Como nascem as estrelas?
No céu escuro, sem brilho da Lua em fase nova, a garotinha apontou o dedo indicador para o meteoro que riscou o veludo negro incrustrado de diamantes e perguntou com voz fininha:
__ Mamãe, como nasce uma estrela?
A mãe passou as mãos pelos cabelos lisos, cortados em forma de meia-cuia da garotinha, como se quisesse protegê-la do grande desconhecido. Então começou a explicar que um ajuntamento de poeira no céu, como grãos finos de areia soprados pelos ventos fortes do deserto, pode formar uma esfera enorme, maior que a menininha pudesse imaginar e, com um pouco de gás (então ela soprou no ouvido da garotinha) e disse:
Gás, como esse ventinho que a mamãe soprou no seu ouvido, e poeira, entendeu? Podem dar origem a uma estrela como o Sol.
__ E as outras estrelas, mamãe, como elas nascem? __ continuou a vozinha melodiosa como o som de clarinete.
O pai se aproximou das duas. Abraçou a mulher e colou o ouvido ao corpo dela que vibrou como o interior de uma caverna quando ela disse:
_ As estrelas bem velhas, as primeiras a despontar no universo, como os pirilampos que acendem suas luzes esverdeadas no meio da noite, eram puro gás, filhinha. Um gás que os cientistas chamam de hidrogênio. É o mais simples e abundantes de todos os gases. Quando você crescer, vai descobrir tudo isso.
O pai, com os olhos fechados, o corpo da mulher aquecendo seu peito sob a noite, e a voz da garotinha que agora participava de um dueto de clarinetes, a segunda voz ligeiramente mais grave, observou o grande vazio. Não o vazio no sentido do nada, mas o quase vazio da matéria convencional, que forma coisas como o corpo dele, da mulher e da garotinha, fracamente iluminados pela luz de estrelas mais brilhantes: Sirius do Cão Maior, a mais intensa do céu, Procyon, do Cão menor, Rigel e Betelgeuse, nas extremidades opostas da grande constelação do Órion, conhecida pela presença das “Três Marias”. Capella, do Cocheiro, bem baixa ao Norte, e Aldebarã, o “Olho do Touro”, um farol vermelho como ferro incandescente, escalando o céu do Leste, o que as estrelas fazem desde que a Terra se formou, ainda que tenham mudado ligeiramente de posição. Então a mãe relatou à garotinha, com o silêncio cúmplice do pai, que embora as estrelas pareçam fixas contra o fundo do céu, elas se movimentam como formigas que recolhem alimentos para o inverno. A grande distância em que se encontram é que parece fazer delas pontos luminosos fixos, mas essa é apenas uma limitação do olhar humano. A mãe disse ainda que uma ou outra estrela apagou sua luz avermelhada, como a exibida por Aldebarã, mas outras acenderam seu fogo azul-esbranquiçado ao longo de um período de tempo que a garotinha não poderia imaginar.
De onde estavam, às profundezas do céu, havia, e o pai sabia disso, uma presença desconhecida, a que a mãe da garotinha não se referiu. Um dia ela saberia que essa presença é conhecida entre os cientistas como matéria e energia escura. E nada daquilo é como a matéria que forma o campo em que estavam: os corpos dele, da mulher e da garotinha com voz de clarinete. Essa matéria convencional, familiar, pode-se dizer com alguma concessão, é menos de 4% de toda a matéria que se detecta no Universo.
Enquanto seu olhar vagava pelo céu, em algum lugar da memória, uma memória do corpo, não uma lembrança de uma cena remota, teve a sensação de observar uma luz que não era de nenhuma das estrelas. Não era um meteoro que cortou a pele escura da noite. A luz se intensificou como ela nunca havia observado, ainda que de maneira suave, um flash desacelerado de luz, e ele sentiu a energia desse processo atravessar o campo em que estavam ele, a mulher e a garotinha com voz de clarinete que o chamava de “papai”.
A vozinha de clarinete continuou:
__ Mas uma dia as estrelas vão desaparecer, mamãe. O céu ficará vazio?
O homem percebeu o corpo da mulher vacilar, como se a morte térmica do Universo se revelasse aos olhos dela, incapazes de perceber o que estava acontecendo. As estrelas se apagando, uma a uma, como fogos distantes que consumiram seus troncos de lenho seco, forrando o espaço com a poeira fina das cinzas.
