra e o Céu, e produziu as maravilhosas ciências antigas. A Verdade do Ser foi muito longamente a maior inquietação e a maior riqueza da civilização que os gregos criaram, e se fundiu paradoxalmente com a civilização judaica lá pelo século 1º, e trouxe Deus, o Um único, a Verdade mais suprema, à cena. Antropologia, arquitetura, religião, educação, política, ética e direito, artes, ciências – tudo dependeu da decifração que, em cada época, os filósofos foram capazes de fazer do Real: todas as coisas, todas as gentes, todos os deuses, todas as ideias, esperanças e temores – tudo que há e produz as diversas formas de realidade em que temos, época após época, vivido. Devemos isso aos filósofos, mestres da suspeita, que não aceitaram gato por lebre, aparência por realidade. Longamente foi assim.
Até o Renascimento, o brilhante período que revolucionou a Europa entre os séculos 14 e 16. A longa duração – treze séculos! – da con-juntura da cultura grega do Ser, da razão e da filosofia com a cultura judaica de Deus, da fé e da religião, que gerou a base histórica da civilização ocidental cristã como a conhecemos e vivemos até hoje, esgotou-se aí pelo século 13, por perto de Santo Tomás. Surgiu então a (estranha) ideia de que esse tempo se intrometera entre a radiosa civilização greco-latina e o desejo de retomá-la, de fazê-la renascer. Isso conferiu ao período em que, depois de longamente ignorado, Aristóteles chegou ao ocidente latino, e pontificou (até hoje, arrisco dizer); em que se fundaram as universidades e as catedrais rasgaram o céu, o epíteto, que é um julgamento, de Idade Média, das Trevas, que precisava a todo custo ser removida para deixar brilhar de novo o sol grego, anti-aristotélico, o sol de Platão. Ora, fora Aristóteles que estabelecera essa relação intimíssima entre o Real e a (sua) Verdade. Enquanto Platão teria separado o que é da Razão – as Ideas – do que é da Natureza, a physis – as aparências, os simulacros, o erro. Sair da Idade Média significou, então, separar a razão humana pura da natureza bruta e enganadora. Significou também, logo se viu, encontrar para a natureza uma razão intrínseca, leis regentes dos fenômenos naturais, irredutíveis a uma razão demasiado humana, metafísica. Livrar a atividade racional humana dos vapores da metafísica e da sua gêmea, a teologia medieval foi então todo um programa, que se corporificou no famoso humanismo renascentista. Ao mesmo tempo, uma outra racionalidade, observacional, experimental e calculadora, iniciada por Bacon e Copérnico deu início e regeu a existência de um naturalismo renascentista. Foi como se se tivesse feito um acordo de divisão de trabalho entre a filosofia renascida e a ciência nascente: Cuidem vocês da natureza e seu caos, busquem pela observação e o cálculo as suas leis, se as houver, que nós, que não observamos nem calculamos, mas refletimos e conceituamos, trataremos do homem. – Quando a época que se convencionou chamar de o Moderno deu o ar da sua graça no século 17, estava praticamente consumado o estranhamento (hesito em dizer ruptura, mas creio que foi isso mesmo) entre o homem que pensa – que pensa ideias, não já coisas, e pensa na mente, não mais no mundo – e o real, a realidade externa, lá fora, que chega ao sujeito (o Moderno é a época da primazia dessa figura nova, o sujeito que é um eu) apenas através dos sentidos, que enganam. Um real apenas sensível, em que não vigora nenhuma sombra que seja de intelegibilidade. Um Real desertado de Verdade. A filosofia moderna, em sua primeira fase, pelo menos, do século 17 de Descartes ao fim do 18 de Kant, caprichou em excluir o Real (muito metafísico ainda, pensaram eles, com reminiscências de teologia) do plano do conhecimento. A ciência corria por fora, lidando, pela observação, a experimentação e o cálculo, exatamente com essas coisas sensíveis, mas não para conhece-las como coisas sensíveis, e sim para descobrir, fora delas e regendo seus comportamentos materiais, leis universais. A ciência veio a, parcialmente, se impor à filosofia no século 19, ainda mais triunfante no 20, e talvez só por isso o Real ele mesmo, o dos antigos gregos, não tenha sido aposentado de vez até os pós-modernos das décadas de 1980/1990 e a declaração pelo Dicionário de Oxford (2016) de que os fatos objetivos, na nossa época, valem tanto ou menos do que crenças e convicções, que é a definição mesma de pós-verdade.
