O contexto e o sentido histórico do Manifesto Cósmico de Mario Novello
Em homenagem aos 80 anos de Mario Novello
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Em um curto texto intitulado Maravilhas da Natureza, principalmente as de uso humano[1], Francis Bacon elencou quais avanços a então incipiente ciência moderna poderia, em sua visão, tornar um dia possível em benefício da humanidade:
Prolongar a vida. Restituir, em algum grau, a juventude. Retardar o envelhecimento. Curar das doenças consideradas incuráveis. Diminuir a dor. Purgas mais fáceis e menos repugnantes. Aumentar a força e a atividade. Aumentar a capacidade de suportar a tortura ou a dor. Transformar a compleição, a obesidade e a magreza. Transformar a estatura. Transformar a fisionomia. Aumentar e elevar a capacidade cerebral. Metamorfosear um corpo em outro. Instrumentos de destruição, como os da guerra e o veneno. Tornar alegres os espíritos, dar-lhes boa disposição. Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre outro corpo. Acelerar o tempo no que diz respeito às maturações. Acelerar o tempo no que toca às clarificações. Acelerar a putrefacção. Acelerar a decocção. Acelerar a germinação. Fabricar compostos ricos para a terra. Forças da atmosfera e nascimento das tempestades. Transformação radical, como a que se verifica na solidificação, amolecimento, etc. Transformar as substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordurosas e oleosas. Produzir alimentos novos a partir de substâncias que atualmente não são utilizadas. Fabricar novos fios para as roupas; e novos materiais, a exemplo do papel, do vidro, etc. Previsões naturais. Iludir os sentidos. Maiores prazeres para os sentidos. Minerais artificiais e cimentos (BACON, 2011, tradução do autor).
Pode-se afirmar que, ao longo dos quatro séculos que se passaram desde a revolução científica, da qual Bacon foi um dos precursores, a ciência foi capaz de dar respostas, mais ou menos completas, a cada um dos desafios lançados neste texto.
De forma análoga, podemos repetir hoje o exercício de Bacon e aventar o que a ciência tornará possível nos próximos séculos. Muitos cientistas estudam seriamente temas que são tão fantásticos hoje quanto a lista de Bacon era em seu tempo, o que os tornam recorrentes em obras de ficção científica: colonização de outros planetas, criação de vida artificial, geração de campos gravitacionais repulsivos, reversão da seta entrópica do tempo, conexão entre os cérebros humanos através de uma interface física, desenvolvimento de inteligências artificiais, entre outros sonhos humanos cujas viabilidades ainda restam provar.
Contudo, se o foco da especulação ao invés dos próximos séculos, limitar-se apenas às próximas décadas, muitos dos problemas que se apresentam perante a humanidade e sua ciência não remetem a desafios advindos da expansão da nossa espécie no cosmo mas, pelo contrário, trata-se de evitar a extinção da espécie humana no planeta Terra por catástrofes tornadas possíveis pela própria ciência moderna, subsumida cada vez mais à lógica do lucro, ao mesmo tempo em que respondia aos desafios de Bacon. São ameaças que não podem esperar séculos por uma resolução, como por exemplo: impedir o aquecimento global, debelar pandemias, evitar uma hecatombe nuclear e a perda de controle sobre armas cujo acionamento é controlado por sistemas autônomos de inteligência artificial, reverter a degradação do meio ambiente e a extinção em massa de espécies em curso, lidar com a alienação do trabalho e com as mudanças na correlação de forças no interior da sociedade causadas pela automação da produção, entre tantos outros desafios existenciais para nossa espécie.
É nesse contexto que se pode caracterizar a crise orgânica do capital, descrita por Bevilaqua (2017), a partir das formulações de Marx em O Capital e nos Grundrisse, como um processo que desvela o limite do atual modo de produção, baseado na valorização das mercadorias e na mercantilização da força de trabalho, em atender às necessidades de sobrevivência da espécie humana diante das transformações históricas resultantes da maior centralidade que o trabalho técnico-científico adquire no processo produtivo. A crescente utilização das máquinas, produto deste tipo de trabalho, converte o trabalho vivo, dispendido com a presença direta do trabalhador no processo de produção da mercadoria, em uma quantidade ínfima diante das colossais riquezas acumuladas nos ciclos passados como trabalho morto, cristalizado em ciclos anteriores, por exemplo, nas próprias máquinas. O gigantesco salto de produtividade decorrente da terceira fase da revolução industrial, na qual a informática completa o processo de objetificação e externalização do corpo humano para as máquinas, conforme descrito por Marx, leva à erosão da medida de valor reconhecida em nossa sociedade, o paradigma do tempo de trabalho dispendido na produção das mercadorias. Ao mesmo tempo em que a Ciência e a educação, que possibilitam a criação e operação das máquinas (e seus algoritmos), assumem um papel cada vez mais central dentro da produção e reprodução social, ambas entram em crise ao serem tolhidas e formatadas segundo as necessidades da claudicante reprodução ampliada da relação-capital (BEVILAQUA, 2017).
