Mario novello: um pensador para o próximo milênio
Esse artigo faz parte do livro O Encantamento do Cosmos (em homenagem aos 80 anos
de Mario Novello), Editora Livraria da Fisica, 2022.
- Abertura
A obra de Mario Novello me acompanha há muitos anos. E sempre que posso, introduzo algum livro seu como bibliografia de base nos meus cursos livres de filosofia. Um dos pontos de virada de minha relação com seu pensamento ocorreu em uma conferência que ele realizou na USP, na área de Antropologia da Ciência, no segundo semestre de 2014, dentro de um curso dedicado à obra Nova Aliança de Isabelle Stengers e Ilya Prigogine. Os condutores eram os professores Stelio Marras, Renato Sztutman, Marina Vanzolini e, como professora convidada, Maria Borba. Era a primeira vez que via Mario de modo presencial e que assistia a uma conferência sua. O impacto foi enorme. Percebi que quase todos os problemas que me afligiam em filosofia estavam sendo perseguidos e aprofundados por Mario no campo da cosmologia. Ver em viva voz um dos maiores cosmólogos do mundo desenvolvendo na lousa passo a passo, modelo a modelo, as principais revoluções da física moderna e lançando as bases da metacosmologia representou para mim quase uma iluminação intelectual. Uma epifania. Desde então, passamos a trocar e-mails.
O diálogo se aprofundou em 2020, quando delineei uma ideia para meu segundo pós-doutorado, que tinha a intenção de desenvolver sob sua supervisão. As dificuldades da pandemia me lançaram em um turbilhão de trabalhos e compromissos acadêmicos e a ideia foi sendo postergada. Quando surgiu algo ainda mais interessante no horizonte: a possibilidade de reunir toda sua obra em uma Biblioteca Mario Novello. Conversei com Cesar Benjamin, editor da Contraponto, e as coisas começaram a tomar forma. Simultaneamente, Mario havia me enviado o original de Quantum e cosmos: Introdução à metacosmologia. O livro, como deve se supor, era uma bomba. Acionei a Contraponto, em pouco tempo o trabalho editorial começou e o livro foi publicado em 2021.
Desde então, o contato frequente com Mario por e-mail e meu trabalho como coordenador da Biblioteca Mario Novello estão entre as experiências intelectuais mais enriquecedores que eu poderia ter. E, a despeito do obscurantismo que grassa no Brasil e de tantos problemas socioeconômicos, seguimos firmes e fortes para ultimar a Biblioteca Mario Novello com a excelência que um projeto desse merece. No momento em que escrevo este depoimento, estamos preparando Os construtores do cosmos, seu novo original com previsão de sair em agosto de 2022. Em mais de uma de suas obras, Mario se valeu de Seis propostas para o próximo milênio, do escritor italiano Italo Calvino. Como venho da filosofia e da literatura, neste depoimento tomo a liberdade de imitar ambos, Mario e Calvino, no título e nas subdivisões. E procuro delinear de um modo sucinto e informal seis grandes matrizes conceituais do pensamento de Mario.
- Temporalidade
A obra de Mario Novello abre sulcos sinuosos no pensamento: caminhos errantes de floresta (Holzwege) que paradoxalmente conduzem à verdade, como ele gosta de lembrar a partir de Heidegger. Seguindo-o como Dante a Virgilio, singramos pelos meios-fios de alguns abismos da filosofia e da cosmologia. Trata-se de um pensador dos limiares-limites. Alguém que não se ocupa das noções de verdade estabilizadas, mas trabalha para criar novas concepções de verdade. Um pensador instituinte, não um seguidor do instituído. Um autor que inaugura novos campos do conhecimento e novas abordagens sobre os fatos da ciência e dos saberes. Para pensar com Deleuze, Novello não é apenas um operador de funções, mas um criador de conceitos, de linhas de fuga e de novos mundos. Para além da qualidade investigativa rigorosa de suas obras, vemos uma vocação especulativa para imaginar novos mundos e novas formas de conceber tudo que existe. E quando digo especulativo, obviamente não uso o termo em sentido trivial. Designo a longa tradição da filosofia especulativa, de Leibniz a Hegel e de Whitehead a Deleuze, desaguando nas diversas vertentes do especulativismo contemporâneo.
