A lição de Barbara Cassin sobre a doxografia
Introdução
Barbara Cassin, em sua obra Jacques, o sofista: Lacan, logos e psicanálise escreve um capítulo em que trata do problema da doxografia grega. Este tema, por si só, merece a atenção de todo e qualquer estudante de filosofia, posto que a maior parte do pensamento dos primeiros filósofos só se conservou por meio do trabalho doxográfico. Entretanto, o título faz despertar um interesse talvez ainda maior, posto que a autora faz um chamamento incomum ao leitor: minoremos a verdade como ela merece.
A grande helenista, filóloga, tradutora e especialista na filosofia sofística grega e Jacques Lacan, o psicanalista, tiveram, durante alguns meses, encontros no consultório deste último para tratar sobre o tema da doxografia. Durante alguns meses eles leram textos gregos e, muito mais tarde, a experiência dessas descobertas (mútuas) resultou na obra em questão e na reflexão da proximidade entre o pensar sofístico e o pensar psicanalítico. Para a autora, a psicanálise, em especial a lacaniana, retoma uma série de posições sofísticas, notadamente a problematização sobre o ser, a linguagem e o sentido.
2 “Minoremos a verdade como ela merece”
A psicanálise faz uma inversão fundamental na linguagem, dado que esta não diz o ser (como pretende a tradição parmenídea), mas o próprio ser é que aparece como um efeito do dizer. Diz Cassin: “é preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser” (2017, p. 66). Nesse sentido, o fato não é um fato puro ou autêntico, mas todo fato é fato de dito, efeito do dito, criado a partir do que se diz. Em outras palavras, como diz Lacan, não existiria realidade pré-discursiva, mas realidade que se funda e se efetiva através do discurso (1985, p. 45). É por isso que o psicanalista deve sobretudo ouvir, para conseguir ver a realidade que é construída quando o paciente fala. Ou, dito de outro modo, todo falante é um demiurgo que no ato da fala constrói mundos.
Todo o embate de Aristóteles com os sofistas reside no fato destes últimos pensarem para além do compromisso com a univocidade. Para o estagirita, falar é sempre dizer algo, ou seja, significar algo, significar uma coisa que possui um sentido único. Na Metafísica, Aristóteles enuncia o princípio de não contradição como o mais seguro dos princípios, aquele sobre o qual é impossível errar (2002, IV, 3, 1005 b 10-20). Esta regra fundamental do logos não pode ser uma hipótese, mas um princípio axiomático e inviolável que garante ao falante que nada seja e não seja ao mesmo tempo. Sua obra Refutações Sofísticas é um alerta contra as homonías e anfibologias, recusando toda e qualquer ambiguidade da linguagem.
O sofista, assim como o psicanalista, ao invés de “serenar na manjedoura da metafísica”, como diz Lacan (1985, p. 82), é aquele que escapa às exigências do logos inequívoco. Enquanto Aristóteles se voltará para a analítica das formas da linguagem e os rigores da demonstração (apodeixis) válida, os sofistas farão aparecer em suas performances (epideixis) a ideia de que para cada discurso há um dissoi logoi, um discurso duplo, demolindo assim toda pretensão de verdade. Cassin ensina que a apodeixis é a arte de mostrar a partir do que é mostrado, enquanto que epideixis é a arte de mostrar mais, de colocar algo a mais diante dos olhos do público (2017, p. 85). A palavra do sofista é uma palavra que se liberta da identidade. É uma palavra que convida o ouvinte a poder ver mais, como se toda versão realidade fosse sempre penúltima, como diz Borges.
Daí o chamamento ou o aconselhamento para minorar a verdade como ela merece. O estudo da filosofia sofista (bem como da psicanálise) imporia ao leitor a ideia de minorar a verdade, mas mais do que isso, a ideia de a própria verdade merece ser minorada. O pensamento sofista é aquele que vai estar na contramão da tradição platônico-aristotélica, vai estar exatamente na contramão dessa espécie de culto que se faz ao conceito de verdade, como se esse conceito fosse por si mesmo um conceito que imediatamente mereceria toda a adesão, um conceito óbvio, um conceito sem o qual não se pode pensar ou viver, logo um conceito que deve ser naturalmente buscado em cada obra ou em cada teoria.