É nesse contexto que minhas investigações sobre Real e Verdade vieram, ao cabo de mais de 50 anos de trabalho filosófico, tomar seu lugar de combate. Bem evidentemente, tenho a convicção e a crença (para, ironicamente, usar os termos “deles”) de que, seja lá o que for que hoje esteja encoberto pelos termos “Real” e “Verdade”, tais coisas existem, têm vigor ontológico (são mesmo algo) e se relacionam necessariamente. É, essa, uma ideia inteiramente na contramão do tempo, uma ideia velha. (Assim dizem.) Mas é por ela que vivo no pensamento. Se não houver algo de verdadeiramente real, e esse algo não for a totalidade do que existe, o universo inteiro, entraremos em mundos distópicos, apenas tecnológicos, regidos por algoritmos que comandam nossas subjetividades, nossos valores e ideias, comandados pelo imperativo do simples consumo de imagens – nós mesmos, nossos corpos, reduzidos a imagens consumíveis -, cercados de simulações de realidades virtuais, os simulacros de realidade, englobados pelos milagres da IA. É um mundo que não me agrada, mas meu desagrado está longe de justificar o empenho de uma vida em pensar na contramão desse mundo dominado pela lógica do mercado, uma lógica estendida a todas as coisas do mundo. Não é o desagrado. É que simplesmente não me parece verossímil que a realidade contemporânea se totalize nas dimensões que referi. Porque há pessoas reais, vidas comuns, a fome e a exclusão da vida de consumo verdadeiramente atingem, em diferentes graus, meia humanidade. Há como que um dever moral de mover o pensamento para a proximidade dessa realidade verdadeira. A filosofia precisa abandonar, pouco que seja, seu cacoete epistemológico moderno para mergulhar na vida: um destino ético e político. Há o risco de que, se não o fizer, e a tempo, o império do Mundo Virtual se feche sobre nós, as utopias de um mundo melhor caduquem de vez (já andam bem combalidas) e as distopias, os mundos sem sentido humano, pós-catastróficos, açambarquem o planeta. – O temor, o desconforto, o espanto (Sócrates nos ensinou que é o espanto que move o pensamento), a esperança e o projeto estão aí. O que não está são os fundamentos, as bases realistas para um rigoroso – e generoso – empreendimento crítico para a filosofia hoje. Ela, a filosofia, foi despachada para o museu das velharias junto com o Real e a Verdade. As ciências sociais e humanas são capazes de lidar com essas realidades vivas da pobreza, do abandono das certezas, do primado das crenças sobre os fatos, da humilhação da vida. Lidam, conhecem, mostram. Mas não refletem. Não podem, não está no seu DNA. E o puro conhecimento, sem a reflexão, não alcança a dimensão do sentido. E se há o que faça falta, hoje, é sentido. É compreensão profunda. Esse sempre foi o trabalho da filosofia. Mas nesse momento ela não encontra chão firme para exercê-lo. Pantanizou-se.