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Diante desse quadro, de uma crise que ameaça a vida no planeta e que é orgânica à forma como os seres humanos estabeleceram historicamente relações entre si, é fundamental que se reflita, como Bacon em seu tempo, sobre qual tipo de ciência será, ou melhor, já é necessária apenas para que a nossa espécie continue ocupando a face da Terra. Qual o tipo de ciência capaz de não apenas nos fornecer conhecimento objetivo sobre o universo, mas contribuir com a superação do atual estado de crise generalizada que a humanidade enfrenta?
As duas partes do Manifesto Cósmico de Mario Novello (2016, 2022) são uma importante contribuição ao apresentarem um “programa de uma autocrítica da ciência” que, a partir da refundação da Física pela Cosmologia, ressoam por todo o edifício científico. Seus interlocutores não são apenas os cientistas, mas o público em geral, o que fica claro pelo gênero literário utilizado pelo autor, o manifesto. Um manifesto não é um teorema, que muitas vezes interessa apenas aos especialistas, ele é um elemento de comunicação social capaz de levar a mensagem de seus autores ao público em geral. Mais do que isso, um manifesto é uma declaração pública de princípios e intenções, ele exprime algo análogo a uma confissão de fé, não uma profissão de fé, ou seja, ele não é a postulação de um dogma, mas uma declaração de crenças compartilhadas por uma comunidade.
Sem dúvida, o manifesto mais influente da história da humanidade, foi o Manifesto Comunista, redigido por Marx e Engels e que veio à luz em 1848. Sua publicação foi a forma encontrada pelo movimento revolucionário dos trabalhadores de expor suas próprias posições num ambiente reacionário saturado do que hoje chamamos de fake news, logo no início da eclosão da Primavera dos Povos, uma série de revoluções democráticas que mudaram a correlação de forças na Europa na metade do século XIX.
A partir da política, os manifestos migraram para as artes: no início do século XX cada vanguarda artística ou literária estava associada a um ou mais manifestos. Logo, os cientistas também passaram a escrever e assinar manifestos, que não se limitaram aos políticos, como o Manifesto Russell-Einstein, pela paz e contra a ameaça nuclear, ou pela valorização da ciência, como o que muitos cientistas assinaram em 2021 denunciando o corte do financiamento em pesquisa no Brasil pelo governo de traços fascistas, mas também manifestos que abordam questões internas à atividade científica, como a forma com que a ciência é produzida, e até os seus métodos, como é o caso de vários manifestos científicos que recentemente vêm sendo publicados como resposta à crise da Ciência. Como exemplo, entre vários outros, podemos citar o Manifesto da Ciência Aberta, surgido para enfrentar a crise de reprodutibilidade nas ciências biológicas, e o Manifesto da Ciência Lenta que questiona o ritmo imposto pelo produtivismo acadêmico.
É muito importante que cada vez mais cientistas de diferentes campos do conhecimento publiquem manifestos buscando comunicar a cientistas de outros campos, mas sobretudo ao público em geral, os limites responsáveis pela estagnação em seus próprios campos de pesquisa e qual a relação destes com o restante da sociedade, o que permitirá tecer a partir de fios lançados de diferentes locais uma crítica consistente e comum de um fenômeno como a crise da ciência, tão complexo em determinações internas e externas.
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Mario Novello nos brinda com seu Manifesto Cósmico, uma importante reflexão que busca superar a crise da Física ao repensá-la a partir de sua relação com todos os demais campos do conhecimento, levando em conta a história global do cosmo e a história dos seres humanos. Desta forma, promove o imprescindível debate transdisciplinar cuja negligência é responsável pela persistência de ideias erradas e retrógradas, pois “quando no exercício prático de suas atividades o cientista se restringe a uma conversa com seus pares, a ciência progride como esquema conservador. Somente quando ela é levada a dialogar com a natureza, seu espírito revolucionário aparece”. (NOVELLO, 2016). Isso é fundamental quando se tem a consciência de que, ao se desenvolver, a “Física se isola da trama de pensamento e ação, mas permanece em conexão orgânica com sua matriz” (CAUDWELL, 1968).