Uma das tantas ideias originais que permeiam a obra de Novello é a tese de que as leis da física podem variar conforme a evolução do cosmos. Esse tema permeia sua obra e encontra um ponto de inflexão em O universo inacabado (2018). A noção de evolução, entendida a partir de Darwin, é muito produtiva. Desde a termodinâmica, de Ludwig Boltzmann e Nicolas Carnot, o grande desafio da ciência permanece sendo este: integrar as ciências físicas e as ciências da vida. E conciliar as duas culturas, para usar a expressão de Snow: a cultura naturalista e a cultura humanista. Para tanto, dizer que o universo é vivo não nos ajuda muito. Talvez a resposta esteja na capacidade vetorial da energia em sistemas dinâmicos. Desde que Louis-Auguste Blanqui estabilizou o conceito de eternidade do universo, um problema se apresentou: o infinito. Esse problema foi analisado por Karl Schwarzschild, hoje definido como um dos pioneiros da singularidade e dos buracos negros. À medida que a física é uma ciência do finito, esse problema não deixa de ser agudo e sempre reproposto. E é enfrentado por Novello. Para contorná-lo, Novello recorre ao físico russo Alexander Friedmann.
Em 1922, Friedmann propôs a imagem de um universo em expansão e introduziu a dinâmica no universo: o volume do espaço aumenta com o tempo cósmico e o tempo, por seu turno, unifica e homogeneíza o universo, pois incide sobre tudo que existe. As bases de sua teoria podem ser resumidas nos seguintes tens: 1. O universo é espacialmente homogêneo e isotrópico, ou seja, não existe nenhuma posição e nenhuma direção privilegiadas no espaço. 2. Existe um tempo global que permite a descrição completa do espaço-tempo por meio de coordenadas gaussianas, segundo as quais o tempo é unidimensional e o espaço, tridimensional. 3. O volume do universo varia com o tempo. É o fim do apriorismo e da transcendentalidade do espaço-tempo. O espaço-tempo deixa de ser o transcendental apriorístico de Newton ou o transcendental relativista de Einstein.
A temporalidade torna-se o vetor de transformação dinâmica do cosmos. Uma força imanente ao universo e fora da qual nada existe, semelhante ao plano de imanência de Deleuze-Guattari. Essa equação de Friedman sugere algo perturbador: se o universo está em expansão, a superfície do volume do espaço é homogênea e todos os pontos do espaço são iguais. Lembremos que algo semelhante ocorre na topologia de Minkowski, por meio da qual dois pontos distintos podem ter distância igual a zero. Isso ocorre porque tudo que existe é determinado pela gravitação. Nos anos 1930, Dirac e Sambursky, em interações com a dinâmica cósmica de Friedmann, propõem que as leis da natureza não são eternas: o universo seria inacabado. Importante ressaltar a contribuição brilhante de Ernst Mach e de seu empiriocriticismo radical na configuração desse universo em devir. Este devir é um dos eixos de Novello.
Outros russos seguiram os passos de Friedmann: Belinsky, Khalatnikov, Markov, Sakharov, Melnikov e Orlov, alguns deles em diálogo direto com Novello. E sobretudo Evgeni Lifshitz, que analisou o comportamento do campo gravitacional na vizinhança da singularidade de Friedmann e chegou a uma solução dinâmica das equações da Teoria da Relatividade Geral (TRG) de Einstein. Contudo, na geometria de Minkowski-Einstein essa homogeneidade do espaço está a serviço das alterações promovidas pela gravitação. Na ausência de campo gravitacional, a geometria de Minkowski é plana. Embora a TRG pressuponha uma alta instabilidade do universo, permanece dando sustentação a um modelo do cosmo estático, e não dinâmico. Na TRG não há duas grandezas ou duas geometrias em combate. A gravitação é entendida como a topologia que modula as condições locais de um espaço-tempo universal e tridimensional. Em contrapartida, a partir de Friedman, em algum momento do tempo o universo teve um volume total menor do que as suas atuais condições tridimensionais. Surge a hipótese de um ponto de densidade infinita que, sob determinadas condições, colapsou: uma singularidade. Surge a imagem do big bang, que produziu tanta confusão na cosmologia e na divulgação científica, e da qual Novello é um dos críticos mais contumazes e perspicazes, como se pode ver em Do big bang ao universo eterno (2010).
