O erotismo como caminho não ortodoxo do pensamento
1 Introdução
A impotência da ciência em assimilar o que se recusa às classificações, às leis, à medida traduz o gosto pelo que Bataille chama de homogêneo, cuja natureza é própria às praticas cientificas ortodoxas. A ciência ortodoxa tem uma dificuldade interna fundamental: ela falha em abordar o não explicável, em abordar aquilo cuja matéria é anterior à redução intelectual (2022, p. 29). Mas a violência, a desmesura, a loucura, a conformidade com sentimentos extremos, o inconsciente, trazem a realidade da força que rompe o curso regular das coisas, trazem o contraste com a vida comum, ordinária e revela o incomensurável, ao mesmo tempo que explicita o quão fastidioso e impotente é a homogeneidade tranquila.
Georges Bataille nos ensina que alguns comportamentos não podem ser inteiramente assimilados aos dados da ciência, poderíamos dizer, pelo menos não de uma ciência ortodoxa. Em sua obra, é o conceito de Erotismo que possui um sentido que a atitude científica não pode captar (1980, p. 10). Bataille chama de heterogêneos os elementos difíceis ou mesmo impossíveis de assimilar e, por essa definição, estes são excluídos do campo da atuação científica, dado que esta é sempre desejosa da homogeneidade ou vulgaridade dos fenômenos, e o erotismo possui uma natureza que não pode ser objeto de uma determinação positiva (2022, p. 27). E é, portanto, sobre Bataille e sobre o erotismo que eu escolhi falar hoje nesse simpósio sobre uma ciência (ou um pensamento) não ortodoxo, pois o erotismo se situa para além do que pode ser considerado pela inteligência humana, para além do que é simples e definível; o erotismo se situa no que se abre à vagueza e à variação.
2 O misterioso perder-se
O termo erotismo introduz uma expectativa equívoca, já que de modo ordinário se refere à sexualidade, à excitação sexual ou ao seu estímulo. Mas em Bataille ele é aquilo sobre o que é difícil falar – o erotismo é o mais misterioso dos problemas e implica uma vida que se abre à exuberância. Ele é o mais intenso dos movimentos e por isso, diz ele, está situado no cume do espírito humano. E o que é o cume do espírito humano? É abertura a todo possível, é expectativa que “nenhuma satisfação material pode apaziguar e nenhum discurso iludir” (1980, p. 246). É uma “exuberância de vida” (1980, p. 13).
A experiência erótica situa-se fora da vida de todos os dias, permanecendo essencialmente separada da comunicação que normalmente fazemos das nossas emoções (1980, p. 224), está para lá daquilo que vivemos presencialmente e, portanto, refere-se a algo que só é possível sob a condição de sairmos do mundo em que estamos atualmente. Ou seja, a medida do erotismo existe para nós como se não existisse e pressupõe a oposição do homem a si próprio (1980, p. 228) – tal como para Nietzsche ou Bergson, para Bataille o cume do espírito humano pressupõe a oposição do homem a si próprio.
Bataille diz também que o erotismo é um dos aspectos da vida interior (1080, p. 27). A experiencia interior do homem é dada quando ele tem a consciência de se rasgar a si próprio. Ou seja, o erotismo é o que leva o homem a por o seu ser em questão. É, diz ele, o eu perco-me (1980, p. 29. Grifo nosso). Há uma flagrante perda implicada pelo erotismo e uma imensa revolução se produz quando se é capaz de ultrapassar a consciência objetiva que limita o sujeito, ultrapassar a razão e seus balizamentos utilitários e ortodoxos em favor de um excesso, uma exuberância, uma abundância que, nos travessando, nos leva a uma nova experiência da existência.
3 A insuficiência da razão
Duas faculdades são instrumentos fundamentais ao homem comum: a consciência e a razão. Tais faculdades levam em consideração tudo o que é simples e definível, mas negligenciam o vago e o variável, de modo que se mostram insuficientes para pensar a própria ideia de erotismo. A consciência clara é acima de tudo a consciência das coisas e, o que não tem nitidez exterior, ou seja, o que não se conforma sob a forma de coisa, não se torna claro à primeira vista (BATAILLE, 1980, p. 144-145). Em realidade, aquilo que é irredutível à grosseria das coisas tem que ser considerado como coisa, adaptado à ideia de coisa para poder ser claramente compreendido e “é pelo trabalho que o homem regula o mundo das coisas, é pelo trabalho que o homem se reduz, neste mundo, a ser uma coisa entre outras” (1980, p. 140).
