Eu não sou rei de consciências humanas
Quando o soberano da Polônia, Miezszko I se converteu ao Cristianismo e proclamou a religião como a oficial do Estado em 966, enfrentou resistências, embora, ao longo deste século IX, sua prática se propagasse pelos territórios polacos. Oitenta anos depois da conversão oficial, os filhos e os netos de Miezszko I, que foram obrigados por ele a adotar o Cristianismo como religião, se sublevaram contra o príncipe reinante e a Igreja.
Desse período, muitas crenças pagãs permaneceram profundamente arraigadas durante um longo tempo nas pessoas. São poucas, porém,as informações conservadas sobre essas crenças. Não raro, um sábio monge fazia menção, em algum livro para confessores, dos diversos ritos e crenças pagãos, a fim de que dessem crédito aos mesmos. Um tratado salesiano do século XIII, que chegou até os nossos dias, fala dos segredos da confissão. Nele, conhecido como “Cisterciense de Silesia”, são descritos os rituais professados por três irmãs chamadas “Parcas”, que asseguravam a riqueza por meio de oferendas. Outro exemplo é o de Heleniza, uma deusa do bosque, também chamada de Fauna. A ela eram atribuídos poderes de garantir sonho tranquilo às crianças. Outro mencionado é Penates, os bons espíritos domésticos, a quem se atribui a capacidade de garantir paz na família.
Toda religião pagã do passado se extinguiu pouco a pouco. O cristianismo, em seu rito romano latino, consolidou-se como a única religião que compôs toda a cultura da nação. Difícil, no entanto, é delimitar o que é fruto do cristianismo e o que advém da cultura pré-cristã, uma vez que dela se conhece muito pouco.
As heresias da Idade Média resistiram até o século XIV, época em que apareceram as marcas das influências dos bergados e dos beguinos, seitas radicais perseguidas pela Inquisição. Até a metade do século XIV, a intolerância religiosa não chegava a ser uma questão de fundo. Isto porque a sociedade era homogênea, religiosamente falando. Apenas os judeus, perseguidos no Ocidente e acolhidos pela Polônia, constituíam um elemento confessional estranho.
Apenas na segunda metade do século XIV, quando o rei Casimiro o Grande anexou à Polônia os territórios russos situados ao Sul, cuja população não era católica, mas sim ortodoxa, é que essas mudanças puderam ser sentidas. Os demais territórios russos e bielorrussos, também ortodoxos, a esta época, se encontraram integrados na união polaco-lituana, formada a fins do século XIV. Estes territórios estavam habitados também (em Lituânia, especialmente), por colonos tártaros,que tinham procurado refúgio ali e permaneciam fiéis ao islamismo. A Polônia então se converteu em um país de nacionalidades e religiões múltiplas.
Simultaneamente surgiu a primeira grande abertura ao catolicismo aborígene da Polônia. O husitismo foi a primeira religião cristã não católica que durante a metade do século XV se propagou na Polônia entre a nobreza, os burgueses e, ao que tudo indica, também entre os camponeses.
O que contribui para a popularidade deste movimento foi o seu caráter nacional, eslavo, e o fato de que se opunha às influencias alemãs, o alto nível moral dos seus propagadores, sua luta pela reforma da Igreja e, finalmente, por razões políticas: a possibilidade para o rei da Polônia de subir ao trono tcheco, a perspectiva de um bloco de todos os Estados eslavos suscetível de deter a expansão alemã.
O rei Ladislao Jagello permaneceu fiel aos orientadores de consciência. Seus éditos tendiam a não cumprir o husitismo, condenando os seus adeptos. Mais tarde, depois da morte do rei, os partidários de uma Igreja eslava, recrutados entre a nobreza, foram derrotados em uma luta armada. A primeira resposta do Estado, ao menor sinal de perigo, foi proibir a renúncia ao catolicismo. Mas, ao mesmo tempo, este Estado concedia direitos quase iguais aos ortodoxos e ao pequeno grupo de maometanos que, normalmente, acendiam à nobreza sem mudar de religião.
Esta não era uma política consequente. Do Estado saíram as primeiras iniciativas para a união do catolicismo e da religião ortodoxa, nem sempre aceita voluntariamente. No entanto, considerando os métodos aplicados na época para combater a heresia, e a maneira como a população não católica era tratada nos países católicos, os métodos polacos eram bem condescendentes.
