Diálogos sobre o começo do mundo – reedição
Em 24 de agosto de 2002, durante um workshop no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), reuniram-se alguns cosmólogos para discutirem uma das questões mais atraentes da Cosmologia: a origem do universo. O que segue são algumas anotações de uma conversa informal ocorrida naquela noite entre três daqueles participantes, os professores Evgeni, Maurizio e Vitaly (estes nomes não correspondem aos verdadeiros personagens, são nomes ficticios).
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E. Estou convencido de que, desde a belíssima conferência do Roger (Penrose), podemos dizer que a questão da singularidade inicial do universo está completamente resolvida. Não me parece haver a menor dúvida que estes teoremas demonstraram que houve um momento especial, único, em que tudo-que-existe esteve concentrado em uma região mínima, extremal, que poderíamos simplificadamente associar a um verdadeiro ponto geométrico. Ou pelo menos, à idéia que os primeiros matemáticos possuíam de um tal ponto.
M. Bem, eu prefiro considerar a questão ainda aberta e passível de ser examinada sob diferente perspectiva. Eu não me considero tão satisfeito quanto você E por esta demonstração. E posso explicar por que, tanto me apoiando em considerações de caráter técnico, quanto de caráter histórico. Se vocês me permitirem falar um pouco da história das idéias cosmogônicas examinadas ao longo de todas as civilizações, eu penso que poderia mostrar que esta aceitação por parte de E é um pouco precipitada. Eu a respeito enquanto uma opinião “bastante majoritária em nosso meio científico”, mas eu não a consideraria mais do que isso. Uma opinião.
E. Isso é um absurdo! Você também estava lá naquela conferência e viu como ele foi aclamado por todos os presentes. Sua conferência foi considerada brilhante. Talvez o próprio Einstein, se estivesse presente, o teria aplaudido de pé!
M. Não duvido. Eu mesmo o aplaudi e muito. Mas vamos separar as coisas. Nós reconhecemos naquela conferência sua habilidade matemática para demonstrar um teorema. Não há dúvida que das premissas que ele partiu, usando para sua demonstração as equações da Relatividade Geral, segue este resultado que você se refere como “a inevitabilidade de uma singularidade no universo”. Eu não estou pondo isto em discussão. Mas você deve concordar comigo que são dois momentos bem diferentes, a demonstração de um teorema e sua aplicação ao mundo real.
E. Sim, claro. Mas as condições de aplicação destes teoremas de singularidade são tão simples! É claro que elas são preenchidas no universo. Isto é tão óbvio!
M. Para você. Mas não para todos.
E. Ora, vamos lá. Até mesmo um crítico tão do contra como você há de convir que estas condições que constituem as premissas dos teoremas de Roger são aceitáveis! O que você acha, V? Você está tão calado durante todo esse tempo. Não acha que eu estou coberto de razão?
V. Bem, meus amigos, penso que ambos tem uma boa dose de verdade no que dizem. Mas quanto a dar a você E ou a M a razão nesta discussão, é uma decisão que gostaria de tomarmos juntos para chegarmos a um consenso. Afinal, não é uma boa situação que se espalhe a notícia de que sobre um assunto de tamanha importância e tão relevante para a ciência – e, mesmo para além dela –, os cientistas não se ponham de acordo. Vamos usar o mesmo método que desde sempre temos utilizado para tentarmos chegar a uma posição comum.
E. Bem, eu não tenho nada contra.
M. Nem a favor, mas estou disposto a que discutamos abertamente esta questão e examinemos o que dela sairá.
V. Então, vejamos. Comecemos por recordar com muito cuidado e passo a passo o que foi realmente demonstrado por Roger. Na verdade, creio que deveríamos mesmo lembrar como chegamos a esta situação que deu origem a que estes teoremas pudessem ser pensados como tal. Eu vou ser obrigado a falar de coisas bem simples e até mesmo triviais, que todos nós conhecemos de longa data, mas, assim fazendo, creio que nos colocaremos na verdadeira perspectiva que deu lugar ao surgimento dos teoremas. Quando, em 1964, ficamos todos convencidos que a famosa radiação térmica de 2.7 graus Kelvin que preenche todo o universo era a demonstração inequívoca de que o ele havia passado por uma fase extremamente quente e condensada, isto é, que o universo experimentava um processo de expansão, todos concordamos que a geometria do mundo, governada pelas equações da relatividade geral, deveria ser aquela que Friedmann, em 1919, descobriu. A medida, feita pelo Hubble, da velocidade de recesso com que as galáxias estão se afastando umas das outras tem a dimensão de uma quantidade que pode ser associada a um tempo. Em verdade, a um inverso de um tempo. Este número, que está sendo assim medido, tem o valor de uns poucos bilhões de anos. A questão então aparece: o que teria acontecido ali? Por que este número aparece como uma característica especial deste universo? Esta é a situação prática. Aquilo que nos é dito pelos astrônomos. Agora, vamos aos teóricos.