Ora, resumindo bastante, o que Novello persegue ao longo de sua obra são os modos pelos quais pode-se pensar em: 1. Uma causalidade global e não local. 2. Como essa causalidade global, para ser concebida teoricamente, precisa romper com as cápsulas de proteção causal imanentes a nossos dispositivos mentais e a nossos instrumentos de medida e de observação. 3. Como essa nova causalidade global aponta para uma solução dos impasses presentes no conceito de singularidade. Dentre eles, a própria condição decoerente de um estado da matéria ao qual precisamos recuar para compreender o universo atual, mas que, ao mesmo tempo, viola todas as condições e todas as leis do universo atual. Afinal, seguindo a singularidade de Friedman, não conseguimos ter acesso ao momento inicial do universo e, por conseguinte, todo desdobramento do universo não teria como ser compreendida em termos causais. Estamos aqui às voltas com o problema da impossibilidade de reconstrução das condições iniciais dos sistemas, que remonta a Hume. 4. Por conseguinte, essa causalidade global, para atender à racionalidade, indica-nos que a singularidade não seria um evento inaugural de nosso universo. Seria sim um colapso interno à instabilidade e às flutuações de um universo eterno. Esse colapso teria inaugurado uma nova época cósmica, nas palavras de Alfred North Whitehead. Ou seja: teria inaugurado o cosmos atual e suas leis, não o universo e a globalidade de tudo que existe. 5. Por fim, esse encadeamento lógico nos leva à dependência cósmica das interações entre localidade-globalidade, um dos cernes da obra de Novello.
- Dependência
Em Os construtores do cosmos (2022), Novello retoma o jogo entre peso e leveza descrito por Calvino para propor um paralelismo: o peso seria o terrestre e a leveza seria o cósmico. A partir de condições observacionais contingentes, como podemos deduzir leis gerais que não sejam meras extrapolações da causalidade imanente a essas configurações contingentes? Novello está enfrentando aquele que talvez seja o maior problema da filosofia, que se arrasta desde o ceticismo grego, tomou corpo na querela medieval dos universais e recebeu o golpe decisivo de Hume. A dedução transcendental de Kant não foi suficiente para resolver esse problema que continuou sendo denegado pela filosofia. O apriorismo da topologia de Gauss guia a cosmologia de Einstein. Em outras palavras, embora seja possível a separação formal de espaço e tempo, ambas as dimensões estariam dependentes da amplitude de atuação do campo gravitacional.
Ademais, a cosmologia de Einstein exige um Princípio de Equivalência: qualquer unidade puntiforme do espaço-tempo pode anular os efeitos do campo gravitacional. Apenas assim pode-se estabelecer a relação entre massa inercial e massa gravitacional. A causalidade local da relatividade geral de Einstein não valeria globalmente a partir de uma geometria como a de Gödel, por exemplo. Por isso, Novello entende que seja essencial pensar o cosmos a partir de geometrias alternativas às matrizes não-euclidianas de Riemann, de Gauss e de Minkowski. E, por isso, a importância que a geometria de Gödel assume em sua obra, percorrendo alguns de seus livros e auxiliando a consumar a terceira etapa das três etapas da cosmologia moderna. A primeira etapa seria a estabilização da cosmologia e a demarcação epistêmica de seu objeto: a totalidade entendida como estrutura operacional. A segunda etapa consiste na conciliação da mecânica relativista de Einstein e do universo de Friedmann. A terceira etapa seria a metacosmologia e a busca por uma cosmogonia, ciência auxiliar da cosmologia e que Novello descreve em O que é cosmologia (2006). Trata-se da cosmologia entendida como ontologia do espaço, do tempo e da matéria. E, ao mesmo tempo, como um olhar que se afasta metodicamente da prática científica cotidiana.
