Algumas ponderações sobre o ensino digital
RESUMO: O presente artigo realiza algumas ponderações sobre o ensino a distância, considerando uma nova forma de ser sujeito no que Byung Chul Han chama de “era do enxame digital”. O artigo tem por objetivo problematizar a possibilidade de uma educação emancipadora no automatismo da Infocracia.
PALAVRAS-CHAVE: Educação a distância. Ensino Digital. Enxame digital. Infocracia. Emancipação.
ABSTRACT: This article makes some considerations about distance learning, considering a new way of being a subject in what Byung Chul Han calls the “age of the digital swarm”. The article aims to discuss the possibility of an emancipatory education in the automatism of Infocracy.
KEYWORD: Distance learning. Digital learning. Digital swarm. Emancipation. Infocracy.
1. INTRODUÇÃO
Quando se parte da abordagem filosófica, jamais se parte de dogmatismos. A atividade filosófica é a atividade que oferece possibilidades de experiências de pensamento, sem a pretensão de eleição da experiência verdadeira ou definitiva. Da mesma forma, a atividade filosófica também não se caracteriza por uma atividade de combate ou disputa argumentativa. Assim, ao propor algumas ponderações sobre o ensino digital, o presente artigo não visa colocar-se em posição de confronto frente aos que celebram os novos tempos da educação, sobretudo em razão de sua inserção no mundo tecnológico.
Ao levantar algumas ponderações sobre o ensino digital não se trata de proferir enunciados assertivos, mas antes, de propor uma problematização, de se questionar sobre as consequências do ato de aprender em uma nova forma de ser sujeito. Porque evidentemente, os novos tempos produziram um tipo de sujeito que antes não existia – um sujeito permanentemente implicado com interações digitais. E esse sujeito, com os hábitos que lhe são próprios, será também sujeito do processo educativo. Nesse sentido, trata-se de pensar e de trazer à superfície ponderações sobre o quanto essa nova realidade educacional efetivamente permite uma experiência emancipadora, livre e criativa.
- DADOS DO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL
Em razão na pandemia de Covid 19 que assolou a todos desde o início de 2020 e que, no Brasil, impôs a implementação do “ensino remoto”[1] em março do mesmo ano (perdurando, em diversas instituições, até os dias de hoje) a experiência com o ensino digital ganhou proporções nunca vistas em nosso país e mesmo no mundo.
Por outro lado, mesmo se não se considerar o cenário pandêmico, aqui nas terras de Pindorama a Educação a Distância multiplica-se vigorosamente e seus números são cada vez mais expressivos e determinantes no modo como se pratica e se estuda no Brasil. Segundo os dados do Censo da Educação Superior 2020, divulgados pelo INEP, o número de inscritos em Ensino a Distância no Brasil pela primeira vez superou o número de inscritos no ensino presencial, tanto na rede pública quanto na rede privada. De acordo com os número, dos mais de 3,7 milhões de ingressantes de 2020 nas instituições públicas e privadas, mais de 2 milhões (53,4%) optaram por cursos na modalidade EAD e 1,7 milhão (46,6%) optaram pelos cursos na modalidade presenciais. Há que se registar também que, nos últimos 10 anos, o número de matriculados em cursos EAD aumentou mais de 400%. Além disso, enquanto que a oferta de vagas nos cursos presenciais experimenta ligeiro aumento (1,3%), o número de vagas nos cursos EAD em apenas um ano (de 2019 para 2020) aumentou 30%[2].
Ou seja, os números mostram que a Educação a Distância expande-se vigorosamente e que, a assim continuar, o ensino superior no Brasil caminha para se tornar (praticamente) ensino digital. Dada a dimensão territorial brasileira e as profundas desigualdades existentes entre as diferentes regiões e localidades, os argumentos a favor dessa expansão, de modo geral, se baseiam nas dificuldades de acesso do estudante à educação presencial em razão das centenas de quilômetros que o separam de uma Instituição de Ensino Superior, da ausência, muitas vezes, de transporte para realizar esse percurso, dos valores gastos em deslocamento e alimentação, do cansaço adicional que a falta de uma Instituição próxima acarreta e todas as demais consequências para a vida do aluno decorrentes dessas aqui mencionadas questões.