O problema da doxografia é um problema pontual e relevante para quem começa a estudar filosofia e, sobretudo, para quem se debruça sobre a filosofia antiga, porque é através dela que se pode reconstruir e, por conseguinte, conhecer e estudar muito do que se produziu durante o período grego. É através dela que se estabeleceram a documentação das escolas, dos autores, suas obras e mesmo suas biografias. Barbara Cassin traz essa ideia um pouco atordoante de que também em relação à doxografia a verdade merece ser minorada, ou seja, o estudante de filosofia antiga ao olhar para a verdade ou para a pretensão de verdade dos textos, ao invés de se ajoelhar diante dela, ao invés de se tornar servo de sua pretensão e partir para a adesão instantânea a esse conceito, deve, por obrigação, minorar o seu lugar ou o seu valor. E qual a razão disso?
3 Os doxógrafos
Como é sabido por todos, os autores gregos ou a grande maioria dos autores gregos produziram textos que não chegaram até nós. No caso dos sofistas, apenas dois pequenos textos de Górgias sobreviveram ao tempo: o Elogio de Helena e a Defesa de Palamedes, sendo o restante da produção sofística composta por poucos fragmentos, assim como também ocorre com os textos originais dos filósofos pré-socráticos, cujos escassos fragmentos compõem a produção textual originária da filosofia dos primeiros séculos. Mesmo de filósofos posteriores, como Epicuro, por exemplo, somente três cartas foram conservadas. Em realidade, a exceção antiga é Platão e Aristóteles, que embora tenham tido muitas de suas obras perdidas, deles se preservou expressivo material, cujas descobertas foram feitas ao longo dos séculos, e assim, sendo sucessivamente enriquecido. É verdade também que há uma grande controvérsia a respeito da autenticidade de algumas dessas obras, havendo significativas divergências entre estudiosos e historiadores. Platão, para ser mais preciso, teria apenas nove diálogos cuja autoria é aceita de forma incondicional, estando as dezenas de obras conhecidas mergulhadas em um mar de controvérsias onde se agitam especialistas, filólogos e helenistas.
Ou seja, os textos da filosofia grega não puderam ser conservados em sua integralidade ou em sua originalidade, mesmo quando se trata dos autores cujo conjunto de obras melhor se preservou. Desse modo, como é que se conhece o pensamento dos autores antigos? Como se pode ter acesso ao pensamento dos autores que, embora tenham sido em sua época extremamente produtivos – Diógenes Laércio diz que Epicuro, por exemplo, teria escrito cerca de 300 volumes (1987, p. 289), não podem hoje ser lidos em razão do desaparecimento de sua construção teórica?
É aqui que a doxografia se revela extremamente importante, porque os doxógrafos são aqueles que vão testemunhar aquilo que os outros disseram, aqueles que vão transmitir esse precioso testemunho. A palavra doxografia, isto é, a grafia das doxai literalmente quer dizer a escrita das opiniões ou compilação de opiniões ou teoria de outros autores e o doxógrafo é aquele que transcreve ou escreve sobre as opiniões e teorias dos filósofos (ALCOFORADO, 1997). Desse modo, a doxografia se refere a tudo que não é uma transmissão direta, mas uma espécie assim de transmissão em pequenos trechos, em pequenos extratos, de obras e de pensamentos que foram completamente perdidos. Esses pequenos extratos, pequenos fragmentos, vão se consagrar como a referência única e autêntica da filosofia dos primeiros tempos, e se consolidará como efetivamente aquilo que esses filósofos pensaram e disseram.