M. E isso não é uma teoria? As observações não nos trazem exatamente isso que você falou? O que elas nos dizem é somente a respeito de algo sobre uma pequena mancha desviada em um aparelho que mede o espectro da luz que nos chega de galáxias distantes.
V. Sim, você tem razão. Mas devemos partir de algum embasamento teórico, não? Então aceitemos que estamos verdadeiramente observando a expansão do universo quando enxergamos nesta decomposição espectral a que você se refere estes desvios do espectro “normal”.
E. Você vê? Assim é o tempo todo. Parece que ele não aceita nenhuma verdade bem estabelecida.
V. Mas eu não estou contra esta atitude! E penso mesmo que ele tem razão até mesmo de duvidar sobre esta estrutura em expansão. Outros cientistas fizeram isso e ainda fazem. Lembram-se do professor Hoyle? E quando seu colaborador indiano, o Narlikar, aqui esteve, na Sexta Escola Brasileira de Cosmologia e Gravitação, ele comentou muito sobre isso. Mas aqui e agora, nossa questão é outra. É por isso que eu não gostaria de me desviar de meu caminho. Pelo menos não agora. Caso contrário, essa nossa discussão não terá fim e, como vocês sabem, amanhã pela manhã bem cedo é minha hora de falar e não posso me estender noite adentro nesta nossa conversa.
M. Está bem. Vamos nos limitar à afirmação de E sobre o começo do mundo.
E. Alto lá! Eu não estava falando de começo do mundo! Tudo que eu falei foi sobre a demonstração de Roger de que existe uma singularidade inicial. São vocês que estão identificando esta singularidade com o início de tudo.
M. Mas você então pode falar do que teria ocorrido ali? Do que teria dado origem a esta singularidade?
V. Espere um pouco. Vamos tentar ordenar nossa discussão. Deixem que eu termine minha preliminar revisão do que está em jogo para depois começarmos a análise de cada um dos dois pontos de vista, está bem?
Com o silêncio que se seguiu, ficou claro que V poderia continuar.
V. Como eu estava dizendo, vamos aos teóricos. (Fez um leve movimento de olhar para M como a pedir-lhe autorização. Este compreendeu a brincadeira e deu um leve sorriso).
Lá atrás, nos primórdios da Cosmologia moderna, a descoberta de que o modelo cosmológico de Friedmann possuía uma singularidade, foi vivenciada como algo muito desagradável. Parecia que a atitude de não aceitar como uma propriedade da natureza a existência de uma singularidade real havia se cristalizado entre os físicos. A origem disso, naqueles tempos, parecia estar associada a uma questão semelhante que acontecera na física das partículas elementares, estáveis, em particular na física do elétron. Ali, também, os cientistas se viram às voltas com uma singularidade ao longo da trajetória do elétron, ao longo daquilo que chamamos de sua linha-de-universo. Mas vamos deixar esta questão para outra hora, senão vamos nos desviar de nossa análise aqui. De qualquer maneira, independentemente do humor dos físicos a este respeito, todos concordavam que a singularidade da geometria do modelo de Friedmann era real. Isto é, não se tratava – como no caso do horizonte dos buracos negros – de uma singularidade fictícia. Assim, a questão apareceu: será que a existência de uma singularidade seria tão somente uma propriedade particular da geometria de Friedmann? Será que este ponto singular, este lugar onde as quantidades físicas relevantes, como a densidade de energia média e a temperatura, assumem valor infinito, seriam propriedades matemáticas? Consequências das hipóteses simplificadoras de alta homogeneidade espacial e isotropia, necessárias para permitirem a solução das complicadas equações de Einstein? Será que outras soluções, outras geometrias menos simétricas, contendo um grau de simplificação menor, exibiriam também esta característica?