Por conseguinte, as verdades da nossa experiência interior e do erotismo não sofrem a redução homogênea e, por conseguinte, escapam à apreensão da consciência clara. O mundo exterior é o mundo das coisas, mas o mundo do espírito, ou mundo interior, próprio do erotismo, é o mundo que se opõe ao máximo à redução do homem à condição de coisa. Ou seja, o erotismo é um modo de resistência à coisificação, à operação de redução da vida que há em todos nós, ao enquadramento do homem como um ser que trabalha, produz, conserva e pouco goza. O erotismo, no que tem de íntimo e incomensurável, é que torna possível a não redução do homem à força do trabalho, a instrumento, à coisa. Diz Bataille: “a animalidade, ou a exuberância sexual, é em nós aquilo que faz com que não possamos ser reduzidos a coisas” (1980, p. 141). Nesse sentido, há na humanidade um elemento irredutível à coisa e ao trabalho, fazendo com que o homem não possa ser diminuído, esmagado. Mas, quando o homem, dominado pelo mundo da produção, se torna um animal que trabalha, um ser submetido ao trabalho, o homem necessita, justamente para que tal submissão se dê, renunciar a uma parte dessa exuberância.
4 Erotismo x sexualidade
O erotismo difere da sexualidade na medida em que a sexualidade humana está limitada por proibições (BATAILLE, 1980, p. 228) – tal como o incesto ou as restrições relativas ao sangue menstrual e o domínio do erotismo é o domínio da transgressão dessas proibições. Logo, erotismo não é a atividade sexual reprodutiva, mas uma forma particular de atividade sexual. Embora todos os animais sexuados possuam atividade sexual, apenas o homem é capaz de transformar essa atividade em atividade erótica – apenas o homem pode ultrapassar tal atividade como uma atividade natural, que se caracterizaria pela finalidade da reprodução e pela preocupação com a procriação. Como diz Bataille, “a atividade sexual dos homens não é necessariamente erótica, mas o é cada vez que não é simplesmente animal” (1980, p. 27).
O erotismo também não deve ser confundido com a experiência amorosa, posto que amor é um lugar de reconhecimento, um método de reconhecimento de si e do outro. O erotismo dos corpos deixa transparecer o avesso em que se revelam sentimentos, partes do corpo, e modos de ser de que vulgarmente temos vergonha, e, portanto, seu domínio é essencialmente o domínio da violência e da violação (BATAILLE, 1980, p. 17-21). O erotismo é um lugar onde perde-se a segurança da identidade – da identidade de si e do outro; é um lugar em que ocorre a perturbação da posse de uma pretensa individualidade durável. O erotismo é a força de um elemento comum que une os sujeitos e dissolve suas formas constituídas, produzindo uma fusão violenta, excessiva, disforme e desordenadora e por isso, é o erotismo, a condição para uma experiencia de emancipação de si.
5 Proibições e violações
Os homens se distinguiram dos animais pelo trabalho e se impuseram restrições, conhecidas como proibições, que recaíam sobretudo sobre os mortos e a atividade sexual. O homem saiu da animalidade inicial trabalhando, compreendendo que era mortal e passando da sexualidade inocente à sexualidade envergonhada. O comportamento sexual humano é comportamento submetido a regras e a definidas restrições. São duas interdições que aparecem ao homem: a morte e a união sexual – dois mandamentos caros que foi preciso, pedagogicamente, ser ditado a Moisés.
Embora tenha edificado o mundo racional, sempre subsiste no homem um fundo de violência. Por isso a vida humana está repartida entre a proibição e a transgressão – não há proibição que não possa ser transgredida e, frequentemente, a transgressão é admitida e até recomendada (BATAILLE, 1980, p. 56). Por mais racional que sejamos, uma nova violência sempre pode dominar-nos, o que faz com que subsista no homem um movimento que excede os limites que lhe são impostos e tal movimento só parcialmente pode ser reduzido. Diz Bataille: “há na natureza e subsiste no homem um movimento que excede sempre os limites e que só parcialmente pode ser reduzido” (1980, p. 36).