Encontrar um chão, um fundamento, tornou-se então um objetivo a ser obsessivamente buscado. Tenho feito isso nos últimos vinte e tantos anos. E creio ter encontrado dois. O pensamento pré-socrático. E a cosmologia, a metacosmologia, talvez, como Mário Novello a propõe desde o seu Manifesto cosmológico pelo menos. Um fundamento é a mais remota experiência filosófica (século 6 a. C.), anterior ao começo oficial da filosofia (século 4 a. C.) com Sócrates, Platão e Aristóteles. Anterior tem aqui uma vantagem: o pensamento pré-socrático não foi “contaminado” pela história, posterior, da filosofia, não foi alcançado pela sua deriva moderna. Para os efeitos que tenho em vista, ele pode nos fornecer um modelo virgem sobre Real e Verdade. O outro fundamento, a cosmologia, é o que há de mais avançado no momento em que escrevo esse artigo. Não é filosofia, é ciência (o que pretendo pôr para render a meu favor). Em comum, esses dois fundamentos têm a mais radical qualidade: ambos tratam da totalidade do que existe. E nessa nossa era antropocênica a vida, o mundo, a natureza – o planeta – não se movem mais em partes. A arcaica oposição excludente de cultura e natureza vai perdendo seu vigor. Um morcego veio nos dar o beijo da morte. Tivemos de nos lembrar que somos um animal entre animais. Animal rationale, disse Aristóteles. Tínhamos ficado com a razão e exilado o corpo para a natureza, o perigo e o caos. Ele voltou. Vamos nos acostumando (muito pouco, é verdade) com a ideia de que fazemos um com a natureza, que a nossa casa já não é tanto a nossa rua, a nossa cidade quanto o planeta.
O pensamento dos filósofos inaugurais (século 6º), depois arbitrariamente chamados “pré-socráticos” teve a intuição da totalidade. O uno e o múltiplo, a permanência e a dispersão, a concentração e o espalhamento, tudo se reunia na dinâmica de duas forças cósmicas. (Cósmico significava então equilíbrio, justeza, harmonia de tudo com tudo.) Chamaram-se logos e physis. Antes das interpretações deformantes de “razão” – qualidade humana – e “natureza” – o oposto ao humano, o que objeta, objeto, o “lá fora”, logos e physis foram entendidas como a conjunção indissociável de unidade e multiplicidade que abriga todas as coisas – homens, deuses, pedras, animais – na complexa trama de tudo com tudo. Sem fora, sem resto, sem exclusão. O Real era o Todo, era tudo. Nada de “ser” versus “aparência”. As aparências eram, então, o transparecer de tudo que é, ora mostrando-se, ora escondendo-se. Como dia e noite. Sem noite obviamente não há dia – nem, aliás, noite. Há entre eles uma tensão harmoniosa: a luz de um esconde a sombra da outra – mas a sombra permanece lá, no seu retraimento natural, assim como, quando é ela que se dá, a luz se recolhe, mas não acaba de ser. Os pré-socráticos pensaram a partir da intuição dessa unidade completa, mas dinâmica: o dia não exclui a noite, pede-lhe licença para se apresentar – e a noite, sem opor resistência, recua ao longo da aurora. Na luz ainda noturna da aurora os diferentes se tocam, e devagar um vai predominando. Não há catástrofe, violência, exclusão. Heráclito, um dos muito grandes desse período, escreveu: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia.” (Heráclito, fragmento 8, trad. Emmanuel Carneiro Leão, Coleção Diagrama, Rio: Tempo Brasileiro, 1980). Está tudo dito aí sobre como foi pensado o Real antes do advento do império das identidades e diferenças absolutas.