Durante algum tempo, fomos obrigados a viver na dúvida, sem sabermos sequer como responder a esta questão, a não ser através do método ineficiente e trabalhoso de tentativas e erros. Até que Roger teve a feliz ideia de procurar responder a esta questão por métodos menos arcaicos, mais funcionais, mais ágeis, usando uma matemática mais sofisticada do que aquela que costumava ser usada pelos relativistas de origem menos formal, menos matemática. Foi então que apareceram estes famosos teoremas de singularidade, de que estamos tratando agora. Até aqui, estamos de acordo?
E. Sim.
M. Não é exatamente como você falou, mas podemos seguir em frente.
V. Pois bem, aceitemos isso. Agora vamos nos ater aos teoremas. Como eles são, para o que nos diz respeito aqui, muito semelhantes, vamos nos concentrar em um deles. Por exemplo, o primeiro que Roger Penrose nos deu. Simplificadamente, ele afirma que pelo menos uma das quatro sentenças referentes a uma geometria arbitrária do espaço-tempo quadridimensional é falsa:
(i) Os observadores fundamentais medem uma variação positiva do volume tridimensional;
(ii) A energia do mundo é positiva. Quando existe pressão negativa entre diferentes partes do fluido cósmico que gera a geometria do mundo ela não pode exceder o valor de menos três vezes a densidade de energia;
(iii) As curvas do tipo tempo podem ser estendidas para o futuro e para o passado indefinidamente;
(iv) Existe uma separação do universo em espaço e tempo.
Eu sei que estou apresentando uma formulação bastante simplificada daquele teorema, mas para nossa discussão aqui isso me parece largamente suficiente. Muito bem, vamos então examinar cada uma destas sentenças e ver se alguma delas pode ser deixada de lado a priori. Se conseguirmos isso, então nada poderá ser dito sobre a singularidade. Caso contrário, devemos repensar esta situação. Creio que a sentença (i) pode ser aceita como representativa de nosso universo. A observação maravilhosa do Hubble garante que vivemos em um universo dinâmico e que o volume espacial varia com o tempo. A sentença seguinte é mais fácil de ser entendida, embora talvez tenhamos alguma dificuldade em aceitá-la pois conhecemos vários modelos de teorias – que os físicos de Altas Energias elaboram – onde esta propriedade não é verdadeira. Embora devemos reconhecer que na maior parte dos casos, em condições “normais” que percebemos no universo e que os astrônomos relatam, essa propriedade é verdadeira. Deixemos em suspenso qualquer decisão definitiva quanto a ela, por enquanto. A condição (iii) é precisamente a que queremos identificar como a caracterização simplista de existência de singularidade. Esta seria caracterizada precisamente pelo aparecimento de um lugar no espaço-tempo para além do qual não poderíamos penetrar: a trajetória de todo observador deveria ser ali inexoravelmente interrompida. A condição (iv) me parece a mais simples e que possivelmente todos concordaríamos em aceitar, não?
E. Sim, certamente eu consideraria que na sequência das sentenças mais simples de serem aceitas, entre estas quatro que você citou, creio que esta é a que viria em primeiro lugar e, positivamente, a que menos problemas nos causará.
M. Pois eu digo que se trata precisamente do contrário!
E. Mas como?
M. Muito simples. Nossa descrição geométrica do mundo, a possibilidade de Einstein poder reduzir todo processo gravitacional, toda força gravitacional a uma simples questão geométrica, a uma mudança particular da geometria do mundo, se deveu aos esforços de dois grandes matemáticos alemães: Gauss e Riemann. Eles mostraram como se deve proceder para estabelecer qualquer tipo de geometria que não seja euclideana. Isto é, que permita a existência de comprimentos nulos entre dois pontos separados no espaço-tempo sem que para isso os dois pontos devam coincidir, ser o mesmo. Pois bem, ao estabelecer as bases que sustentam toda geometria, Gauss mostrou também que a separação do mundo em três dimensões de espaço e uma dimensão de tempo é somente uma particular e conveniente possibilidade de representação do mundo. Daquilo que chamamos um acontecimento ou evento, um sistema de coordenadas capaz de caracterizar todo e qualquer “ponto” quadri-dimensional. Ele mostrou que é sempre possível, usarmos tal representação. Pelo menos, localmente, isso nada mais é do que uma escolha, sem nenhuma consequência sobre nossas observações do mundo, mas somente sobre sua descrição. Isto é, estamos assim no território da representação e como tal, ela pode ser arbitrariamente escolhida. Pois bem, Gauss foi um passo além e mostrou que a extensão desta representação para além de uma região pequena, local (e, claro está, o que estamos chamando “pequena” pode variar de uma dada situação física para outra) não depende mais somente de uma nossa escolha, mas depende das propriedades físicas globais do espaço-tempo. Isto é, depende da topologia do universo.