Os cientistas que se dão por satisfeitos com o que sua disciplina tem a dizer sobre si mesmas, sem buscar ativamente onde esta se situa com relação ao restante da ciência, se abstêm de refletir sobre o papel desta na sociedade, sua relevância para a humanidade. A crise da ciência coloca na ordem do dia a refundação epistemológica das diferentes disciplinas científicas a partir de uma reflexão, não apenas sobre seus métodos e objetos, mas também da relação destes com a sociedade e com todos os outros campos do conhecimento.
Na perspectiva totalizante do conhecimento, as grandes sínteses são uma necessidade imperiosa não apenas para o avanço da Ciência, mas para o bem-estar da humanidade, já que nenhuma das ameaças à existência humana anteriormente citadas podem ser corretamente enfrentadas com teorias restritas ao escopo de investigação de uma única especialidade, ou mesmo a um campo do conhecimento em particular. Por exemplo, como retirar os microplásticos do oceano sem uma reflexão que considere ao mesmo tempo suas explicações históricas, econômicas, sociológicas, psicológicas, biológicas, químicas, físicas e até matemáticas?
Ao invés disso, cientistas vendem a falsa ideia de technofixes, atalhos tecnológicos que por si só serviriam como soluções. Como afirma o Manifesto Cósmico: “Quando essa univocidade parece acontecer, é porque o problema está colocado fora de seu contexto. Ao incluí-lo em um contexto maior, imediatamente aparecem diversos caminhos. Ou seja, a univocidade esconde uma escolha de representação” (NOVELLO, 2022).
Assim como o problema do plástico nos oceanos e no solo, o problema das alterações climáticas só pode ser verdadeiramente enfrentando levando-se em conta esse contexto maior. O enfrentamento dessa e de outras catástrofes em potencial depende do concurso de muitas disciplinas, mas o que vemos hoje é que estas se encontram imobilizadas e fragmentadas diante das crises. É por isso que as ciências econômicas não conseguem desvendar o conundrum da crise do capital[2], nem o investimento maciço nas ciências da saúde impediram a pandemia, e tampouco a ciência da computação está criando um futuro inteligente para a humanidade. As ciências agrárias não são capazes de resolver os problemas ambientais, contribuindo ativamente com a destruição do solo, a zootecnia não consegue garantir o bem-estar dos animais que consumimos. Não é de se estranhar que, ao longo do último meio século, a contribuição da Física para a constituição do imaginário social da sociedade neoliberal tenha sido promover a ideia do big bang não como uma teoria científica de uma transformação do cosmo, mas como uma recapitulação da cosmologia medieval de criação do universo a partir do nada e da sua morte térmica como degeneração do universo a partir de um estado inicial perfeito.
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Em 1939 Bernal conclamou os cientistas a “derrubar o sistema de Newton, da mesma forma que [a tarefa da Ciência] do século XVII foi destruir o sistema de Aristóteles” (BERNAL, 1989, p. 378). Apesar do desenvolvimento no pós-guerra de correntes científicas críticas ao método reducionista, como os estudos em torno dos sistemas complexos, a história da Ciência durante o século XX e no início do atual está marcada pela resiliência de abordagens conservadoras e reducionistas que só pode ser explicada pela ação de forças que adentram a Física a partir do exterior, mais especificamente das múltiplas interações sociais dos físicos.
Em pleno século XXI, disciplinas científicas inteiras seguem encarando seus objetos de estudo como sistema em equilíbrio, dinâmicos, é verdade, mas cujo movimento é pendular, o que guarda ressonância com a forma com a qual a consciência humana introjeta as relações sociais de mercado em nossa sociedade. É atribuída à gravitação um papel conservador na história do cosmo, mistificada como
uma misteriosa força [que] mundial mantém todas essas partículas reunidas num sistema. Agindo como sistema regulador unificador, inexplicável e arbitrário, ela ajusta, compensa, equilibra e produz a circulação ordenada e os ciclos autorreguladores dos sistemas sideral e solar. Isto corresponde ao mercado “livre” burguês, à lei da oferta e procura, que mantém juntos todos os produtores burgueses, ajusta automaticamente suas relações mútuas e age como o grande princípio unificador da sociedade. Não é por acaso que esta força da gravidade esteja, na mente de Newton, intimamente associada com Deus. As mesmas forças inconscientes que perturbam e regulam a anarquia da sociedade burguesa impelem o burguês continuamente para o altar. (CAUDWELL, 1968).