Barbara Cassin ensina que a palavra opinião ou doxa caracteriza-se por uma ambivalência, porque o primeiro sentido de doxa é expectativa, expectação, aquilo pelo que se espera. Nesse primeiro sentido, ao expressar uma opinião, expressa-se o que parece ser, expressa-se o que é esperado; mas em Homero, em Píndaro, a palavra doxa aparece em um sentido inverso: aquilo que é contra todas as expectativas, mas que pode ser imaginado, recebido, acolhido, pensado ou mesmo ensinado (2017, p. 18-19).
Então, quando se fala em opinião, dois sentidos contrários poderão ser sustentados: de um lado, a ideia de aparência enganadora, de falsa aparência, que é, inclusive, como o termo se consagra em Platão. Em Platão, o mundo da doxa é o mundo da opinião não fiável, o mundo do erro, das falsas aparências, das construções não confiáveis; de outro lado, a doxa vai ter um sentido de uma bela aparência, da manifestação de uma boa reputação. Inclusive, diz Barbara Cassin, doxa é um termo que serve, na tradução bíblica, para designar a glória de Deus (2017, p. 19). Nesse sentido, a doxa é uma opinião verdadeira, uma opinião estabelecida por quem tem uma boa opinião, uma opinião de uma pessoa decente, uma opinião que convém.
Desse modo, pode-se dizer que esse sentido mais usual da doxa tal como Platão vai sustentar, como opinião falsa ou opinião errônea ou mesmo palavra sujeita ao erro, vai se encaminhar para um lugar consagrado na história da filosofia, opondo-se à ideia de verdade (aletheia), mas quando se trata do trabalho da doxografia, o prefixo doxa vai trazer o segundo sentido acima descrito, isto é, vai se encaminhar para esse testemunho confiável e, por extensão, legítimo. Paradoxalmente, portanto, quando se analisa a etimologia da palavra doxografia, não deve relacionar essa doxa com uma opinião falsa, mas ao contrário, com uma opinião decente, com uma opinião na qual se pode confiar. Será a doxografia, isto é, essa opinião na qual se pode confiar, a responsável por trazer e conservar boa parte da filosofia grega, a quase totalidade da filosofia pré-socrática, sofística e das escolas helenistas. Ou seja, estando a obra original desaparecida, preservaram-se trechos, extratos, fragmentos dessas obras a partir do testemunho doxográfico.
Barbara Cassin vai então explorar essa ambiguidade que está na própria origem da palavra doxa no que se refere à natureza da própria doxografia, porque por um lado, a doxografia vai se constituir como algo de primeiríssima importância, uma vez que é a partir dela que se pode conhecer as ideias, os conceitos presentes em textos dos quais não se tem o original, além de trechos extraídos desses mesmos textos, portanto, tornando-se o único caminho possível para seu estudo e exploração, mas por outro lado é uma coisa da qual não se pode ter muita confiança, dado que seu conteúdo não provém de uma transmissão direta, mas sim de uma transmissão que passa por um outro – o doxógrafo.
Daí a autora dizer que em se tratando de doxografia é impossível fazer a separação entre fato e ficção (2017, 22). Vulgarmente se acredita que o testemunho é legítimo, que corresponde ao que é ou ao que efetivamente foi, quando, em realidade, trata-se de uma questão de confiança, de consentir com um testemunho ou com uma interpretação. Esse ato de fé disfarça o caráter ficcional da palavra doxográfica, transformando-o em palavra verdadeira. Mas, como diz Cassin, “doxografia é uma questão de sentido muito mais que uma questão de verdade. E o sentido não cessa de oscilar entre sentido de menos e sentido de mais” (2017, p. 22).
Além disso, o material doxográfico é bastante heterogêneo, compreendendo pedaços de livros, fragmentos, citações, trechos escolhidos, comentários, comentários críticos, comparações, dados biográficos, anedotas. É difícil mesmo precisar se determinado trecho era crítico, irônico ou hipotético. Em que contexto ele se encontrava? Qual a intenção do autor ao escrevê-lo? São perguntas irrespondíveis, de modo que diante do próprio material doxográfico não é possível estabelecer um sentido único e evidente do que aquele testemunho pode trazer.