2. OS NOVOS HÁBITOS DO SUJEITO DIGITAL
Ainda que esses argumentos sejam legítimos, é preciso colocar as coisas em outro nível de apreciação e reflexão, porque a vida digital transforma o comportamento, a percepção, o pensamento do sujeito, isto é para a vida humana em geral e é preciso avaliar o que isso acarreta, em especial, na área da educação.
Antes de tudo é preciso pensar que os hábitos das interações digitais não são exclusivos para o tipo de atividade proposta. Ou seja, os hábitos que o sujeito digital adquire em seu cotidiano digital não serão distintos no momento das atividades educacionais. Tudo o que se experimenta nas interações permanentes nas redes sociais, na internet, nos canais de comunicação, constroem um novo sujeito e é este novo sujeito, formado a partir da realidade digital, que, diante de uma tela, assistirá aulas, fará suas atividades acadêmicas e se constituirá como sujeito do processo de conhecimento.
Curiosamente, embora se use o nome consagrado de Educação a distância, por se inserir no universo das práticas digitais, o que o ensino visual faz, assim como as demais formas de comunicação digital, é desconstruir a distância. Byung Chul Han em seu livro “No enxame”, explica que no mundo digital todos são simultaneamente remetentes e destinatários, consumidores e produtores, em uma espécie de refluxo comunicativo (2018, p. 16). Ora, se a atividade da educação passa a se inserir e, mais do que isso, funcionar pela vida digital, há consequências importantes a se tirar daí.
Para o autor coreano, a contemporaneidade não mais se define como uma “era das massas”, mas sim como a era do “enxame digital”. No enxame não habitam almas ou espíritos, mas sim indivíduos singularizados que nem mesmo se constituem como uma voz, mas sim como um barulho efêmero e instável (2018, p. 27). Em razão do caráter individual dos que compõem o enxame não é possível desenvolver o sentido de “nós”, de união em razão de um propósito ou ação. Logo, estes sujeitos não podem compor um grupo político, não podem compor uma coletividade de proposições de transformação, traço essencial da educação, pois se a educação não for transformadora ela nada frutifica. Os membros do enxame estão sempre prontos a uma dissolução rápida, a uma ruidosa aparição e não a uma formação comunitária. E se é assim, isto é, se os membros do enxame estão destinados a relâmpagos de existência, como constituir, pela educação, um mundo ausente? Como fazer surgir a vida que se deseja mas que ainda não existe?
O sujeito digital não apenas consome informações de modo passivo, mas quer (e o faz constantemente) produzir informações e as comunica ativamente, sendo ao mesmo tempo consumidor e produtor de informação. A “janela” se abre não apenas para ver, mas também para ser visto, em um fluxo e contrafluxo contínuo de consumo e produção. Assim, todos estão acostumados a falar, a apresentar a sua “opinião”, na mesma medida que ouvem a “opinião” do outro. Não é possível ao sujeito digital ouvir sem falar. Na instantaneidade da reação midiática, tudo que se escuta deve ser objeto de réplica, resposta ou performance.
3. A PROLIFERAÇÃO DA DOXA NA SOCIEDADE DO ENXAME
Ora, quando os gregos inventaram a filosofia, eles foram rigorosos em não fazer da filosofia uma tagarelice, uma discussão ou uma troca de opiniões. Em verdade, a doxa é o primeiro e permanente inimigo da Filosofia. Como ensina Deleuze, se a filosofia é criação de conceito, é porque ela não se reduz a uma livre discussão entre amigos. Diz o filósofo francês: “De fato, Sócrates tornou toda discussão impossível, tanto sob a forma curta de um agôn de questões e respostas, quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos. Ele fez do amigo o amigo exclusivo do conceito, e do conceito o impiedoso monólogo que elimina, um após outro, todos os rivais” (1992, p. 42).