Mas a mulher foi em frente:
__ Não se preocupe, filinha. Você é jovem demais para compreender essa história tão antiga. Antes disso muita coisa irá acontecer. Você mesmo terá uma filha, ou vários filhos e eles farão a você perguntas como as que você está fazendo. Talvez você venha a ser avó e poderá contar aos seus netos histórias como a que está ouvindo agora. Muitas crianças fazem perguntas como a sua e muitas outras continuarão a fazer isso. Talvez até o dia em que o céu fique tão escuro como o carvão. Ou, talvez, o futuro distante seja outro e o céu permaneça como um campo repleto de estrelas. Talvez o universo seja eterno, nunca tenha um fim, mas isso a mamãe também não consegue compreender.
O corpo da garotinha vibrou como se tivesse sido atravessado por uma lufada de ar frio. Mas a noite ainda estava serena, apesar de nuvens mais escuras, baixas e velozes no horizonte. Uma corrida de nuvens, tentando ocupar o melhor espaço do céu. Nuvens de altitude, tocadas por ventos atmosféricos. No campo onde estavam não havia nenhum sopro, nenhuma brisa. O ar estava parado, como uma árvore à beira do caminho. Do silêncio da noite emergiu um pio de ave noturna, talvez em busca de companhia. No ponto em que estavam só a música do clarinete era ouvida, intercalada pelo som tranquilizador da voz de uma mulher jovem.
Então, a vozinha de clarinete fez um intervalo de silêncio. Certamente sua cabecinha coberta por cabelos castanhos e lisos, como os de uma indiazinha do Xingu, processava em alta velocidade enquanto seus olhinhos acompanhavam a fulguração silenciosa das estrelas. Na linha oposta do horizonte, distante de onde estavam, estrelas pareciam deslocar-se de como um OVNI, um objeto voador não identificado, na realidade apenas um efeito de perturbação da atmosfera desviando a luz das estrelas, fazendo com que tomassem a tonalidades de pirilampos furta-cores: verde, azul, amarelo e vermelho.
Talvez nenhuma criatura inteligente viaje entre as estrelas distribuídas ao longo da noite, pensou o pai observando os pirilampos furta-cores, num silencioso diálogo anterior. Talvez sejamos a expressão de uma infinita orfandade cósmica. Ou talvez não seja assim e, das profundezas do espaço e do tempo, os dois lados da moeda de espaço-tempo, uma dia uma mensagem possa chegar com a pergunta de um carteira que bate à porta:
__Alguém em casa para receber a correspondência?
Até agora enviamos mensagens na direção que supomos haver alguém, sem qualquer ideia de quem possa ser: gordo, magro, simpático ou, de alguma maneira, repulsivo e amedrontador. Mas, de tudo que enviamos até agora, só tivemos como resposta um silêncio profundo.
Um segundo meteoro riscou o céu, com o sussurro das asas de um morcego. A vozinha de clarinete despertou da concentração em que esteve confinada num pequeno intervalo de silêncio e voltou a questionar:
__E as estrelas cadentes, mamãe. Que tamanho elas tem? É maior que aquela estrela? __ e apontou o dedinho na direção de Fomalhaut, do Peixe Austral, a mais brilhante dessa constelação, baixa no horizonte Sul, flutuando como um balão no oceano cósmico.
A jovem mulher disse que não. Que uma estrela cadente tem quase sempre o porte entre um grão de arroz, milho, ou feijão. Ela poderia escolher o tamanho que desejasse e talvez estivesse correta. Embora, eventualmente, uma estrela cadente possa ser ligeiramente maior, como um seixo rolado, e assoviar como um velho solitário sob a noite, enquanto exibe o curto brilho de sua rota atmosférica.
A garotinha se surpreendeu, mas não emitiu qualquer som. Nem se moveu. Inspirou uma golfada de ar que agora estava mais frio, como se precisasse abastecer seus pulmões para processar o que observava sob o capote escuro da noite. Então a voz da jovem mulher disse que deveriam se recolher. A temperatura começava a cair ligeiramente e uma brisa chegara sugerindo que talvez não fosse a única que se deslocavam à frente das nuvens que voavam como garças noturnas. Então, a noite ficaria mais fria e o calor do corpo da garotinha, do pai e da mãe, condensaria umidade e, mesmo que a garotinha estivesse protegida por um impermeável, essas mudanças poderiam fazê-la adoecer.
O homem que a garotinha chamava de “papai” concordou com a mulher também sem emitir outro som além de algo parecido a um “hum-hum”, entendido como a confirmação de que deveriam se recolher. Abraçou carinhosamente a mulher com uma das mãos. Com a outra, acariciou os cabelos lisos da garotinha, cortados na forma de meia-cuia de uma indiazinha do Xingu. E ela retribuiu o afeto como um gato que oferece o corpo a uma carícia.