É verdade que os doxógrafos assim reconhecidos têm como intenção recolher, organizar, transmitir as informações relativas à filosofia, mas como o leitor pode fazer a distinção da doxografia como fonte, como catálogo, como uma informação confiável e da doxografia como deformação, como intenção de deformação, intenção interpretativa? Isso é uma ambiguidade que não se não tem condições jamais de sanar.
Dessa forma, resta ao estudante de filosofia confiar na doxografia, mesmo porque é tudo o que há relativamente a esses primeiros tempos – não há como passar sem ela. Mesmo porque em realidade não há quem tenha a capacidade de discernir entre fatos legítimos, isto é, entre o que foi efetivamente dito ou escrito pelo filósofo e as construções artificiosas, ficcionais por ventura feitas pelos doxógrafos. A doxografia vai se caracterizar por ser uma interpretação ou mesmo uma interpretação de uma interpretação, produção de um sentido e é isso que faz o seu oscilar, o oscilar entre o que se pode confiar e o que não se pode confiar, entre ser uma opinião justa e confiável e uma opinião na qual não se pode confiar.
Atualmente quando se fala de doxografia o nome de Hermann Diels é a grande e inequívoca referência. Sua obra Os doxógrafos gregos publicado em Berlim em 1879 versa sobre os mais diversos temas e autores. O trabalho do doxógrafo procede por comparação, onde se cotejam vários textos e de onde vão se extraindo semelhanças, de onde algumas informações vão sobrevivendo (data em que foi escrito, por quem foi citado) e, nessa tapeçaria que reúne fios de diversas procedências, o que se repete se consolida como material autêntico. Ou seja, não é a preservação de um manuscrito intacto, inequívoco, original, mas a construção de um texto ou de um pequeno texto por meio de uma diversidade de outros testemunhos mais antigos.
Inclusive, curiosamente, é bastante comum a referência a autores precedida pelo prefixo pseudo, falso. Há um Pseudo-Plutarco, um Pseudo-Calístenes, um Pseudo-Dionísio, etc. Isto é, há testemunhos que não se sabe quem escreveu, que faz lembrar um autor conhecido, mas cuja autenticidade não se sustenta. Há ainda casos como o de Antifonte, por exemplo. A historiografia registra quatro indivíduos que teriam vivido na Grécia do século V a.C. chamados Antifonte: Antifonte de Ramnunte ou Antifonte ramnúsio, professor de retórica; Antifonte, o poeta; Antifonte, o adivinho e Antifonte, o intérprete de sonhos. Tratar-se-ia de um autor de múltiplos talentos? Se sim, como justificar as diacronias, as diferentes versões para sua morte? Há editores que distinguem pelo menos dois Antifontes e outros que reúnem todo o material doxográfico sob a rubrica de um único Antifonte. Tal dificuldade reafirma a ideia de que os textos sobreviventes de um autor não provém de um núcleo acabado de coerência, mas de uma experiência incompleta (RIBEIRO in ANTIFONTE, 2008, p. 12).
A própria Barbara Cassin vai traduzir o tratado anônimo De Melisso Xenophane Gorgia, obra essa que embora incluída na tradição aristotélica, escapou e ainda escapa à identificação. “O objeto é não identificado porque não se sabe nem de quem ele fala, nem quem fala, nem, portanto, qual é finalmente o seu sentido e o seu interesse” (2015, p. 28). Assim, o tratado anônimo mostra-se indiferentes às pretensões de determinação, se furtando à identidade e reafirmando a natureza múltipla da interpretação, cada uma delas nem mais nem menos verdadeira que a outra.