O ensino na era do enxame se torna palco do combate acalorado de opiniões, o combate reativo e midiático, que não fazem o ensino avançar. Afasta-se cada vez mais da referência conceitual para se perder em generalidades vazias e em uma pseudo-dialética fruto do hábito de consumir e produzir. As ideias se vulgarizam, perdendo sua dimensão criativa e problemática. Sob o nome de participação e engajamento encontra-se apenas a cansativa reprodução do mesmo e a total ausência de pensamento.
Nesse sentido, Byung Chul Han lembra que a “verdade” em Heidegger ama se ocultar, devendo ser arrancada do seu velamento, o que justamente falta à informação ofertada em demasia no mundo digital. Diz o autor: “Por causa da sua positividade, a informação também se distingue do saber. O saber não está simplesmente disponível. Não se pode simplesmente encontrá-lo como a informação. Não raramente, uma longa experiência o antecede. Ele tem a temporalidade completamente diferente do que a informação, que é muito curta e de curto prazo” (2018, p. 75). Ou seja, a educação digital favoreceria a multiplicação de informações, mas não seria suficientemente pedagógica como construção do saber. Este novo sujeito talvez já nem disponha dos hábitos e práticas necessários da temporalidade própria do desvelamento.
É preciso, pois, voltar a uma distinção preliminar posta por Platão no início da história da filosofia: a existência do mundo da doxa (ou da informação) e do mundo da episteme (ou do saber), e o constante engano que há em tomar a verdade apenas por suas sombras (2000, 514 a- 516 e). Platão, em sua alegoria da caverna fala em prisioneiros acorrentados, semelhante condição do escravizado homem digital. Assim como estes prisioneiros, vivem nas sombras do pensar, mas acreditam que estas sombras são o verdadeiro conhecimento. Acostumados às suas cadeias e às fantasmagorias da imaginação, acreditam ser aquela toda a realidade, assim como o sujeito do enxame acredita que suas práticas de interação digital, seu fluxo e refluxo constante de informações abarca o caminho do aprendizado e do livre pensar.
Se o prisioneiro de Platão era dominado por correntes que o impedia de mover e mesmo de girar a cabeça, o prisioneiro digital não mais necessita de objetivos que ostensivamente o coloquem na condição de submissão. O homem digital é prisioneiro das informações, dominado inteiramente por uma sociedade que se afirma transparente mas que oculta por completo como as subjetividades são construídas. Seu (inocente?) smartphone registra todos os seus passos, promovendo uma vigilância ininterrupta do seu cotidiano, mas tudo disfarçado de progresso, tecnologia e bem-estar.
Platão adverte que o homem que por acaso saísse da caverna e pudesse olhar na direção da luz, teria uma enorme resistência para desfazer-se de suas antigas crenças e continuaria a tomar como legítimas suas já habituadas verdades. O homem digital também acostumou-se a seus hábitos. Se o processo educacional lhe diz que essa não é a postura adequada ao pensar, ele também terá imensas dificuldades em desfazer-se das usuais ilusões. Desse modo, o ato de pensar vai atrofiando-se e reduzindo-se, se tornando, em muitos casos, um mero automatismo, uma reação sem hesitação. Bergson afirma que o cérebro é um órgão de escolha, ao passo que nos animais em que o sistema nervoso é mais rudimentar, sem elementos nervosos distintos, a reação se simplifica bastante a ponto de ser uma automação (2009, p. 9). Ou seja, é traço distintivo da evolução humana a capacidade de escolher, de hesitar, de reter o passado e antecipar o futuro. Lá, onde a vida perde o rumo da atividade livre a criação se apaga e o movimento se converte em imobilidade. A vida, prossegue o filósofo francês, é movimento imprevisível e livre e o espírito é a força que procura libertar-se de seus entraves, superar a si mesmo (2009, p. 20). É este o propósito de pensar, ameaçado pela automatismo digital que, a todo custo, visa a proteção contra a novidade e as surpresas potenciais.
O pensamento sem hesitação, apenas calculador é tão somente pensamento hiperativo, que reage de forma imediata, que empobrece a vida fazendo da superior atividade de pensar nada mais do que uma mecânica estupidez. Chul Han diz que o homem contemporâneo se torna “uma máquina de desempenho autista”, esgotado em sua comunicação sem pausa e sem interrupção (2017a, p. 56).