Este posicionamento proporcionou o surgimento de uma voz que concebia a comunidade humana e a comunidade nacional como fenômenos independentes da religião e da homogeneidade religiosa. Pawel Wlodkovic, sábio cracoviano do século XV, escreve sobre a unidade da humanidade como um problema moral, e a respeito da tese impugnadora de que entre os homens existem infiéis, refutou que a solidariedade da humanidade inteira é uma “virtude moral” independente da crença religiosa, que é uma “virtude teológica”. Pawel Wlodkovic abriu a via na ciência polaca ao princípio da liberdade de consciência.
A questão se colocou com toda força no século XV, o século da Reforma. O Luteranismo se propagava rapidamente não só na Polônia – principalmente na cidade -, mas também nas massas campesinas da Silésia e na Prússia Oriental, pequeno Estado vassalo da Polônia. O primeiro soberano laico deste Estado, Albrecht Hohenzollern, sobrinho do rei da Polônia, meio polonizado, foi responsável pela fundação, em koenisberg (hoje Kaliningrado), da primeira escola superior não católica, que se pode chamar polaca, em razão do grande número de professores polacos que nela ensinavam, e dos livros também polacos que publicou.
No entanto, entre a nobreza – classe governante na Polônia – se propagava, sobretudo, o calvinismo e também as ideias dos “Hermanos Polacos”, antitrinitários. A primeira reação do rei Segismundo I foi a repressão, sobretudo ali, onde o movimento protestante se unia à efervescência social, como se produziu em Gdansk ou na Prússia Oriental. Ainda assim, a Reforma se propagou tanto que prosseguir com a repressão podia conduzir à guerra civil, como sucedeu na Alemanha ou na França.
A partir de 1548, ano em que Segismundo Augusto subiu ao trono, a situação foi mudando progressivamente. O rei era católico, mas seu cunhado e conselheiro político, o magnata Radziwill, era calvinista. Os bispos católicos formavam parte do Senado, mas Jakub Uchanski, cabeça da Igreja católica, primado e arcebispo de Gniezno, que ameaçou o papa ao contestar seus decretos à Dieta Polaca, era partidário da convocatória de um concílio nacional que se pronunciasse sobre a religião que devia dominar na Polônia. E também, o Parlamento estava presidido por um “Hermano Polaco”, Mikolaj Siennicki, quem em 1569, no momento de pronunciar o juramento de ratificação da união polaco-lituana, se negou a jurar pela Trinidade, dizendo que só reconhecia a um Deus.
Em 1573, quando teve que proclamar a escolha do rei Stefan Batory, rechaçou os Te Deum “romanos” e, ajoelhando-se em meio à nobreza, entoou o “Pai Nosso” em polaco. Nessa ocasião,a Polônia já era um país de liberdade religiosa e de lutas religiosas, sem fazer uso de armas nem de fogueiras para queimar os heréticos, mas sim de palavras.
Duas saídas se perfilaram. Uma delas era apoiada pela maioria dos deputados. Estes recusavam a religião católica e se mostravam desejosos por voltar à “palavra pura de Deus”. Suplicavam ao rei que “como monarca cristão guardião da vontade do doce Senhor”, reparasse “em primeiro lugar o que se faz contra seus santos mandamentos”, e formasse “um concílio autoritate sua”. Dito em outras palavras: que viesse um Enrique VIII polaco, que estabelecesse no curso de um concílio nacional a profissão de fé da nação, que criasse uma Igreja nacional e que fizesse dela a religião dominante.
Outra saída era vista nas palavras que um escritor da época colocava nos lábios do rei e que a definiam perfeitamente. Possivelmente era só uma lenda, mas Segismundo Augusto era visto dessa forma.
Quando se solicitou do rei que ditasse aos seus súditos o culto a observar e o caráter que devia ter a Igreja na Polônia, Segismundo Augusto respondeu, segundo atribui-se a ele: “Eu não sou rei de consciências humanas”. Poderia ter feito da Igreja na Polônia um instrumento seu, porém não o fez, e mais de um historiador polaco se lamentou por isso. Desta forma, teria possibilitado ao Estado uma autonomia das influências estrangeiras. Não quis. O historiador, para quem a história do país é um problema de poder, o condenou, com razão. Mas o historiador, para quem o homem e sua liberdade estão em primeiro plano, apreciará de outra maneira o soberano que colocava a liberdade de consciência acima da força do seu Estado.