6 Tempo profano e tempo sagrado
Bataille distingue dois tipos de tempo que se relacionam com a proibição e a transgressão: o tempo profano e o tempo sagrado. O tempo profano é o tempo vulgar, o tempo do trabalho e das proibições. O tempo sagrado é o tempo da festa, dos deuses, isto é, o tempo da transgressão das proibições – no plano do erotismo é a licença sexual; no plano sagrado é o tempo do sacrifício, ou seja, a violação ritualística de uma proibição, a transgressão à proibição de matar (1980, p. 229).
No tempo profano do trabalho a sociedade acumula reservas, sendo o consumo reduzido à quantidade necessária à produção. Mas o tempo sagrado é o tempo da festa, isto é, da negação dos limites da vida que o trabalho impõe. Na festa o que é vulgarmente proibido é permitido, de modo que entre o tempo vulgar e a festa há uma inversão de valores. A festa consome desmedidamente os recursos que foram acumulados com o tempo de trabalho, ou seja, o que fundamenta a festa é a dilapidação e a festa é o ponto culminante da própria atividade religiosa, daí a estreita relação entre erotismo e religião.
Em todo homem existe o desejo de transgressão. O desejo de matar é uma transgressão em relação à proibição de matar; o desejo de atividade sexual é uma transgressão em relação às proibições que limitam a experiência sexual. Em outras palavras, só há proibição de matar ou de realizar determinada atividade sexual, em casos precisos. Assim, a todo tempo o jogo de proibição e transgressão está posto: não matarás, exceto na guerra, no duelo, em defesa própria, etc (o assassinato é crime, porque revela o desprezo pela proibição); não fornicarás, exceto no casamento (BATAILLE, 1980, p. 64). Assim como a morte cometida no sacrifício é ao mesmo tempo proibida e ritual, também o ato sexual inicial, que constitui o casamento, é uma violação sancionada. E, o casamento é, acima de tudo, o enquadramento da sexualidade lícita. Ou seja, a proibição submete a transgressão a determinados limites, regulamenta as formas e impõe uma expiação àquele que se torna culpado dela. Para aquém da transgressão indefinida, de caráter excepcional, as proibições são vulgarmente violadas segundo regras previstas ou organizadas por ritos.
O erotismo é infração à regra das proibições. No momento da volúpia há uma ruptura evocadora da morte. A morte é também juventude do mundo, ela assegura incessantemente rejuvenescimento sem o qual a vida declinaria, porque a vida é um criar e um destruir – ela não cessa de gerar, assim como também não cessa de destruir o que gera. “A vida, a não ser em casos de impotência, mobiliza sempre um excesso de energia que é necessário despender” (BATAILLE, 1980, p. 84).
Nesse sentido, “sexualidade e morte são apenas os momentos culminantes da festa que a natureza celebra com a inesgotável multidão de seres” (Idem, p. 54), porque ambas têm o sentido do desperdício ilimitado que a natureza procede contra o desejo de durar que é próprio de cada ser. O erotismo é uma transgressão perigosa para a estabilidade geral e para a conservação da vida, mas “sem a evidência da transgressão, não é possível experimentar o sentimento de liberdade necessária à plenitude do ato sexual” (idem, p. 95). No erotismo a violência ultrapassa a proibição, revela a impotência da lei e, por isso, “nada pode conter a violência erótica.
7 Mundo da razão x mundo da violência
Desde a era primitiva é possível conceber o mundo do trabalho e da razão, que se oporia ao mundo da violência. A morte aparecia como uma desordem que ultrapassava o homem, fazendo dos seus esforços um non sense, ao passo que o mundo do trabalho lhe parecia lhe pertencer. Enquanto a operação da razão serve ao mundo do trabalho – ao mundo profundamente reduzido ao peso da utilidade, a desordem, o movimento da violência arruina o próprio ser e por isso o homem se identifica à ordenação operada pelo trabalho e separa-se das condições de violência que atua em sentido contrário (Idem, p. 40-41).
É próprio do domínio do trabalho exigir um comportamento que constantemente realiza um cálculo de esforço, um cálculo ligado à eficácia produtiva. Por isso que, no tempo reservado ao trabalho, a coletividade deve se afastar dos movimentos contagiosos nos quais existe apenas o abandono imediato ao excesso, ou à violência. Ou seja, o trabalho “exige um comportamento racional em que os movimentos tumultuosos que se libertam nas festas, ou geralmente, no jogo, não são admitidos” (BATAILLE, 1980.p. 37). Tais movimentos devem ser refreados para que o sujeito consiga trabalhar, ao mesmo tempo que o trabalho introduz o motivo que leva a refreá-los. Os sujeitos que, ao contrário, cedem a estes movimentos tumultuosos, têm uma satisfação imediata, enquanto que o trabalho só promete uma satisfação posterior. Ensina Bataille, “desde os tempos mais remotos, o trabalho introduz uma pausa, um intervalo, graças aos quais o homem deixa de corresponder ao impulso imediato que corresponde à violência do desejo” (idem, p. 37).