Para ultimar essa nova cosmologia-cosmogonia, o teorema da incompletude de Gödel passa a ser uma das principais ferramentas para se acessar o cosmos a partir de leis cósmicas e não de leis terrestres: um dos âmagos da metacosmologia, novo saber e nova ciência criada e defendida por Novello e cuja premissa é justamente a dependência profunda das leis locais e das leis globais. Essa noção de solidariedade entre localidade e globalidade encontra ressonância na necessidade de se chegar a uma teoria fundamental capaz de unificar os campos micro e macro, o quantum e o cosmos. Essa tese se encontra descrita de modo acabado em Cosmo e Contexto (1988), primeira obra de Novello. O empreendimento de Novello visa essa unificação. Contudo, também tem consciência das dificuldades de realizá-la. E, por isso, opta por uma trilha mais realista e, por isso mesmo, mais difícil: a desconstrução dos modelos cosmológicos com singularidade.
O percurso dessa desconstrução e essa proposta de um novo modelo cosmológico de bouncing (ricochete), ou seja, sem singularidade, são familiares a todos os leitores de Novello. Embora as pesquisas de Novello nesse sentido remontem aos anos 1970, apenas no século XXI estes modelos começaram a ser mais reconhecidos. Em parte isso se deve ao processo de axiomatização da cosmologia, que acabou culminando na assimilação da singularidade à imagem do big bang. Esse desafio da coimplicação entre micro e macro, entre particular e universal, entre o leve e o abissal, entre localidade e globalidade está posto desde os primeiras suposições de Niels Bohr e de seu princípio de complementaridade. Entretanto, a antimatéria não existe em quantidade igual à matéria, pois, caso fosse assim, nada existiria. Mesmo assim, existe uma complementaridade entre ambas para que haja a homeostase do sistema-universo. O antigo problema metafísico da pergunta sobre o porquê algo existe e não o nada torna-se um problema precípuo da cosmologia. E Novello o enfrenta em diversos momentos da sua obra.
O universo começou de um vazio instável e de uma flutuação infinita. Não surgiu de uma caixa vazia, ainda que esta fosse uma caixa de Schrödinger. Afinal, outro problema presente no modelo do big bang é explicar racionalmente a pergunta: de onde teria vindo toda informação contida em todos os processos do universo se o universo emergiu do nada? Por isso, a resposta é: o universo não poderia não existir. Como a nadificação criadora de Hegel e de Heidegger, o nada não é uma substância. Ele é o modo de ser da facticidade (Dasein). É a configuração existencial de todo horizonte da temporalidade que nadifica todos os seres em seu devir. A facticidade primordial do universo é a flutuação. E estas passam a ser cada vez mais as imagens descritivas da teoria quântica: espuma e flutuação. Imagens que cada vez mais concorrem ao posto de imagens globais do cosmos.
Essa dependência das leis físicas não limita nosso conhecimento do universo. Apenas exige uma solução não-estática. O problema do local e do global se intensifica quando pensamos nas diversas descrições de trajetórias que precisamos realizar para ter uma compreensão real e racional de um fenômeno, o mais simples que seja. Uma história local seria a medição de uma sucessão de eventos feita por um observador que tomasse seu próprio tempo como parâmetro. Uma história global deveria descrever o continuum de ocorrências que estariam não apenas no passado de um corpo, mas também em seu futuro. A totalidade do espaço se transforma em totalidade de espaço-tempo. O mundo não pode mais ser concebido como uma sucessão de eventos no espaço. Deve ser concebido como uma unidade de espaço-tempo. E duas dimensões do tempo passam a assumir uma importância primordial: o passado e o futuro. Dessa sobreposição entre posicionalidade e temporalidade, Novello extrai problemas ainda mais profundos, não postulados pela física e sequer pela cosmologia. Um deles diz respeito às viagens no tempo.
- Reversibilidade
A alteração da causalidade proposta por Novello nos conduz de uma causalidade linear a uma causalidade não-linear. Paralelamente aos passos de Edgar Morin e à teoria da complexidade, essa nova condição causal poderia ser definida como reversibilidade: a propriedade de sermos criados por aquilo que criamos. Todos os seres do universo são criadores-criaturas de si mesmos. Essa reversibilidade pode ser equacionada ao paradoxo de Gödel: as configurações que conduzem ao passado seriam eternas e, ao mesmo tempo, podem ser encontradas em toda história do universo. Ora, esse é exatamente o cerne da especulação de Novello em Máquina do tempo (2005), um livro desconcertante sob diversos aspectos. Um verdadeiro tratado de metafisica incrustado no epicentro da cosmologia.