Cassin (2017, p. 28) ressalta que o texto de Diels é estruturado em duas colunas paralelas e que acima de cada coluna há um nome de referência, por exemplo, Plutarco, Estobeu. Essas duas colunas são reunidas no alto por uma chave que fica abaixo de um nome: Aetii Placita (as compilações de Aécio). Esta disposição permite verificar as semelhanças entre os dois primeiros autores citados reconstituindo assim o pretenso texto fonte, o de Aécio, que teria sido lido por eles. Ocorre que Aécio ninguém sabe quem é, seu texto foi perdido e o seu nome só aparece citado uma única vez por Teodoreto. Todavia, é a fonte de várias textos, incluindo a maioria dos fragmentos dos filósofos pré-socráticos. Tudo isso faz com que a questão da originalidade da fonte, da confiabilidade do texto seja extremamente problemática. Ou seja, a questão das fontes envolve seguidas perdas, chegando mesmo a uma fronteira tênue entre adivinhação e documentação, entre sonho e rigor erudito.
De forma divertida Cassin observa aqui que a palavra grega aitia, causa em português, é o nome dado a essa fonte primeira do próprio Diels. Lembrando Charles Nodier, ela pergunta se é possível acreditar em um escritor que se chama Aécio (causa) que se torna causa dos primeiros escritos gregos, da mesma forma que não se pode acreditar em um escritor que se chama Tácito e que se cala.
É desnecessário dizer que as regras hoje existentes consolidadas para as citações (diretas ou indiretas), claramente não faziam parte do mundo grego. As citações, que por óbvio não aparecem entre aspas, são antes, apropriações que passam por modificações, recortes, ajustes. No mundo grego, quando uma obra chegava a um leitor, este podia produzir a interpolação, isto é, alterar o texto original acrescentando ou suprimindo frases, sem que fosse alterado a própria autoria do texto. Se sucessivos leitores assim agissem, pode-se imaginar que o texto submetido a diversas leituras resultaria em algo muito diferente do original. Como naquela brincadeira de infância – telefone sem fio, o resultado final do que se ouve em muito difere daquilo que o primeiro disse.
Aliás, os livros gregos originalmente eram confeccionados de papiro ou pergaminho. O pergaminho era feito de pele de animal tratada por agentes químicos e permitia sua reutilização, fazendo com que um texto anteriormente escrito fosse “apagado” para servir a outro, mais recente, produzindo assim uma espécie de “mille plateaux” de ideias que iam ali se colocando e se sobrepondo umas às outras. Cassin diz que toda literatura grega é palimpséstica (2017, p. 32), isto é, um texto de textos, um texto que se escreve a partir de outros textos. Isso não apenas no que diz respeito ao material produzido, mas à natureza mesmo do produto literário. Romilly diz que a tragédia grega, gênero literário nascido no século VI a.C., aborda os mesmos mitos que a epopéia. Eram lendas já aprendidas anteriormente, o que fazia com que o público das representações já conhecesse seus elementos. Assim, prossegue a autora, a originalidade de uma peça não estava nos acontecimentos e ações que se sucediam, mas na interpretação pessoal que atualizava emoções explicações ou sentidos até então não veiculados (1999, p. 22-22).
Diels se tornou a maior referência doxografia e, a partir dele, estabeleceu-se a confiabilidade do conteúdo de seus testemunhos. “O edifício de Diels não é mais posto em questão. Sua força incontestável, inevitável, tem a ver com o fato de que ele permite enfim, e apenas ele, se apropriar com um zelo antiquário do corpus abundante dos textos a fim de encontrar aí uma identidade: a das doutrinas originais” (2015, p. 117). O critério de excelência é o próprio julgamento de Diels. Cassin diz que a doxografia constituída por Diels aceita e respeitada por todos no Ocidente é uma fantasia, é uma ficção (2017, p. 33). É por meio desse caminho ficcional que foi possível se apropriar das primeiras idéias, das primeiras falas, dos primeiros escritos. Ocorre que toma-se Diels como uma referência inconteste sem que se quer se problematize como essa doxografia foi estabelecida.