Deleuze, ao advertir sobre os postulados da imagem dogmática do pensamento, ensina que o processo que apenas recolhe a generalidade, que reproduz regras de solução não atinge os problemas e, por conseguinte, traem profundamente o que significa pensar (1988, p. 272).
4. A AUTOMATIZAÇÃO DO SUJEITO
De acordo com Zuboff, “não basta mais automatizar o fluxo de informações sobre nós; a meta agora é nos automatizar” (2020, p. 19, grifo da autora). Tornados idólatras da máquina (já não se consegue ficar alguns minutos sem checar o celular ou entrar em alguma rede social) porque não inseri-la definitivamente no campo da educação? Se ela é signo do progresso e das conquistas civilizatórias, como não seria benéfica à educação? Mas este mundo em que o fluxo de informações é automatizado ao mesmo tempo em que o são os sujeitos configura a era do capitalismo de vigilância: o mundo dos algoritmos e das máquinas. Segundo Zuboff, tecnologias de informação e comunicação hoje estão mais disseminadas no mundo do que a eletricidade, alcançando três dos sete bilhões de habitantes do planeta (2020, p. 14). Esta civilização da informação faz lembrar o conto distópico de E. M. Forster, “A máquina parou“, em que a máquina é idolatrada, dita o ritmo de vida dos homens chegando a ser objeto de culto, no renascimento tecno-religioso daquela civilização.
No mundo imaginado por Forster, inclusive, todo processo de aprendizado e conhecimento se dá por meio de palestras que hoje chamaríamos “on line” e, estar fora do mundo maquínico é estar “desabrigado” ou morto. Em determinado momento, um dos palestrantes sobre Revolução Francesa, diz: “Cuidado com as ideias de primeira mão!.. Ideias de primeira mão de fato não existem. Não passam de impressões físicas geradas pela experiência e pelo medo, e sobre uma base assim tão tosca quem poderia construir um edifício filosófico? Deixe que suas ideias sejam de segunda mão, se possível de décima mão, só assim ficarão longe desse elemento perturbador que é a observação direta” (2018, p. 51). E prossegue o palestrante: “Seus descendentes estarão numa situação melhor que a sua pois vão aprender o que você acha que eu acho e assim mais um intermediário será acrescentado à cadeia. E com o tempo — sua voz se ergueu — virá uma geração que transcenderá os fatos, as impressões, uma geração absolutamente sem luz própria, uma geração seraficamente livre da nódoa da personalidade” (2018, p. 52). Na obra de Forster a máquina para de funcionar e não consegue regenerar-se; a nave aérea cai e despedaça-se, como a sinalizar a catástrofe que advém de tal forma de vida.
O mundo distópico de Forster, em que se deve tomar distância das ideias de primeira mão, é o mundo antiluminista de Kant, o mundo que consagra a menoridade e o apequenamento do espírito. Em seu texto “O que é o iluminismo?” o filósofo alemão afirma exatamente que pensar exige a saída do homem de sua menoridade, isto é, da condição de ser guiado sempre pela orientação de outrem (1995, p. 11). Kant diz que ao homem não falta entendimento, portanto, seria ele perfeitamente capaz de pensar de forma autônoma ao invés de buscar essa orientação fora de si. Nos termos de Forster, o homem seria perfeitamente capaz de produzir as ideias de primeira mão, ao invés de se contentar com as ideias em sua vulgarização mais baixa. Kant diz que se o homem pode se guiar por si mesmo, mas não o faz, é em razão de uma inclinação para o apequenamento.