O trabalho também é caminho da consciência, pelo qual o homem saiu da animalidade. É pelo trabalho que a consciência clara e distinta dos objetos é dada e a ciência sempre permaneceu aliada ao desenvolvimento técnico. Já a exuberância sexual afasta o homem da consciência, uma vez que uma sexualidade livremente transbordante diminui a capacidade para o trabalho, tal como um trabalho prolongado diminui o apetite sexual.
Há entre a consciência, estritamente ligada ao trabalho, e a vida sexual uma incompatibilidade e, uma vez que ao se definir pela consciência e pelo trabalho, o homem teve não só que moderar, mas desconhecer e até amaldiçoar o excesso sexual. Inclusive, diz Bataille, o casamento é meio de paralisar o amor profundo, que só se torna acessível por meios ilícitos. Diz o filósofo francês: “por isso se pode perguntar em que medida é que o amor profundo, que o casamento de forma alguma paralisa, poderia ser acessível sem o contágio dos amores ilícitos, os únicos que podem conferir ao amor o que este tem de mais forte que a lei” (Idem, p. 99).
Parte da energia humana dedicada ao trabalho, é portanto, retirada da consumação erótica. Logo, a humanidade no tempo humano, anti-animal do trabalho nos reduz a coisas e a animalidade é o que conserva em nós o valor de uma existência de pessoa pela própria pessoa. Ou seja, o homem domesticado, reduzido ao racional e ao razoável está privado da visão do homem integral que a humanidade pretendia ter (Idem, p. 148).
Em resumo, o mundo do trabalho é o mundo de produção, logo todo trabalho é uma operação servil, dado que produzir é submeter toda atividade ao cálculo de tempo e metas, se perguntando a cada momento pela utilidade de cada coisa produzida. Tal cálculo é um cálculo de valores homogêneos, em que os objetos produzidos são quantificados, bem como o prazer final que se alcança. Ser um sujeito racional no mundo capitalista significa uma modo de organizar das ações tendo em vista a autoconservação, a conservação dos seus bens, permitindo-se uma auto fruição moderada do prazer e sempre se perguntando pela utilidade de suas ações.
Aliás, diz Bataille, que a burguesia moderna só consente o despender para si, isto é, ela dissimula seus dispêndios aos olhos das demais classes e as impõe o dispêndio restrito sustentado pelas concepções racionalistas desenvolvidas a partir do século XVII que tornaram o mundo um lugar econômico, vigilante dos modos de dispêndio, o que faz da classe burguesa, aos olhos do autor, a vergonha do homem e sua sinistra anulação (2020, p. 28).
Para Bataille aí está o verdadeiro núcleo da alienação – todo trabalho é uma forma de alienação e, por isso, vencer a alienação, se emancipar, é vencer o trabalho, liberar a atividade da forma do trabalho.
Bataille descreve a nossa sociedade como sociedade homogênea, isto é, uma sociedade em que seus elementos podem ser mensurados e é possível ter consciência desta mensuração, o que caracteriza seu caráter produtivo e utilitário (2022, p. 13). Por conseguinte, aquilo que não está na esfera da utilidade é excluído da sociedade em seu caráter homogêneo. De modo semelhante a Freud, Bataille está a dizer que a sociedade do trabalho, utilitária, necessita conter forças livres, movimentos aberrantes, heterogêneos, ou seja, ímpetos não ortodoxos para que o sujeito racional produtivo emerja. Este sujeito compreenderá que sua atividade deve ser atividade útil, ou seja, aquela que se compõe com o prazer sob uma forma moderada, visando, antes de tudo, a conservação dos bens e das vidas humanas, considerando patológico o que é desvio disso.