Com a hipótese da nebulosa de Kant–Laplace sobre a origem do sistema solar a partir de uma nuvem de gás, a dimensão histórica do cosmo não podia mais ser ocultada, então as forças da ideologia dominante reduziram-na à consumação de um princípio teleológico, à falsa ideia de que todo o desenvolvimento ulterior do universo já estava completamente contido em seu estado inicial.
Isso é análogo a quando biólogos ideólogos do neoliberalismo, muitos deles racistas, defendem que as relações capitalistas são o desaguar natural de um processo de sobrevivência que acentuou o egoísmo e individualismo dos seres humanos.
A prevalência da visão mecanicista do universo, que separa causas e efeitos, está também por trás, por exemplo, do determinismo biológico que busca reduzir o complexo comportamento humano ao domínio absoluto de uma única espécie de molécula, o DNA, enxergando-o de forma reducionista como responsável pela “constância, harmonia, leis simples da vida que predizem características universais dos organismos vivos e da autorreprodução” (LEVINS; LEWONTIN, 2007, p. 13).
Essa é uma característica das concepções idealistas de mundo em geral e foi um dos pontos de ruptura entre a dialética idealista de Hegel e a materialismo de Marx e Engels. Para o primeiro a Natureza não tinha história própria, sua história era apenas um movimento do espírito, enquanto que os últimos desenvolveram a ideia da própria Natureza como um processo dinâmico, no qual a novidade sempre surge conforme emergem novas formas da matéria relacionar-se consigo mesma. Como nota Engels, “em Hegel, o progresso infinito é o ermo, porque aparece apenas como eterna repetição da mesma coisa: 1 + 1 + 1, etc.” (ENGELS, 2010).
Por isso Novello identifica o reducionismo, que tem na Física uma de suas mais fortes raízes como o ponto de partida da crise da Ciência em geral, e da crise da Física, em particular:
A questão inicial envolve o status do princípio reducionista, tão importante para os físicos. (…) Aplicado esse princípio ao universo, concluiu-se, de modo simplista, que não poderia haver nenhum efeito novo capaz de modificar as leis da Física a partir da análise global do universo. A única alteração, se houvesse, poderia ser quantitativa, mas não seria qualitativa (NOVELLO, 2016).
Se abrirmos mãos do reducionismo, do determinismo mecânico, e pensarmos o materialismo como um processo histórico, sendo a realidade “síntese de múltiplas determinações” como nos ensina Marx, percebemos que não há razão para considerarmos de antemão que as leis da Física são eternas e imutáveis. Pelo contrário, descobertas bem estabelecidas da Física, de quebras de simetria, nos trazem claras evidências de que a unificação das leis do infra e do supralunar reconhecidas após as equações da gravitação de Newton explicarem tanto a queda da maçã quanto a órbita dos planetas, não pode ser assumida de forma absoluta ou ingênua. Não se trata, é certo, de voltar à situação anterior, herdada de certa tradição metafísica existente desde a Antiguidade, de uma duplicação do mundo entre este e o além (fora do domínio da Ciência), mas não se pode deixar de aprender a lição que o universo fornece a cada segundo sobre o papel da variação na história do cosmo. Revolvendo mais um aro da espiral, reconhecendo também a variação das leis da Física, testemunhamos mais uma revolução copernicana nesta disciplina, deslocando não apenas o ser humano ou o planeta do centro da existência, mas o próprio universo com as propriedades que podemos observar, desfazendo-se o mito de uma única história possível para o cosmo.
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Apesar de aparentemente nada de novo ter ocorrido na Física depois das duas grandes descobertas do início do século XX, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, Novello chama atenção para a existência de uma terceira revolução na Física que silenciosamente se desenvolveu ao longo do século XX e que recebe cada vez mais atenção entre a comunidade científica, que é a dependência cósmica das leis da física, ideia que marca a entrada da História em mais um campo do conhecimento, que até considerava como algo estático seu objeto de estudo, a descrição das forças da natureza. A impossibilidade das equações, tal como as formulamos, em explicar o que ocorre em certas regiões do universo, nas quais a gravidade é tão grande que a própria natureza das outras forças é transformada, implica considerar também uma variação temporal dessas leis, já que no passado sabemos que o universo passou por um momento muito mais quente e denso que o atual (NOVELLO, 2022B).