Este testamento do rei encontrou sua expressão na decisão da Confederação de Varsóvia de 1573 votada por todos os estados (a exceção dos bispos católicos, pois apenas um a assinou) e que reza assim: “Nós prometemos uns aos outros em nosso nome e dos nossos descendentes, sob juramento garantido com nossa honra e nossa consciência, que inclusive em caso de divergências sobre a religião manteremos a paz entre nós”. Esta resolução é comparada, frequentemente, com o Edicto de Nantes ou a paz religiosa de Augsburgo. Porém, enquanto nesses lugares se tolerava somente a existência de certas religiões, na Polônia se admitiam todas as crenças, compreendendo a liberdade de consciência de maneira tão ampla que os católicos se queixavam de que se legalizava também o ateísmo. Na prática se vulnerava frequentemente este princípio – o que é compreensível em um século de paixões religiosas –, mas o que se conseguiu foi adiantar o processo dois séculos em relação àquela época.
Não obstante, este princípio não demorou em converter-se numa ficção minada pela Contra Reforma que não retrocedia nem diante do emprego da força e do abuso, incitando às multidões a destruir os templos não católicos e a perseguir as demais crenças. Uma boa parte da nobreza voltou ao catolicismo. A decisão relativa à tolerância religiosa foi renovada pela Confederação de Varsóvia de 1631 e confirmada uma vez mais em 1648. No curso dos anos 1658-1662 se exortou aos “Hermanos Polacos” a que escolhessem entre a volta ao catolicismo ou à expulsão. A maioria optou pela segunda, levando suas ideias ao oeste da Europa e da Holanda, se transladaram à América do Norte para viver livres em um país estrangeiro.
Com a lei de 1669, que qualificava de crime o abandono da religião católica, o período de liberdade de consciência se fechou juridicamente por toda a Primeira República, até 1795, porque a Constituição de 3 de maio de 1791 voltou ao princípio da “liberdade de todos os ritos e de todas as religiões no país polaco”. No entanto, manteve o caráter da religião católica como religião dominante, cujo abandono era castigado.
O dilema da liberdade de consciência se colocou de maneira totalmente diferente ante o Estado polaco ressuscitado em 1918. O princípio estava já amplamente reconhecido. No entanto, a primeira Constituição do novo Estado não o aplicou plenamente. É verdade que aquela proclamou solenemente a liberdade de consciência e de religião. Os tribunais polacos reconheceram, de acordo com a carta constitucional, “a liberdade de professar princípios excluindo toda a crença religiosa”. Mas a Constituição retrocedeu ante as consequências deste princípio, que proclamava a igualdade de todas as crenças ante a lei, e reconheceu à Igreja católica uma “posição dominante”, que esta conservou até 1939. Não apenas de fato, mas também de direito.
A Constituição da República Popular Polaca criou uma situação jurídica que garantia a liberdade de consciência, proclamando o princípio: “está proibido forçar aos cidadãos a que não participem nas cerimônias religiosas” e assegura a liberdade de consciência aos crentes.
Desta maneira voltou à sagrada tradição polaca. Dizer que a tradição polaca é a fidelidade à Igreja católica, significa deformar a história. Não eram fiéis a ela nem os husitas polacos que combatiam pela independência nacional, nem os calvinistas, nem os “Hermanos Polacos” que no século XVI lutavam pela liberdade de consciência na Polônia. Tampouco o eram fieis os grandes reformadores polacos de fins do século XVIII, impregnados do espírito do Século das Luzes, continuadores das tradições da liberdade de consciência e cuja atitude em relação à Igreja católica era a indiferença, pelo menos. Entre eles havia sacerdotes – como Stanislaw Stasziv, grande escritor e homem político inimigo do feudalismo – que orientavam os hábitos. Os que querem submeter o Estado à Igreja católica – e isto é o que exige em essência o chefe e primado desta última – esquecem a tradição polaca que o grande rei definiu tão bem ao dizer: “Eu não sou rei de consciências humanas”. E esta tradição é a que a Polônia retomou em nossos dias.
Tradução Virna Plastino