Na sociedade homogênea, diz Bataille, cada elemento deve ser útil a outro e cada atividade útil sempre terá uma medida comum com outra atividade útil, a saber: o dinheiro, a equivalência cifrável dos diferentes produtos resultante da atividade coletiva dos homens. Na sociedade homogênea o dinheiro serve para mensurar todo trabalho e faz do homem uma função de produtos mensuráveis, cada um deles valendo em razão do que produz (2022, p. 14). Explica o autor:
“na ordem atual das coisas, a parte homogênea da sociedade é formada pelos homens que possuem os meios de produção ou o dinheiro destinado a sua manutenção e compra. É na classe dita capitalista ou burguesa, exatamente na parte média desta classe, que se opera, em suma, a redução tendencial do caráter humano a uma entidade abstrata e intercambiável, reflexo das coisas homogêneas possuídas” (2022, p. 15. Grifo do autor)
Como explica Vladimir Safatle (2019), na sociedade homogênea funciona um processo de autogoverno, do ponto de vista material e moral porque só os que se autogovernam são capazes de trabalhar, de submeter suas vontades, de agir segundo um dever que o sujeito impõe a si mesmo, segundo uma lei de conduta que o indivíduo impõe a si mesmo, que é expressão de sua própria vontade.
Em síntese, para o homem domesticado, submetido, reduzido e privado, todo esforço particular que realiza, para ser válido, deve ser redutível às necessidades fundamentais da produção e da conservação, ou seja, de acordo com essa lamentável visão utilitarista, a parte mais apreciável da vida é a atividade social produtiva.
No mundo da utilidade clássica, da utilidade que se pretende material, admite-se o prazer, ou melhor, concede-se o prazer, mas somente em sua forma moderada, dado que o prazer violento é tido como patológico. A utilidade se limita pela produção e conservação dos bens, pela reprodução e conservação das vidas humanas. Tal visão não considera que a sociedade humana possa ter interesse em perdas consideráveis, em catástrofes tumultuosas ou em certo estado orgíaco.
Nesse sentido, a humanidade que em sua quase totalidade, se alinha a essa visão utilitária, é uma humanidade que permaneceu menor frente às suas possibilidades, porque ela reconhece o direito de adquirir, conservar ou consumir racionalmente, mas exclui o dispêndio improdutivo (2020, p. 20).
8 O heterogêneo
Embora a homogeneidade social se forme e seja incansavelmente protegida na sociedade produtiva, há forças outras, ditas heterogêneas, de natureza incompatível com a sociedade homogênea, que tratam de “elementos impossíveis de assimilar” (BATAILLE, 2022, p. 27) e que, embora censuradas e mantidas fora do campo de atenção, inapreensíveis à ciência ortodoxa, não são completamente anuladas do mundo da vida. O que significa dizer que toda sociedade é atravessada pela necessidade de experiências não homogêneas, experiências que estão fora da lógica utilitária e produtiva, experiências de excesso que são irracionais do ponto de vista da lógica racional do capitalismo.
A experiência de excesso envolve os elementos heterogêneos que constituem um conhecimento da diferença não explicável (Idem, p. 29) e, por essa razão, tais elementos exigem da inteligência um acesso ao que não é redutível à vida do intelecto, um acesso a um modo de ser anterior às capturas da sociedade homogênea.
Uma das formas da heterogeneidade é o sagrado, atravessado por forças desconhecidas e perigosas; os resultados do dispêndio improdutivo, isto é, o que é rejeitado pela sociedade homogênea em duas formas contrárias de excesso: uma inferior e uma superior – uma de valor elevado e outra de valor degradado; ou loucos e seus delírios; a violência e a agitação, incluindo a poética; os sonhos e sua dimensão inconsciente; a desmesura; enfim, tudo o que se apresenta com a realidade da força e do choque (Idem, p. 31-33). Diz Bataille: “a existência heterogênea pode ser representada em relação com a vida corrente (cotidiana) como totalmente outra, como incomensurável, carregando essas palavras como valor positivo que elas têm na experiencia afetiva vivida” (2022, p. 34. Grifo do autor)
O mundo heterogêneo compreende o conjunto dos resultados do dispêndio improdutivo, isto é, tudo o que a sociedade homogênea rejeita seja como dejeto, seja como valor superior transcendente. Ocorre que a parte homogênea é impotente para assimilar as multidões, as classes guerreiras, aristocráticas e miseráveis, os diferentes tipos de indivíduos violentos ou pelo menos que se recusam à regra (loucos, líderes agitadores, poetas, etc).