Esse movimento guarda continuidade com o programa proposto por Engels em seus cadernos que ficaram conhecidos como A Dialética da Natureza, no qual a existência da materialidade como conjunto de relações contraditórias em movimento confere um caráter histórico e dialético ao universo. Além da dependência cósmica das leis da Física, o Manifesto Cósmico elenca outros dois princípios que fazem parte dessa revolução na Física: a solidariedade cósmica e o universo disruptivo. É um interessante exercício, que aqui não podemos desenvolver a contento, pensar esses princípios à luz das leis da dialética que Engels extrai de Hegel, da transformação da quantidade em qualidade, da unidade dos contrários e o princípio da negação da negação. Não se pode olvidar a substancial diferença, de que para Engels, estas assim chamadas leis são consideradas na medida em que podem ser derivadas da Natureza, e não como um enquadramento impositivo sobre a realidade, como na obra de Hegel.
O universo disruptivo tem a ver com a transformação da quantidade em qualidade por saltos através das bifurcações[3] que se manifestam nos espaços de fase dos sistemas dinâmicos complexos, mas tem a ver também com o princípio da negação da negação, que não se resume apenas ao desenvolvimento mediante a contradição, mas à própria historicidade que se constitui quando o presente nega o passado resultando no futuro. A forma espiralada do desenvolvimento, um infinito que nunca se repete é uma consideração dialética já presente nos gregos, exemplificada pelo rio de Heráclito.
Já o princípio da solidariedade cósmica, inspirado na relação de interpenetração entre as variáveis locais e globais (ou indivíduo e estrutura) no estudo da Física pensada por Albert Lautman, remete à formulação de Engels sobre a dialética entre a necessidade e a contingência, um falso antagonismo no qual a metafísica se encontra presa. Não existe relação apenas contingente ou apenas necessária, assim como não existe apenas local ou apenas global, da mesma forma que na biologia dialética não existe cisão entre ambiente e organismo. Engels falou na unidade dos contrários, o reconhecimento de aspectos duais da realidade que nos permite pensar por contradições.
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Como antídoto à crise da Ciência, o autor do Manifesto Cósmico defende um “programa de autocrítica da Ciência”, que não nega suas conquistas, o avanço na compreensão objetiva e material do mundo, mas, sim, busca ultrapassar a “crise institucional da Ciência”, e para isso é fundamental reconhecer o peso que tem na elaboração dos cientistas toda a sua concepção de mundo, todas as demais sinapses de seu cérebro que não podem ser desemaranhadas.
Essa autocrítica da ciência se manifesta em um primeiro momento de forma isolada em diferentes campos científicos, a partir do reconhecimento dos limites que impedem o avanço de cada disciplina, mas logo se conforma, amparada na transdisciplinaridade, em uma corrente dentro da crítica especializada que estuda como a Ciência é feita[4], e, finalmente, quando esta reflexão estiver conjugada com mudanças no interior de cada disciplina e numa mudança na sociedade em geral, poder-se-á constituir a amálgama necessária para uma nova revolução científica com consequências sobre as quais, assim como Bacon fez em sua época, podemos não apenas especular, mas também realizar projeções mais ou menos acertadas.
Com a possibilidade real de um processo exponencial de automação da produção material, sugerido pelos primeiros protótipos, ainda que incipientes, de máquinas autorreplicantes, o paradigma do lucro e da mercantilização da força de trabalho tornou-se muito estreito para mediar os intercâmbios sociais e sua manutenção através da dominação de classe passou a ameaçar a existência da humanidade. Como a forma mercadoria está na base de toda a nossa sociedade, inclusive na forma como a ciência é produzida na contemporaneidade, estudar cientificamente a natureza da crise orgânica do capital é uma tarefa necessária para os cientistas de diferentes campos do conhecimento. Além disso, esse esforço, que une os cientistas com o restante da classe trabalhadora, é imprescindível tanto na solução das crises paradigmáticas de cada uma das disciplinas, quanto para uma solução mais geral dos problemas existenciais da humanidade, pois a crise orgânica do capital:
indica o cantar do galo gaulês para toda a estrutura de valores assentada neste paradigma e cada vez mais faz crescer a consciência social de que é o próprio capital o grande obstáculo à realização humana. A crise é o toque de alvorada da ciência e por sua vez da educação; os trabalhadores, a verdade prática das mesmas; libertando o trabalho do capital, liberta-se a humanidade do trabalho imediato, para viver o mundo do paradigma do tempo livre como riqueza social, vislumbrado desde humanistas e utopistas, mas de fato possível no socialismo, enquanto ciência e educação revolucionárias como predisseram Marx e Engels (BEVILAQUA, 2017).