Vai fazer parte da tradição doxográfica algumas anedotas contadas por Diógenes Laércio que se repetem para diferentes personagens: os mesmos diálogos ou circunstâncias são contados alterando-se apenas o protagonista, de modo a não se poder saber, de fato, com quem a história se passou. Cassin diria então: essa anedota deve ser tratada como uma ficção, como uma interpretação. Ao invés de se olhar para essa anedota buscando saber se efetivamente aquilo aconteceu daquela maneira, com aquele filósofo, naquelas condições, deve-se procurar entender a narrativa como uma construção de sentido, uma compreensão de que o filósofo teria dito ou de como teria vivido. Diz Cassin: “e não há, sem dúvida, uma única linha em toda a doxografia que não deva ser lida segundo essa ótica” (2017, p. 36). Ou seja, nenhum texto tem seu sentido original disponível, bem como não se pode contar com um fiador responsável e legítimo que avalize tudo isso que foi consignado para a posteridade. Toda a filiação tá perdida; toda autenticidade é impossível de ser estabelecida; ninguém sustenta a verdade.
4 Toda fixão é fictícia
E é nesse ponto que a Barbara Cassin vai aproximar a prática doxográfica dos ensinamentos da psicanálise, utilizando um chiste lacaniano. A doxografia é uma ficção ao mesmo tempo que uma fixão, isto é, ao mesmo tempo que é ficcional ou fictício, fixa textos e ideias, tornando-os referências definitivas da posteridade. Retoma-se, pois, o caráter ambíguo de doxa presente na palavra doxografia: fixante e ficcional, tudo o que ela fixa é bem fixado, mas, como diria Lacan, “não sem recorrer a equívoco” (2003, p. 484). Toda fixão, ou seja tudo o que se fixa, nunca deixa de ser algo fictício, uma vez que em cada coisa reside uma ambiguidade intratável. Todo fato é uma fabricação, todo fato é ficcional, é uma interpretação, é a produção de um efeito (CASSIN, 2017, p. 43).
Dizer que a doxografia é ficcional não é dizer que ela é falsa ou um erro. Untersteiner ao tratar da ambiguidade do logos, ensina que o logos como engano (apate) não é logos como falsidade (pseudos). Este último refere-se ao aspecto objetivo do falso, que independe do sujeito, compreendendo, portanto, um valor ético, enquanto que o primeiro é uma ação criativa do intelecto, uma ação intencional que transforma algo em outra coisa (2012, p. 173). Ora, o engano é sinal de superioridade que se manifesta por meio da persuasão e aquele que é persuadido se transporta para um mundo que se consuma, isto é, para um mundo ficcional que fixa uma realidade.
O engano (apate) não é uma fraude, uma mentira e, por isso, não deve ser condenado, mas uma prática de fazer ver mais, uma inventividade performática, uma astúcia. No conceito de engano há algo de misterioso, algo a ser revelado, algo que excede o simplismo da demonstração. Os sentidos definitivos aos quais o homem se afeiçoa (e que muitas vezes o sufoca) são construções ficcionais, são fixões que vão parametrizar seu agir e seu pensar, mas que não se ancoram em nenhum substrato, a não ser em uma eleição interpretativa. É o que Diels faz, é o que o homem faz a si mesmo. O tratamento que os sofistas dão à palavra impõe que, ao falar, possa se colher os vários logoi ali imanentes, pois imensa é a potência do logos.
Referências
ALCOFORADO, Paulo. Doxógrafos gregos. Kléos. N. 1. p. 277-291, 1997. In: < http://www.pragma.ifcs.ufrj.br/kleos/K1/scan/PauloAlcoforado.pdf>. Acesso em: 10 set. 2020.
ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Loyola, 2008.
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.
CASSIN, Barbara. Jacques, o sofista: Lacan, logos e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
______. Se Parmênides: o tratado anônimo De Melisso, Xenophane, Gorgia. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
______. Mais, ainda. O seminário 20. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
LAÊRTIOS, Diôgenes. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. 2. ed. Brasília: UNB, 1987.
ROMILLY. Jacqueline. A tragédia grega. Lisboa: Edições 70, 1999.
UNTERSTEINER, Mario. A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica. São Paulo: Paulus, 2012.