Ou seja, o heterogêneo teria como dois níveis: um para cima e outro para baixo. Ou teria um valor transcendente como o sagrado ou não teria valor algum, como o erotismo. Há, pois, uma dualidade fundamental do mundo heterogêneo entre o puro e o impuro, o que pode produzir tanto atração quanto repulsão. A relação com o excesso é o gozo – para baixo e para cima. O gozo é o que é inoperante, é o que escapa da relação utilitária, o que está para além do prazer.
O sagrado pode ser considerado uma forma restrita com relação ao homogêneo. Há uma força misteriosa, impessoal desconhecida e perigosa, da qual dispõem certos indivíduos, como reis e feiticeiros. A coisa heterogênea se supõe imbuída de uma força desconhecida e perigosa e (no campo religioso) há uma certa proibição social de contato que a separa do mundo homogêneo ou vulgar.
A violência, a desmesura, o delírio e a loucura caracterizam, sob graus diversos, os elementos heterogêneos que se produzem rompendo as leis da homogeneidade social e têm certa conformidade com os sentimentos extremos. A realidade heterogênea é a da força e do choque. A existência heterogênea pode ser representada em relação à vida corrente, cotidiana como totalmente outra, como incomensurável. O heterogêneo mobiliza um gozo que não pode se submeter à lógica homogênea de valor, de utilidade.
9 O potlatch
Marcel Mauss chama de Potlatch (apud Bataille 2020, p. 24) uma forma de troca que se opõe ao escambo (que não tem a finalidade de adquirir o que se necessita, mas ao contrário, tem como necessidade a destruição e a perda). O Potlatch está indissociado da festa (ele é ou causa, ou ocorre na festa) e é um modelo de troca em que riquezas consideráveis são oferecidas ostensivamente com a finalidade de humilhar, desafiar e obrigar um rival. Também é possível desafiar o rival por meio da destruição de aldeias, canoas, ou outros bens que são queimados, afundados ou jogados ao mar, o que constitui a propriedade positiva da perda.
Nessas práticas, aquele que efetiva a pura e simples destruição, evidencia seu grande prestígio. Destrói-se o trabalho útil, retira-se os objetos do consumo produtivo, inverte-se, pois, a lógica acumuladora do mundo do capital.
Enquanto jogo, o potlatch é contrário a um princípio de conservação e põe fim à estabilidade das fortunas tal como existia no interior dessas comunidades onde a posse era hereditária. Não há preocupação em colocar a fortuna ao abrigo da necessidade, mas está à mercê de uma necessidade de perda desmesurada. Aqui o poder é poder de perder e “é pela perda que a glória e a honra lhe são vinculados” (BATAILLE, 2020, p. 26).
De forma inversa aos índios americanos, a sociedade burguesa desenvolveu a mesquinharia universal. No plano social, ao se conduzir segundo a razão, o homem trabalha para aumentar a sua riqueza, para acumular mais riqueza e mais coisas. Ou seja, de modo geral, o que ocorre é que o indivíduo renuncia à exuberância do erotismo em favor da atividade racional. Mas, no momento da excitação sexual o homem se conduz de modo oposto: despende suas forças indevidamente e, às vezes, na violência da paixão, dilapida, sem conta, recursos consideráveis (BATAILLE, 1980, p. 152).
Bataille diz que não é a necessidade, mas seu contrário, o ‘luxo’, que coloca para a matéria viva e para o homem os seus problemas fundamentais. A história da vida sobre a terra é o efeito de uma louca exuberância: o acontecimento dominante é o desenvolvimento do luxo, a produção de formas de vida cada vez mais onerosas.
10 O dispêndio improdutivo
Os homens se encontram constante empenhados em processos de dispêndio. Em sua forma acentuados estados de excitação podem ser comparados a estados tóxicos, definidos por impulsos ilógicos e irresistíveis à rejeição dos bens materiais ou morais que teria sido possível utilizar racionalmente. Por isso que quanto mais os homens são humanizados, menor é a sua exuberância. A animalidade ou exuberância sexual é o que faz com que não possamos ser reduzidos a coisas, mas a humanidade, enquanto tempo de trabalho, que inclusive se dá às custas da exuberância sexual, tende a fazer de nós coisas.