O que é muito semelhante, à compreensão de que a crise da Ciência
só será ultrapassada quando a sociedade entender e exigir que ela retorne a seus fundamentos e não se submeta ao desenvolvimento tecnológico. Se isso acontecer é porque a estrutura social, as relações de produção e os interesses da sociedade, se transformaram tão profundamente que a noção de humanidade teria então adquirido seu verdadeiro significado (NOVELLO, 2022A).
Em suma, a crise na ciência, exige, para se ter uma compreensão mais elaborada desse fenômeno, que nos ocupemos dos paradigmas internos dos diferentes campos científicos, mas também reflitamos sobre como estes se conectam aos paradigmas mais gerais da sociedade, que estão mais diretamente ligados à lógica imposta pela relação-capital.
A Física, que serviu de modelo através do reducionismo e da matematização a todos os outros campos científicos, pode mais uma vez, agora refundada pela Cosmologia, promover uma nova revolução científica, a partir do reconhecimento de que no universo nada está imune à mudança, nem as leis da Natureza. Isso posto, o que a Ciência, como um todo, pode então dizer sobre as obsoletas relações de mercado que condicionam toda a sociabilidade humana?
A Ciência necessária é aquela que reconhece, a partir da dinâmica do processo histórico, o papel da luta pela transformação revolucionária da sociedade, a superação do capitalismo, como condição necessária para a superação das múltiplas crises que a humanidade enfrenta, inclusive a da Ciência.
Referências
BACON, Francis. MAGNALIA NATURÆ. In The Works of Francis Bacon. Cambridge: Cambridge University Press. 2011. doi:10.1017/CBO9781139149563.011
BERNAL, JOHN DESMOND. Historia Social de la Ciencia. Barcelona: Ediciones Península, 1989.
BEVILAQUA, A. P. A Crise Orgânica do Capital: o Valor, a Ciência e a Educação. Vol. 1. Rio de Janeiro: Edições UFC/ Inverta, 2017.
CAUDWELL, C. A Crise da Física in O conceito de liberdade: para uma teoria marxista de estética, Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
ENGELS. F. Dialectics of Nature. in Marx and Engels Collected Works: Volume 25, London, UK: Lawrence & Wishart, 2010, pp. 452-465.
LEVINS, R., & LEWONTIN, R. C. Biology Under The Influence: Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health, New York: Monthly Review Press, 2007.
MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política, São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I e II e III, 5 v. (Os Economistas).
______. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-58: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2011.
NOVELLO, Mario. Manifesto cósmico. In Cosmo & Contexto. 2016. Disponível em <https://cosmosecontexto.org.br/manifesto-cosmico/>
______. Manifesto cósmico 2. In Cosmo & Contexto. 2022A. Disponível em <https://cosmosecontexto.org.br/manifesto-cosmico-2/>
______. A terceira revolução na Física. In Cosmo & Contexto. 2022B. Disponível em <https://cosmosecontexto.org.br/manifesto-cosmico-2/>
Rafael Carduz Rocha é formado em História (USP) e Ciências da Computação (SENAC). Mestre em Politicas Públicas e Formação Humana (UERJ), doutorando (UERJ).
[1]Esta obra foi publicada, alguns anos após a morte de Bacon, apensada ao final da Nova Atlântida, o que gerou um debate que perdura até hoje sobre qual a sua unidade com o restante do livro.
[2]O paradoxo, cuja solução está além da prisão epistemológica na qual reside a economia liberal, é: como é possível na manifestação da crise termos pessoas desempregadas, outras sem condições de consumir e máquinas paradas, e ainda assim o capital não consegue se valorizar?
[3]A existência das bifurcações foi notada por Poincaré, e convertida, com a constante de Feigenbaum em uma das compreensões mais profundas sobre o universo em que vivemos.
[4]História da Ciência, ou Filosofia da Ciência, ou Sociologia da Ciência, ou estudos de Ciência (Science Studies), ou Sociologia do Conhecimento Científico, a depender de como cada corrente enxerga o debate sobre a Natureza da atividade científica.