Uma das dificuldades encontradas para a defesa da reversibilidade é o Princípio de Cauchy. As equações diferenciais da física moderna preveem uma contiguidade espaço-temporal do universo. O universo está conectado em uma cadeia causal. O Princípio de Cauchy organiza essa unidade transcendental em um tempo sequencial. Entretanto, processos não-lineares, incluindo as emissões de fótons, começaram a emergir em diversos aspectos e contextos, formais e observacionais. Cosmos e contextos, sempre entrelaçados. E, não por acaso, estão na gênese da teoria quântica ainda em seus primeiros esboços, de Max Planck a Einstein, de Niels Bohr à ascese de Werner Heisenberg na ilha de Helgoland. Comecemos então pela luz.
A determinação da estrutura causal do mundo é a luz. Na equação de Maxwell, o caminho do fóton descreve uma geodésica, ou seja, uma curva. Nesse sentido, a linearidade global dependeria das condições de um único observador que torne linear uma trajetória curva. Tendo isso em vista e em contraponto, como podemos descrever a geometria de Gödel? Em cinco passos: 1. O efeito da vorticidade sobre o observador. 2. O observador é arrastado para um ponto de intensidade gravitacional cuja ação só poderia ser suspensa pela intervenção de uma força não-gravitacional. 3. Ao atuar com essa outra força, distinta da gravitacional, o observador perderia a liberdade. 4. Portanto, o percurso do observador não coincidiria mais com uma geodésica 5. Isso o impede de construir um tempo único necessário à consumação da transcendentalidade do espaço-tempo. Nesse cenário, para se levar a cabo uma viagem no tempo seria preciso detectar as condições causais e efetivas da existência de uma curva CTC (closed timelike curve): uma curva do tipo-tempo fechada. Ora, essa CTC seria justamente essa vorticidade exigida para a efetividade de um universo de Gödel. A trama cósmica não ocorreria apenas nos termos de um eventual emaranhamento quântico. Dar-se-ia também nos fios sobrepostos de temporalidades e de acessos ao passado e ao futuro. Em outras palavras: como solidariedade.
- Solidariedade
A solidariedade é um conceito nuclear para todas as teorias conexionistas e relacionais. Irradia-se por todas as ciências e filosofias do século XXI. E também o é para a cosmologia de Novello. A noção de solidariedade se alinha à noção de ciclos cósmicos. Cada vez mais novos modelos cosmológicos têm trabalhado a categoria de solidariedade. E a quantidade de solidariedade de cada ciclo determinaria cada um desses ciclos. Por isso, seguindo o filósofo e matemático Albert Lautman, para que uma estrutura global do universo seja estável por um tempo longo é preciso haver um acordo entre as solidariedades locais e globais. A conexão global-local de Lautman seria uma das soluções para os paradoxos de Gödel. Atualmente, a cosmologia relacional de Carlo Rovelli tem apostado na relacionalidade e no emaranhamento quântico como matriz de explicação para as antinomias do substancialismo, ainda presentes na cosmologia. Rovelli define essa nova postura como um naturalismo sem substância.
Cada ciclo poderia ter uma dependência temporal: os processos que são válidos em um laboratório terrestre não seriam válidos para outros locais do universo, onde haja gravitação forte, por exemplo. Entretanto, para haver uma solidariedade cósmica, o global e o local não podem ter propriedades que não possuam coerência interna, independente do ciclo em que o universo esteja. Poderíamos chamar essa perspectiva inovadora de Novello por um neologismo: o Princípio de Glocalidade. Não por acaso, a solidariedade entre as partes e o todo não é aceita por Einstein, tampouco os modelos de cosmos organizados em ciclos. O criador da cosmologia moderna temia que essa solidariedade se transformasse na fantasmagoria de uma ação à distância e em um Deus que joga dados: a teoria quântica.