O filósofo alemão afirma com todas as letras que quando um livro faz as vezes de entendimento, um diretor espiritual faz as vezes de consciência moral, um médico faz as vezes de orientação dietética, o sujeito mesmo nada faz ou pensa, deixando o outro pensar ou decidir por ele (1995, p. 12). Os tutores aceitam de bom grado a tarefa de conduzir os que encontram na dificuldade de pensar, fomentando o embrutecimento, a preguiça, a covardia e o temor. O texto de Forster consagra a postura pacífica e servil dos homens frente a seus pedagogos, efetuando um ciclo vicioso de dependência desta submissão. Em consequência, como adverte Kant, a menoridade torna-se para o homem a sua própria natureza. O homem da menoridade não pensa, mas obedece; reproduz e acredita, logo não pode ser livre, mas ao contrário, “por toda parte ele se depara com a restrição de liberdade” (1995, p. 13).
5. A INFOCRACIA
Byong Chul Han diz que as características desse tempo levam a democracia a se degenerar em Infocracia (2022). Para o autor coreano, a mídia própria da democracia era o livro que promovia um discurso racional do esclarecimento. A cultura do livro promovia o discurso com coerência lógica, com ordenamento e força argumentativa, ao passo que no mundo das mídias eletrônicas esse discurso não encontra abrigo.
Compromete-se a faculdade de julgar e o próprio âmbito cognitivo. Diz o autor citando Luhmann: “informações têm um espaço de tempo muito estreito de atualidade. Falta-lhes a estabilidade temporal, pois vivem no ‘estímulo da supresa’. Em virtude de sua instabilidade temporal, fragmentam a percepção” (2022, p. 35). O ensino digital é contaminado por essas novas disposições cognitivas. As aulas precisam ser curtas – as vídeo aulas, por exemplo, devem ter entre seis a doze minutos, no máximo, não sendo possível se demorar. Seria possível, em aulas desta duração, experienciar e compreender? O tempo necessário para o amadurecimento das ideias, para a reflexão, próprios da atividade racional, desaparecem na sociedade de informação (CHUL HAN, 2022, p. 36).
Henri Bergson faz uma importante distinção entre intuição e inteligência. Em A evolução criadora o filósofo francês diz que a inteligência garante a inserção perfeita do homem em seu meio ambiente, mas somente se sente à vontade quando se encontra diante de objetos inertes e sólidos, triunfando na geometria, onde revela-se o parentesco do pensamento lógico com a matéria inerte (1979, p. 7). A vocação do intelecto é criar esquemas, mas todos os esquemas são demasiadamente estreitos para pensar a vida e, a inteligência, tão segura quando transita por coisas inertes, sente sua impotência frente à mobilidade real, à interpenetração mútua, à evolução criadora que caracteriza a vida e natureza e que devem ser objeto da atividade de pensar quando esta se dirige às suas maiores capacidades.
A inteligência, diz Bergson, não admite o imprevisível, a criação (1979, p. 148). O que a satisfaz é o determinismo, a previsibilidade, o cálculo entre antecedente e consequente. Pensar que o novo brota sem cessar e que uma forma surgiu de uma causa imprevisível ou improvável é algo que tem dificuldade de se exprimir com as ferramentas do entendimento. É porque os anseios da inteligência são muito limitados, mas o processo de pensar ao qual a educação deve insistentemente nos convidar, transborda esses limites, desimpede e desaliena o homem.
A educação pensada como pura obra da inteligência nada mais é do que um mecanicismo, um automatismo e mesmo uma representação artificial. Logo, uma atividade empobrecida, um revisionismo do mundo, uma visão incompleta e imperfeita da vida e de suas possibilidades. Mas o pensamento que salta os próprios limites da inteligência é o pensamento que leva à criação, ao novo e à liberdade. É o pensamento que se dispõe a perceber as nuances e gradações frequentemente desprezadas no processo de abstração intelectiva.
Bergson afirma que o homem possui em si algo que lhe permitiria e produzir uma consciência coextensiva à vida, pois em volta do pensamento conceitual e lógico há como que uma nebulosidade vaga, um resíduo de potências complementares ao entendimento, potências essas das quais se tem apenas um sentimento confuso quando o homem permanece encerrados em si mesmo, mas que podem se aclarar. Caberia, pois, à educação um esforço para fazer o homem dilatar-se.
Chul Han, de modo consonante, diz que a sociedade de informação é a sociedade onde se elege a inteligência, que orienta soluções e resultados de curto prazo (2022, p. 35-36). Inclusive, atrai mais a atenção as informações apressadas do que argumentos fundamentados. Não se tem tempo para ler mais do que os 280 caracteres do twitter.