E a verdade? A verdade está contida no Real, faz parte do seu movimento. Sem a pretensão de definir – os pré-socráticos não admitem definição no seu pensamento -, não seria incorreto dizer que a verdade é o Real em movimento. Falei de dia e noite. Agora posso arriscar: a verdade é a fruição da aurora. Nela, aurora, vela-se a noite e desvela-se o dia. Mas o dia conserva a noite em si: “O contrário em tensão é convergente […].” A verdade é da natureza. Não é produto de um discurso bem calibrado, com bom método, dito de fora. Nós, humanos, não estamos fora, dando dessa posição objetividade à natureza, e discorrendo sobre ela nos nossos termos, que, de longe, anulam a vivacidade verdadeira – verdadeira em si – de tudo que existe. Não foi assim na experiência (sublinho experiência) dos pré-socráticos. Os humanos pertencem ao movimento de mostrar e esconder, acender e apagar, que são o Real e sua Verdade. A tentação de sair e julgar existe, é da nossa prepotência, é nossa hybris, nossa demasia: querer sempre mais do que somos. Mas o mesmo Heráclito alertou, falando do logos, a força cósmica de reunião e conservação de tudo, que igualmente se dispersa, diferencia e multiplica: “Por isso é preciso seguir o-que-é-com” [o logos], “isto é, o comum; pois o comum é o-que-é-com. Mas, o logos sendo o-que-é-com, vivem os homens como se tivessem uma inteligência particular.” (Heráclito, fragmento 2, tradução de José Cavalcanti de Souza, São Paulo: Abril Cultural, 1973.) Claro, as inteligências são particulares. Heráclito possuía uma. Com ela escreveu seu livro. Mas ela não determina o que o Real é. É o Real ele mesmo que se dá (e se esconde). É o que é comum a tudo, inclusive nós, humanos, que cometeríamos um gravíssimo erro em nos separarmos dele pelo orgulho da nossa inteligência particular. Um século depois, os sofistas cometerão esse erro, os filósofos posteriores o encamparão, e nunca mais, até hoje, voltaremos à compreensão simples de que pertencemos a tudo que existe a mesmo título que uma pedra ou um regato. Com uma diferença importante, que nos singulariza entre tudo o mais (a pedra, o regato igualmente possuem qualidades que os singularizam, a dureza, a fluidez, qualquer outra): nós somos os guardiões da aurora. Nós sabemos dela, estamos atentos ao mostrar e esconder, somos capazes de viver na dimensão da Verdade. Nosso modo de pertencermos ao Real, nossa maneira de sermos (tudo é) pode ser essa: nossos olhos se banham na aurora, experimentamos o sabor (sabor/saber) do “contrário em tensão”, da “mais bela harmonia”.
Depois, no século 4º a. C., o grande Aristóteles condenou os pré-socráticos como não-filósofos. Tinha seus motivos, que não são mais os nossos. Mas o fato é que esses altíssimos pensadores foram silenciados por vinte e três séculos! Até o 19, quando o novo espírito histórico os resgatou. Até hoje não sabemos bem o que fazer com eles. Aristóteles e a filosofia toda – e a ciência toda – fecharam a porta de acesso a essa belíssima experiência. Mas hoje precisamos desesperadamente dela. No antropoceno, era em que estamos embolados com a natureza, quando as zoonoses nos lembram da nossa animalidade natural, quando falamos em meio-ambiente, mas continuamos a nos comportar como se nosso lugar próprio fosse esse fora que criamos (os sofistas criaram, no século 5º a. C., para se protegerem do caos). Voltarmos a estar dentro, a encontrar aí o nosso lugar natural, a lidarmos amorosamente com tudo que existe, a nos movermos junto – nos co-movermos – é condição necessária para a sobrevivência dessa espécie e sua morada, o planeta. Não temos sabido adquirir essa astúcia e sabedoria. Estamos despreparados para ela, por excesso de distância, pelo desejo de fria objetividade a que a filosofia nos submeteu. E depois as ciências e as tecnologias.
