Kurt Gödel ou quando a cosmologia revela a natureza do tempo
Em 1930 o matemático Kurt Gödel (1906-1978) termina a demonstração do que ficou conhecido como Teorema da Incompletude da Aritmética e produz uma profunda revolução na lógica desde os tempos de Aristóteles.
Em 1949 Gödel demonstra que, no interior da teoria da Relatividade Geral, é possível a existência de caminhos nos quais, um viajante que por eles passa, embora a cada momento esteja sempre indo para seu futuro (local), se aproxima inexoravelmente de seu passado.
Esses dois resultados, em áreas aparentemente tão distantes, colocaram Gödel como um dos grandes pensadores do século 20.
O que teria levado Gödel a se afastar de sua matemática e, duas décadas depois de seu famoso teorema, ir tão longe nas consequências da Relatividade Geral, uma teoria geométrica da gravitação proposta por Albert Einstein em 1915?
Uma possível explicação, segundo Cassou-Noguès, estaria relacionado à elaboração de sua interpretação da matemática quando descobre que o tempo é um fator importante da significância de nossas observações no mundo. Assim, argumenta, é o tempo que permite duas proposições contraditórias serem verdadeiras (Gödel, escritos pessoais) como
¨p¨ e ¨não-p”.
“Está chovendo” e “o dia está ensolarado” podem ser afirmações ambas verdadeiras se descrevem dias distintos, domingo chuvoso e terça-feira ensolarada, por exemplo.
Os passeios cotidianos com Einstein por mais de uma década (eles moravam em casas próximas e iam e voltavam juntos ao trabalho, a pé, ao mesmo Institute for Advanced Studies, em Princeton) teria sido o estopim natural para que um diálogo sobre lógica se transmutasse em questões do espaço-tempo, de sua geometria. E, em particular, da estrutura formal do tempo.
E, no entanto, a cosmologia que Gödel produz, baseada na Relatividade Geral não agrada certamente a Einstein que pretendia ter a estrutura causal como importante complemento de sua teoria da gravitação.
Não é de admirar que tradicionais aporias lógicas tenham aparecido e sido intensamente discutidas entre os dois.
Entre as notas pessoais de Gödel (não publicadas), Cassou-Noguès encontra propostas extremamente simplistas, para solucionar a contradição inerente aos caminhos que levam ao passado (conhecidas hoje pela sigla inglesa CTC – closed time-like curves). Entre elas, que Gödel descreve em mais de uma oportunidade, uma inesperada, faz referência à limitação do livre-arbítrio.
Quando o viajante volta ao passado e pretende realizar uma ação que sua memória lhe esclarece não foi efetivamente realizada, Gödel sustenta que há uma limitação no livre-arbítrio que impede que essa ação (que ele recorda não aconteceu) não aconteça, contra sua vontade atual (do viajante que retorna).
Em suas notas pessoais (não publicadas) Gödel argumenta da seguinte forma:
« La possibilité d´un voyage dans le temps semble impliquer une absurdité. Par exemple, cela permettrait au voyageur de revenir dans le passé dans des lieux où il a lui-même vécu, Il pourrait alors rencontrer une personne qui serait lui-même quelques années auparavant. Et il pourrairt faire à cette personne quelque chose qu´il sait par sa propre mémoire ne pas lui être arrivé. Ceci, et des contradictions similaires, supposent cependant non seulement la faisabilité en pratique d´un voyage dans le passé (des vitesses très proche de la lumière seraient nécessaires pour cela) mais également certaines décisions de la part du voyageur, à la possibilité desquelles on ne conclut que sur la base de convictions vagues quant au livre arbitre. En fait, les mêmes inconsistances peuvent être derivées de l´hypothèse d´une causalité stricte et du livre arbitre au sens dejà indiqué. Ainsi, un tel univers n´est pas plus absurde que n´importe quel univers supposé soumis à une causalité stricte. »
Curiosamente, uma solução para essas dificuldades formais que um caminho CTC produz, poderia ser extraída diretamente do pensamento do matemático Albert Lautmann (nasce em 1908 e morre fuzilado pelos nazistas em 1944) em seus comentários sobre a dualidade local-global. Isso não aconteceu, principalmente pela atitude de Lautmann que se colocara contrário à posição formal dos lógicos e, em uma comunicação no Congresso Internacional de Filosofia Científica (Paris, 1935), afirma sua independência dos lógicos que dominavam então o discurso científico e faziam de seu programa axiomático uma regra a ser seguida por todo comentário. Diz ele:
Les logiciens de l´ Ècole de Vienne prétendent que l´étude formelle du langage scientifique doit être le seul objet de la philosophie des sciences. C´est là une thèse difficile à admettre pour ceux des philosophes qui considèrent comme leur tâche essentielle d´établir une théorie cohérente des rapports de la logique et du réel.