- Quantização
A Teoria da Relatividade Especial (TRE), desenvolvida por Poincaré, Lorentz, Minkowski e Einstein, foi em seguida retomada Max Born e Wolfgang Pauli, protagonistas da teoria quântica. A radical não-simultaneidade do tempo pressuposta na TRE ainda é um fato da ciência aberto às mais complexas especulações. O desdobramento esperado de uma vetorização do tempo e de uma imanentização do espaço-tempo seria justamente este: a implosão das categorias a priori e dos transcendentais, os grandes unificadores do cosmos. Esse colapso propiciou um inaudito pluralismo da experiência, dos mundos, do tempo, da causalidade e do espaço. Surge um espaço cujo granularidade não se unificava em um espaço homogêneo, imanente ou transcendente. Surge uma multiplicidade de tempos que não se unifica sob o continuum de um tempo. Surge uma causalidade que depende dos infinitos interatores que, fazendo as vezes de observadores, alteram o comportamento de quaisquer fenômenos que se queira descrever. Enquanto a teoria quântica postulava assombrada essas descobertas que abalavam os fundamentos de todo conhecimento que se tinha desde a Antiguidade, paralelamente a filosofia não seguia um caminho diferente. A ontologia e a cosmologia perspectivistas de Nietzsche, o empirismo radical e os pluriversos de William James e do pragmatismo, a filosofia processual e organicista de Whitehead, a ciência global dos signos do cosmos-semiose de Charles Sanders Peirce, a pluralização infinita dos meios-circundantes (Umwelten) dos seres vivos, na biologia existencial de Jacob von Uexküll, e, por fim, a destruição do castelo da filosofia empreendida por Heidegger, por meio da pluralização dos mundos e da nadificação: a desertificação do real como desentificação do ser.
Nesse contexto, a quantização da totalidade do espaço-tempo passou a ser uma possibilidade cada vez mais considerada, sobretudo a partir das intepretações da obra de De Broglie e, mais tarde, de David Bohm. Nesse ponto, é essencial refletir sobre o papel da teoria quântica no pensamento de Novello. E sobretudo sobre o papel desempenhado pela geometria de Hermann Weyl e pelo observador externo de Bohm. Em seus estudos de mecânica quântica, Weyl propôs a unificação entre gravitação e eletromagnetismo, bem como uma aplicação da teoria quântica ao universo. Para tanto, seria preciso criar uma nova régua de medição que variasse de comprimento de acordo com cada nova posição. Nessa curiosa geometria, as unidades de medidas (réguas e relógios) não são preservadas em um transporte no espaço-tempo. E o mais surpreendente: a geometria de Riemann pode ceder lugar a essa geometria de Weyl, tanto no macrocosmos quanto no microcosmos. Quanto a Bohm, sabe-se da sua importância para o desenvolvimento da teoria quântica e de suas soluções eficazes para os impasses relativos às variáveis ocultas, um dos trunfos de Einstein para minimizar a genialidade dos garotos de Copenhagen e da teoria quântica de modo geral.
Para produzir uma descrição quântica do universo, Wheeler e DeWitt formularam uma equação semelhante à famosa expressão da função de onda de Schrödinger. Como a polêmica função de onda, que o paradigma Heisenberg-Bohr de certa maneira acaba por suplantar, o desafio continua sendo o mesmo: como unificar processos não-discretos e ambivalentes como os envolvidos em um campo quântico por meio de uma equação universalizante? O debate é extenso, complexo e cheio de meandros. Impossível sequer segmentar algumas breves linhas de interesse para este breve depoimento. Além de seguirmos os passos de Wheeler-DeWitt, precisaríamos cotejar as interpretações de Novello com outros modelos da teoria dos muitos mundos, como a computação quântica de David Deutsch e a teoria da multiplicidade de mundos colapsados, desenvolvida por Hugh Everett. Uma das premissas, tanto da teoria quântica quanto de toda física, é a finitude. Os físicos detestam o infinito na mesma medida em que os matemáticos o amam. Tanto que, mesmo em teoria quântica, trabalha-se como uma mínima unidade métrica da extensão: o comprimento de Planck. Infinitesimal, mas não infinito. Nesse sentido, a transgressão final de Novello o coloca no âmago não apenas do infinito, mas dos infinitos, no plural.