Mas não todas as ciências. Não a cosmologia. – Acompanho aqui Mário Novello e sua convicção da necessidade de uma meta-cosmologia. Outras cosmologias há. Essa é a minha. Essa é a que me permite a seguinte ousadia: a cosmologia pode ser, no modo da mais avançada ciência, o retorno da grande experiência pré-socrática. Porque nela o Cosmos verdadeiramente é o que é. Não é o discurso sobre ele que o constitui como objeto de ciência. Quando o James Webb registra aquelas estonteantes fotos do fundo do universo ele sem dúvida distorce aquilo que está fotografando. Depende da qualidade das lentes, de angulações, depende de tecnologias. – Ouço já o agrado com que os físicos quânticos receberiam essa afirmação: afinal, o observador – James Webb – pelo ato de observar – as fotografias – deforma o observado – o universo. É verdade, nesse nível científico-epistemológico. Incerteza, incompletude, tudo isso está correto e é valioso. Nesse nível. Mas seu alcance não é universal. Em outro nível, que me arrisco a nomear com a antiga e desvalorizada palavra ontológico, o cosmos é intrinsecamente, realmente, verdadeiro. Porque, quando o James Webb o registrou ele já havia ocorrido, de fato. O supertelescópio registra, como presente lá no remoto céu, o passado. E não é capaz de deformar o passado. O que aconteceu, o passado verdadeiro, verdadeiramente aconteceu. Que não sejamos capazes de ter acesso a ele senão deformado por tecnologias não anula, sequer arranha a superfície do fato de que o que aconteceu realmente aconteceu, é totalmente verdadeiro. Aconteceu na ausência de qualquer observador, de nenhuma observação e tecnologia de observação. É verdadeiro em si.
E mais (segundo a belíssima hipótese de Novello em seu Manifesto Cósmico): as leis segundo as quais o cosmos verdadeiramente ocorre não são determinadas pelas leis físicas que “descobrimos” para dar conta da objetividade do mundo físico a que só temos acesso (acesso científico, é necessário precisar) pelo discurso. Nós narramos as leis físicas do universo próximo observando, medindo e calculando. Mas não somos capazes de replicar esse comportamento para a totalidade do cosmos: ele, na sua história, fabrica suas leis. As leis cósmicas não são descobertas. Elas são feitas. E essa é a verdade do universo. O universo vive permanentemente segundo sua própria verdade. E a verdade é, nessa medida, real, antes de ser, derivada e imperfeitamente, discursiva.
Não me convence, em geral, a “teoria da ferradura”, segundo a qual no final das contas os extremos se aproximam. Meus colegas das humanidades gostam de aplicá-la à política, às ideologias. É ela o fundamento da estapafúrdia “tese” de que o nazismo é de esquerda, entre outros motivos porque, afinal, é um nacional…socialismo. Mas segundo o caminho de pensamento que venho fazendo aqui, não posso deixar de pensar que, nesse caso, a teoria vale. A cosmologia (pelo menos a que Novello propõe) encontra-se com o modelo pré-socrático de Real-e-Verdade. Com as devidas distâncias, naturalmente. Uma foi o início verdadeiro da filosofia (mas é bom não esquecer que aqueles filósofos foram chamados de físicos..). A cosmologia é uma ciência, a mais de ponta, a mais sofisticada do nosso tempo. Mas talvez “ciência” já não queira mais dizer, hoje, o mesmo que Galileu determinou nos seus Discorsi e dimonstrazioni matemathique intorno a due nuove schienze… A física quântica, por exemplo, veio a ter um impacto epistemológico, portanto originariamente filosófico, sobre todo o saber, inclusive o das humanidades, no século XX. Não era o papel da ciência. Bem que Newton se aplicou fervorosamente a fazer equivaler suas descobertas científicas com o texto das Escrituras. Mas sua intenção era a de demonstrar que a nova ciência matematicamente demonstrável de que tratou Galileu estava de acordo com o que até pouco tempo se chamava ciência sagrada, a teologia e a Tradição, que, essas sim, tiveram longamente o papel de determinar o que podia ser pensado e dito, o papel implícito de uma epistemologia necessária. Não estou insinuando que a física quântica, com seus princípios necessários (no léxico filosófico “necessário” significa “o que não pode deixar de ser”) de incompletude e incerteza esteja nessa movência newtoniana. Proponho apenas, muito mais modestamente, que há embutida nela certo ar filosófico, que acabou, inclusive, segundo alguns, por dispensar a filosofia. Agora acrescento: há igualmente na cosmologia um ar de família que a aproxima da filosofia, muito especificamente da condenada, abandonada, ressurreta e ainda desaproveitada filosofia pré-socrática. Confesso que o prefixo meta que Novelo propõe me alertou para essa proximidade. Não pôde deixar de me lembrar a meta-física, a mais importante das disciplinas da filosofia clássica. Nesse prefixo pode estar em silêncio, esperando a hora de falar, a oportunidade de a ciência recuperar a mais originária filosofia. Uma que já-não-mais, a dos pré-socráticos. Outra que ainda-não, a meta-cosmologia. Nessa suspensão expectante do tempo elas poderiam, quem sabe, se encontrar. E teríamos finalmente um modelo de habitarmos o planeta, de pertencermos ao cosmos conveniente à nossa perigosa época.