Além disso, o custo para realizar todas as interações digitais, inclusive de produção de conteúdo em um canal do YouTube é nulo. De modo a se retroalimentar, a educação hoje se serve desses e meios não apenas como metodologia de ensino ou recursos para facilitar o processo interativo, mas como conteúdo a ser ministrado, chegando a se celebrar o fato de todo tópico a ser ensinado já estar disponível em sua versão “tik tok”. São vídeos de quarenta segundos a dois minutos que possuem bilhões de visualização e faz, a pedagogia pretensamente vanguardista subir a hashtag “#leanrontiktok”. A todo tempo se clama por inovação e criatividade e o professor moderno seria aquele que somente realiza a mediação de um conteúdo que já está todo ele disponível nos meios digitais.
As empresas assim consideradas especialistas em Eduacação a distância em suas capacitações aos velhos professores, acostumados com as antigas práticas pedagógicas, ensinam que não há mais necessidade sequer do professor falar, muito menos durante uma hora e meia, como se costuma fazer no modelo de aula tradicional. Deve-se escolher uma ou duas tecnologias de modo a tornar a aula mais convidativa, mais dinâmica e mais adequada ao sujeito digital. Os velhos hábitos do processo ensino/aprendizagem parecem tediosos, cansativos, requerem uma temporalidade inoportuna e, por isso, devem ser prontamente substituídos.
Outra questão importante a se destacar é o fato de que na sociedade digital a alteridade, a diferença, o estranhamento, tão necessários ao processo do conhecimento, desaparecem. No mundo narcísico da era da informação digital não se ouve a voz do outro – dá-se uma crise da escuta atenta (CHUL HAN, 2022, p. 53). A história do pensamento ocidental começa com diálogos e Platão, ele mesmo, coloca as ideias de seus adversários de forma clara e respeitosa, produzindo o seu pensamento a partir dessa experiência de alteridade. Se a pedagogia de vanguarda quer explorar as 9 horas diárias que os alunos passam na internet, é preciso considerar que esse tempo é preenchido com informações que este sujeito curte e que corrobora suas convicções, só se tornando visível a ele o que está em conformidade com suas opiniões e visões de mundo, ao passo que outras informações são retidas. É o que Eli Pariser (apud CHUL HAN, 2022, p. 53) chamou de Filter Bubble, isto é, filtro bolha que faz sempre o sujeito se remeter a si próprio. Sintetiza Chul Han: “a atomização e a narcisização crescente da sociedade nos ensurdecem perante a voz do outro…. Hoje, cada um presta homenagem ao culto de si mesmo. Cada um performa e se produz (2022, p. 55)”.
O filtro bolha traz ao sujeito somente aquilo que ele já acredita ou “curte”, produzindo um espelhamento ao infinito, uma reprodução infindável do mesmo em um delírio de desaparição de toda diferença. A ilusão de se aniquilar toda alteridade faz com que o sujeito enxergue o mundo como uma duplicação de suas ideias, o que acarreta um duplo fenômeno que se retroalimentam: do ponto de vista psíquico, essa identificação narcísica lhe traz imensa satisfação e, ao se acreditar já sabedouro das ideias, da compreensão, da problematizarão que o pensamento pode e deve realizar, este sujeito percebe que já não precisa estudar, que já não há o que aprender, que já não há o que descobrir, o que desbravar. E, quanto mais experto esse sujeito se percebe, mais satisfação narcísica ele vivencia, em um ciclo vicioso que rege seu filtro bolha.
Nietzsche (1996, p. 39) já advertia que a mais importante das exigências que se deve fazer a um leitor é a de que ele não se intrometa, que nao traga para a leitura sua formação, que não coloque sua formação como medida, como critério para todas as coisas. Ao contrário, o leitor deveria ser até mesmo desdenhoso com suas ideias e suas verdades. O ensinamento nietzscheano já parece ser impossível aos dias de hoje. A hesitação, a quebra dos ídolos, a vida antes que a verdade, tudo isso parece ser incompatível com a era digital: imediata, idólatra e aniquiladora da alteridade.