É essa tentativa de construir uma intima compreensão entre as matemáticas e o real da física que vai conduzir Lautmann a produzir uma solução bastante satisfatória das dificuldades que Gödel explorara em sua solução cosmológica contendo CTC.
De um modo simples, podemos sintetizar o argumento de Lautmann através da afirmação de que, contrariamente ao que um reducionismo atômico dos físicos (complementar ao procedimento apriorístico de axiomatizar, consagrado pelos lógicos) que organizara a totalidade do mundo a partir de elementos fundamentais (os átomos) ele sustenta a tese dual de que processos locais dependem de processos globais, trazendo a cosmologia para o centro da questão.
É Lautmann quem afirma :
…On cherche à établir une liaison entre la structure du tout et les propriétés des parties par quoi se manifeste dans les parties l´influence organisatrice du tout auquel elles appartiennent.
Ou seja, as propriedades locais não são independentes das propriedades globais e vice-versa. Desse modo, as contradições lógicas só aparecem ao acreditarmos na independência completa entre processos descritos por equações (diferenciais) que tratam de configuração local e a característica global determinada pela topologia.
As propriedades do mundo microscópico estão em intima conexão com as características topológicas do universo: o cosmos é solidário.
Com efeito, consideremos uma propriedade típica de uma partícula como o nêutron – sua massa, por exemplo. Não temos nenhuma teoria satisfatória que consiga, a partir de considerações mais fundamentais, obter o valor da massa do nêutron. No entanto, podemos construir diversos mecanismos segundo o qual uma partícula sem massa adquire massa. Há mais de um século, o cientista Ernst Mach propôs considerar a massa das partículas como um processo de interação global. Einstein se baseou nessa proposta para intuir sua teoria da gravitação, a relatividade geral.
Na última década os físicos de partículas elementares abandonaram essa ideia e produziram um mecanismo segundo o qual a massa seria consequência da interação entre a partícula sem massa e um determinado campo escalar que os físicos passaram a chamar campo de Higgs, popularmente bóson de Higgs. A detecção de uma partícula com as características desse bóson-H consubstanciou no pensamento dos físicos que esse mecanismo é o verdadeiro, e a ideia original de Mach foi completamente desconsiderada. O atomismo sobreviveu.
Essa situação se alterou profundamente quando, recentemente, a origem da massa de todos os corpos foi obtida a partir da proposta original de Mach, isto é, da dependência de uma propriedade local a uma propriedade global. Ou seja, Mach tinha razão ao relacionar a massa dos corpos às propriedades globais do universo.
A argumentação de coerência completa, apresentada por Lautmann, mostra que o compromisso entre uma característica local de um corpo de qualquer natureza e propriedades do todo onde esse corpo está mergulhado dissolve as dificuldades de CTC como procurava Gödel. A eliminação da aparente contradição que se associa aos caminhos CTC é consequência da solidariedade cósmica. Embora diferentes representações dos fenômenos seja possível, os acontecimentos em cada lugar do espaço-tempo têm caráter único. A descrição do mundo deve considerar essa propriedade como definitiva.
Se Gödel usasse sua CTC para ouvir o discurso de Lautmann, 13 anos antes de seu teorema, poderia se abster de tratar as dificuldades causais de seu cenário cosmológico como associadas às limitações do livre-arbítrio.
Referências
- Pierre Cassou-Noguès in Les démons de Gödel (Ed du Seuil,2007). As citações de Gödel são extraídas de suas notas pessoais como descritas nesse livro.
- Albert Lautmann in Les mathématiques, les idées et le réel physique. J. Vrin (2006).