Essa é a hipótese – melhor diria, a esperança – com que tenho trabalhado nos últimos cinco anos. Não é óbvia. É, tanto quanto posso avaliar pelo silêncio que a cerca, solitária. E é, para dizer o mínimo, dificílima de pôr de pé. É só imaginar a infinidade de mediações necessárias para fazer o modelo metacosmológico aterrissar na exiguidade do planeta que é a nossa casa, a casa que expoliamos. Do imensamente global ao microcosmicamente local, do cosmos que produz suas próprias leis ao longo da sua história à Terra a que impomos nossas leis segundo a nossa própria história. Não é um programa para se fazer sozinho entre o silêncio da biblioteca e a boa agitação das salas de aula. Apesar disso tenho feito, especialmente nos meus quatro últimos cursos no Doutorado da Escola de Comunicação da UFRJ, sucessivos ensaios. E tenho andado em círculos. Já comecei a me repetir. Sinto que cheguei ao limite do meu pensável. E vou “dar um tempo”. Sou um ruminante. As ideias irão e virão, espero, e um dia alguma coisa aparecerá que me permita sair do círculo da repetição e dê impulso para andar em frente.
Nesse último semestre (2023-1) fiz, como ultimo recurso, um experimento mental. Montei um imperfeito “jogo de xadrez” (imperfeito: não havia bispos, nem cavalos, e só um peão em cada lado do tabuleiro) entre uma equipe liderada pela Pós-verdade (na posição de Rainha, tendo como Torres os Pós-modernos e a epistemologia e como peão a física quântica) e a equipe que tinha como Rei os pré-socráticos, como Torres Aristóteles e a Poética e a cosmologia avançada como peão, cara a cara com a física quântica. Não cabe aqui explicar o sentido da presença de cada peça. Cabe dizer que o jogo obedeceu, no possível, às regras do xadrez, e foi jogado muito honestamente, sem truques para facilitar a vida do meu pessoal, que naturalmente era o dos pré-socráticos, de modo nenhum o da pós-verdade. Isso posto, ao cabo de três aulas de movimentos no quadro negro, perdemos. Entre outras baixas, a Rainha “deles”, a Pós-verdade, eliminou a cosmologia e deu um xeque mate no “nosso” Rei, os pré-socráticos. Tomei essa derrota como um espelho realista da situação atual do mundo, do destino triste do Real e da Verdade que o espírito da Pós-verdade eliminou, e do estado em que se encontra, se ainda se encontra, o pensamento crítico e radical que a filosofia exerceu por vinte e seis séculos. Por isso parei e estou à espera. Atento ao cair da noite, como a coruja, o pássaro da filosofia. Hegel afirmou, na sua Filosofia do Direito, que “a coruja de Minerva levanta voo ao cair do crepúsculo”. Deixemos então a noite cair.