6. PODERIA SER O ENSINO DIGITAL EMANCIPATÓRIO?
As consequências de se viver no enxame não são apenas as limitações de natureza social ou política, mas também novas formas de sofrimento psíquico. O excesso de informação dos tempos modernos causa, por exemplo, a Síndrome da Fadiga de Informação (SFI), enfermidade psíquica decorrente deste excesso. Termo cunhado em 1996 pelo psicólogo David Lewis, inicialmente se referia a pessoas que, em razão de seu trabalho, estavam envolvidas com uma grande quantidade de informação. Chul Han diz que hoje (2018, p. 105), todos podem ser vítimas de SFI, porque deve-se ser confrontado com quantidade sempre crescente de informações.
Para o filósofo coreano, este excesso de informação faz com que o pensamento definhe, uma vez que se perde a capacidade analítica, isto é, a capacidade de deixar de lado o que não é essencial ao objeto em questão. Diz ele: “a enxurrada de informações à qual estamos hoje entregues prejudica, evidentemente, a capacidade de reduzir as coisas ao essencial.” (2018, p. 105). Se Bergson diz que o cérebro é órgão de escolha, não é a maior quantidade de informação que ocasiona a melhor escolha, que produz o melhor esclarecimento e a melhor ideia. Diz Chul Han, “a partir de um determinado ponto, a informação não é mais informativa [informativ], mas sim deformadora [deformativ], e a comunicação não é mais comunicativa, mas sim cumulativa” (2018, p. 106). Ou seja, voltando à alegoria platônica, ter acesso à informação não é sair da caverna; não é trazer luz à escuridão; não é vencer o mundo enganoso da aparência, mas antes, é aprisionar-se na caverna digital.
A educação por si só não é emancipadora, assim como nem toda ciência ou mesmo nem toda filosofia o é. Muitas vezes o homem se julga esclarecido e nem se dá conta da falsidade de sua crença. A tarefa de pensar exige autonomia, produção e saída da naturalidade do senso comum. É tarefa árdua e mesmo anti-natural e não pode cair nas ilusões dos simplismos e das facilidades da sociedade de transparência digital. “O imperativo da transparência acelera a comunicação, eliminando toda e qualquer negatividade, diante da qual seria necessário haver um demorar-se, um manter-se junto de, um hesitar” (CHUL HAN, 2017b, p. 205). Ou seja, a linguagem maquinal que se coloca no centro da atividade de pensar hoje aniquila a complexidade, a ambivalência. Em consequência, a verdadeira atividade de pensar sequer é conhecida. Pensa-se que com o mínimo esforço e com as repetições infindáveis do excesso de informações está-se no caminho da cultura, da vanguarda, do protagonismo educacional.
Adorno enfatiza a relação entre educação e emancipação e destaca a incompatibilidade entre emancipação e o estado de menoridade tal como foi definido por Kant. Adorno afirma que, ao acompanhar a literatura pedagógica, ao invés de encontrar a decisiva posição em favor da emancipação, encontrou as ideias de autoridade, compromisso e ideias afins, que em realidade sabotam o conceito de emancipação (2020, p. 188-189).
Adorno considera que a questão mais urgente da educação nesse tempo é a desbarbarização. Lembra o autor que embora se viva na civilização de mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas estão tomadas por uma “agressividade primitiva, um ódio primitivo… um impulso de destruição” (2020, p. 169). Seria uma coincidência ou haveria aqui uma relação de causalidade? E, nesse sentido, em que medida a educação digital pode, efetivamente, levar o homem à emancipação? Ou ela condenaria o homem aos simulacros de ensinar, aprender e transformar mundos?
Estaria o ensino digital apto a fazer aparecer a força do pensamento? Estaria ele habilitado a revelar a mentira de determinados ensinamentos, o apequenamento da vida quando capturada pela razão ou por paradigmas idólatras? Ou será que ele condena os homens a serem simulacros sem força, sufocados no mar das informações, capturados na reatividade da doxa?