- Infinitos
Em Os construtores do cosmos (2022), Novello faz uma das mais didáticas topicalizações dos pontos nucleares da metacosmologia. A cosmologia e sua extensão natural, a metacosmologia, ultrapassa os limites da física. E o faz à medida que tem como objetivo a descrição da origem de tudo que existe: a matéria, a energia, a estrutura do espaço-tempo, a causalidade. E inclusive porque arrisca a pergunta mais fundamental, que mencionei acima: por que existe alguma coisa e não o nada? Sigamos os sete passos de Novello sobre os sete pontos cardeais da cosmologia e da metacosmologia, entendidos também como prolegômenos a toda cosmologia futura: 1. O nada. Segundo Bertrand Russell, o paradoxo do nada é o seguinte: se não existe nada, existe o conjunto vazio. A partir dele, constrói-se um número infinito de subconjuntos. 2. O vazio cheio. O vazio estaria na origem de tudo que existe, tese consonante à do filósofo Alain Badiou. O universo se construiu através de um tempo de existência infinito. A matéria é uma consequência natural da transformação daquele vazio. 3. A causalidade. Como atravessar esses caminhos que levam ao passado e ao futuro e que Gödel, desafiando as formas convencionais do espaço-tempo, pacientemente construiu? A resposta para essa questão estaria nos percursos de reversibilidade e de dependência global-local que descrevi acima. 4. Local ou global? É preciso passar do horizonte infinitesimal das equações diferenciais da física newtoniana às leis globais. Estas haviam sido entrevistas apenas em sonho ou na cosmologia-poesia de Ghiyāth al-Dīn Abū al-Fatḥ ʿUmar ibn Ibrāhīm Nīsābūrī (1048-1131), conhecido no Ocidente como Omar Khayyam, poeta que Novello insere dentre os construtores do cosmos. Agora as leis globais são materializadas pela metacosmologia. 5. A teleologia. As propriedades específicas da matéria e a evolução do cosmos teriam um objetivo final? O escritor Ted Chiang assimilou o paradoxo de Fermat à uniformidade e à universalidade da luz. Se a luz é a matriz de mensuração do universo, a luz não possui sentido. Logo, não há telos ou causalidade final no devir-universo. 6. O todo e as partes. Devemos seguir Lautman e propor uma simbiose entre as partes e o todo? Essa é a prerrogativa de praticamente todas as teorias contemporâneas da complexidade, em todas as áreas do conhecimento. Novello é um desbravador nessa trincheira. 7. Infinitos. Chegamos finalmente a Georg Cantor, o criador dos transfinitos: uma multiplicidade de infinitos, em uma infinidade de bifurcações e em uma sucessão ilimitada de labirintos, como o cosmos do escritor Jorge Luis Borges. O problema dos transfinitos fora devidamente abordado por Novello em O universo inacabado (2018). A passagem do infinito potencial, vigente da Antiguidade ao século XIX, ao infinito atual de Cantor é uma das maiores fraturas na história do conhecimento humano. O que fazer com esses transfinitos?, nos pergunta Novello, justamente ao fim desse resumo da metacosmologia. Essa pergunta é capciosa. E, não por acaso, o infinito se encontra aqui, como sétimo e último item desse heptálogo. Toda obra de Novello pode ser entendida como um conjunto aberto e mutante de variações acerca dos limites constitutivos do pensamento e, por conseguinte, da busca ilimitada pela verdade. Nesse sentido, o infinito sempre esteve presente e sempre foi um grande guia, ainda que indireto e hesitante, no percurso sinuoso, ousado e errante desse pensador de tudo que existe.
Bibliografia
NOVELLO, Mário. Cosmos e Contexto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
NOVELLO, Mário. O círculo do tempo: um olhar científico sobre viagens não-convencionais no tempo. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
NOVELLO, Mário. Os jogos da natureza: a origem do universo, os buracos negros, a evolução das estrelas e outros mistérios da natureza. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
NOVELLO, Mário. Máquina do Tempo: Um olhar científico. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
NOVELLO, Mário. Os Cientistas da Minha Formação. Rio de Janeiro: Livraria da Física, 2006.
NOVELLO, Mário. O que é cosmologia? A revolução do pensamento cosmológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
NOVELLO, Mário. Do big bang ao universo eterno. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
NOVELLO, Mário. O Universo Inacabado. São Paulo: n-1, 2018.
NOVELLO, Mário. Quantum e Cosmos: Introdução à Metacosmologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.
NOVELLO, Mário. Os Construtores do Cosmos Rio de Janeiro: Contraponto, 2022.