Bataille afirma (2020, p. 21) que a atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e conservação e o consumo deve ser distinto em duas partes: o uso do mínimo necessário à conservação da vida e ao prosseguimento da atividade produtiva; e, pelos dispêndios improdutivos: o luxo, por exemplo das joias deslumbrantes; os enterros; as guerras (a guerra é um luxo, uma exuberância agressiva quem mantem a grandeza da exuberância – nunca foi um meio em que um povo se serviu para aumentar ou acumular, pelas conquistas, a sua riqueza, como se pensa ordinariamente); os cultos (onde se faz um desperdício de sangue de animais no sacrifício); as construções de monumentos; os jogos de competição (onde ocorrem perdas de absurdas quantias de dinheiro, empenhadas sob a forma de apostas); os espetáculos e as produções da arte; a atividade sexual perversa (ou seja, a desviada da finalidade genital) – atividades que têm em si mesmas seu fim.
O erótico, pois, é o que escapa à nossa razão, porque a razão está ligada ao trabalho, à atividade produtiva, mas a volúpia é o que ignora o trabalho, por ser atividade essencialmente excessiva. A razão é comedimento, mas o erotismo é constituído por um desejo de excesso. O excesso erótico faz com que entremos no caminho da desordem voluptuosa onde nada nos satisfaz. Se as prescrições da razão nos exige consumo moderado, gastos calculados, dispêndios produtivos, o erotismo, ao contrário, é a experiência do dispêndio improdutivo, o despender sem conta, a certeza do caráter inútil e ruinoso das nossas despesas “como se uma ferida se abrisse em nós” (BATAILLE, 1980, p. 153).
O erotismo é, pois, uma informidade. Com ele revela-se um corpo em nós que reage para além da vontade refletida dos amantes. Há uma emergência do involuntário, de forças heterônomas que nos atravessam que não controlamos, de algo que não se explica pela relação de posse, de controle, de propriedade, e, por isso, radicalmente distinto da sociedade utilitária ou da sociedade do trabalho, que Bataille chama de sociedade homogênea, criada pelo sistema de produção, caracterizada por uma estrutura social na qual relações e valores são baseados na utilidade, na quantificação, na comensurabilidade e na consciência dessa comensurabilidade.
O erotismo é uma expressão de forças heterogêneas e com ele o homem quer, justamente, se sentir o mais longe possível do mundo em que o aumento das riquezas e da posse é regra. O que se pretende é um mundo nada ortodoxo, “um mundo às avessas, um mundo completamente subvertido e por isso é possível dizer que a verdade do erotismo é a traição” (1980, p. 153). Eis a profunda subversão que buscar a emancipação (BATAILLE, 2022, p. 100).
Diz Safatle (2014) que “Bataille quer mostrar como as sociedades capitalistas não são apenas economicamente injustas, mas principalmente elas organizam nossas formas de vida a partir da exclusão de experiências que retiram da vida sua mobilidade e força” e é por isso que essa forma de vida, hegemônica, é também para nós fonte de profundo sofrimento. Nesse sentido, Bataille nos convida à emancipação, isto é, a desejar uma existência livre de limites, uma existência que nega a realidade que se atualiza e, portanto, a realidade que permanece sempre menor frente ao excesso que corre nos movimentos da vida. A razão, a ciência ortodoxa, pode ignorar essa verdade, mas se nós a desconhecermos, desconhecemos também o que somos e o que podemos ser e por isso é inevitável a nós alcançar esse excesso, esse despender sem conta, porque é ele que nos dá a força de negação do mundo da produção, da posse e do cálculo racional. Nasce daí o homem soberano, integralmente entregue à volúpia, que não se seduz pelas fraquezas que a razão oferece, que quer aceder ao gozo mais forte, que recusa subtrair-se.
Referências:
BATAILLE, Georges. A estrutura psicológica do fascismo. São Paulo: n-1 edições, 2022.
______. O Erotismo. 2. Ed. Lisboa: Moraes editores, 1980.
______. A noção de dispêndio. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
______. A experiência interior. São Paulo: Ática: 1992.
______. Teoria da Religião. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
SAFATLE, Vladimir. In:”https://www.academia.edu/8674660/Curso_Integral_Erotismo_sexualidade_e_g%C3%AAnero_sobre_Bataille_Foucault_e_Judith_Butler_2014“. Acesso em: 23 jun. 2023.
______. In:”https://www.academia.edu/39801006/Psicologias_do_fascismo_curso_completo_2019_“. Acesso em: 23 jun. 2023.