Festejar o progresso da educação digital talvez seja o modo de fazer triunfar não o pensamento com todo o seu vigor, mas sim os seus fantasmas, de modo a aniquilar a vida ativa e exigente da atividade de pensar. Seria o progresso uma superstição?
Artaud faz uma distinção entre instrução e cultura. Para ele, é possível que o homem seja instruído e não seja culto, posto que a instrução “é uma vestimenta… é um verniz, cuja presença não implica necessariamente ter assimilado esses conhecimentos. A palavra cultura, ao contrário, significa que a terra, o húmus profundo do homem foi lavourada” (2021, p. 45, grifo do autor). Nesse sentido a formação superior pode oferecer instrução, mas seria deficiente enquanto formação cultural. A cultura, enquanto lavoura da alma há que produzir uma modificação integral, não apenas naquele indivíduo que estuda, mas na própria compreensão do que é ser homem, na própria compreensão dos horizontes da vida humana.
Colocar-se na condição de sujeito que pensa é poder desfazer-se de todas as ideologias e construções que buscaram mascarar e afogar o pensamento. É vivenciar o ainda não dito, não visto, não elaborado. É abrir-se para o que está além da comodidade, do interesse imediato, da obviedade naturalizada. Em outras palavras, é uma forma de crescer em potência de vida e pensamento.
Guattari, que não chegou a ver o atual funcionamento do mundo digital, em seu texto As creches e a iniciação diz há um adestramento precoce das crianças. Adestramento este que não se dá mais com castigos físicos ou formas de humilhação, mas sim com a tecnologia digital, com técnicas de impregnação audiovisuais que fazem, em relação aos jovens, um trabalho de coerção e controle social com muito mais suavidade e profundidade e, portanto, com muito mais eficácia. E, “quanto mais precoce for a iniciação, mais intenso e duradouro será o imprinting do controle social” (1987, p. 53, grifo do autor). Pensa-se que o processo educacional humanizou-se, mas a crueldade agora veste roupas novas, uma vez que cada mais cedo extirpa-se da criança sua capacidade de expressão autônoma e impõe-se sobre ela um controle ainda mais rígido e perverso, porque a adesão a ele é espontânea e indiscutível.
Diz o filósofo francês: “os sistemas capitalistas e socialistas burocráticos haviam confiado ao pessoal das escolas uma tarefa capital: a de adaptar a criança ao saber e aos valores da sociedade dominante. As máquinas audiovisuais fazem hoje esse trabalho certamente melhor que qualquer atendente ou educador (1987, p. 54). Ou seja, o processo da educação audiovisual (e, agora poderíamos dizer, digital) se massifica e é entusiasticamente difundido e implementado em razão de sua maior eficácia no processo de controle e dominação, isto é, na eliminação das forças emancipatórias, das tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais existentes, cuja tarefa óbvia deveria se dar pelo processo da educação.
Ao invés de produzir o homem automatizado do mundo de Forster, uma educação verdadeiramente emancipadora deveria engendrar as condições de criação e desenvolvimento de formações de subjetividade inusitadas, jamais vistas, jamais sentidas. A esse sujeito abre-se como horizonte novas formas de engajamento ético, político e estético, um desbravamento por novos territórios, de modo a se criar um novo gosto pela vida.
Referências
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PLATÃO. A República. 3. Ed. Belém: EDUFPA, 2000.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
[1] Cumpre observar que o chamado ensino remoto foi adotado pelas Instituições de Ensino em razão de encontrar uma saída alternativa à impossibilidade dos encontros presenciais e o consequente contágio do vírus que isso poderia acarretar e à necessidade de se manter as aulas de modo a não se paralisar as atividades de educação. Entretanto, embora a PORTARIA MEC Nº 343, DE 17 DE MARÇO DE 2020 autorize o ensino remoto enquanto durar a situação pandêmica, o modelo remoto não compõe as formas de modalidade legalizadas no país, a saber: ensino a distância, ensino semi-presencial e ensino presencial.
[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2022-02/censo-matriculas-em-cursos-superiores-de-ead-superam-presenciais.