E. Sim, claro. Todos sabemos disso. Mas seria totalmente absurdo imaginar que a estrutura global do mundo pudesse ser diferente, pudesse admitir a existência de curvas fechadas no espaço-tempo. Pois é isso que você está implicitamente aceitando ao negar aquela condição! Ou seja, você está querendo atribuir à curiosa hipótese de Gödel sobre a estrutura do tempo uma realização, uma realidade que certamente ela não possui!
M. E como podemos saber isso? Como você pode provar a um cético como eu que existe em nosso mundo um tempo global? Com que instrumentos de observação – direta ou indiretamente – pode-se fazer isso?
V. Bem eu sou obrigado a aceitar que M colocou uma questão de difícil solução. Mas isso não invalida a argumentação. Só diminui seu poder de previsão.
M. E o uso dos teoremas menos arrogante…
E. Alto lá! O fato de que esta condição (iv) ser menos evidente não a torna falsa. Eu, por exemplo, vejo nela a própria condição de existência da racionalidade do mundo. Um universo que possuísse caminhos que levam ao passado seria a negação da minha visão de coerência causal do mundo.
M. Estranho sua idéia de racionalidade! Você considera “natural” que tudo que existe tenha tido uma origem singular, proveniente de uma região a que nunca teremos acesso, onde e para sempre, nenhuma informação possa ser extraída. Como você poderia construir um mundo racional, causal (como você parece empenhado em fazer) se o universo tivesse tido origem naquela singularidade?
V. Bom, creio que vocês abandonaram a minha argumentação de examinar aos poucos estas questões. Por que não voltamos à minha proposta e tentamos encontrar um consenso? Está certo, creio que E se deixou levar pela beleza dos teoremas que Roger e outros nos deram. Mas penso que houve um avanço notável nesta análise teórica.
M. Bem, certamente deixamos de lado aquela extravagante e até certo ponto ridícula sugestão de Lemaître de associar a singularidade da solução de Friedmann à explosão de um átomo primordial. Qualquer ginasiano sabe que átomos podem se desintegrar, e isso depende de processos físicos controláveis ou pelo menos compreensíveis. Daí a imaginar que nosso universo seria semelhante a um átomo que se desintegra…
V. Não, eu não estava me referindo a estes primeiros trabalhos de cosmologia. Eu estava pensando por exemplo nos anos recentes que antecederam os teoremas. Por exemplo, vocês devem se lembrar da análise que Lifshitz e seus colaboradores fizeram no começo da década de 1960. Eles procuraram encontrar aquilo que seria a solução mais geral das equações de Einstein da gravitação. Durante algum tempo eles argumentaram que a haviam encontrado e uma propriedade dela seria precisamente esta: não conter singularidade. Isso parecia confirmar a sugestão de que a presença da singularidade do modelo de Friedmann estaria associada à alta dose de simetria desta geometria. Em verdade, mais tarde se confirmou, Lifshitz estava verdadeiramente descobrindo como o universo se comporta na vizinhança da singularidade.
E. E o resultado que eles encontraram foi maravilhoso: na vizinhança da singularidade o universo é dominado pelo vazio! A matéria não tem nenhuma importância na evolução do universo naqueles primórdios!
V. Isto é, mesmo cientistas de tão grande importância quanto Lifshitz ainda procuravam, nos anos 1960, associar a questão da singularidade à questão das simetrias do universo. Como vemos, pelo menos quanto a esta direção, os teoremas foram um progresso.
M. Eu insisto em dizer que em nenhum momento pretendo retirar de Roger, ou de qualquer um daqueles matemáticos e físicos que se envolveram com estes teoremas, a sua relevância. Eu quero deixar bem claro que estou me referindo à reação a estes teoremas e ao modismo que se desenvolveu a partir deles. Como nosso colega E, muitas pessoas viram neles a demonstração da inevitabilidade de uma singularidade inicial, de um começo-do-mundo. Com todas as consequências que daí decorrem. Ainda hoje, não são poucas as pessoas que concordam com isso. O que eu insisto em afirmar é que eles causaram tanto bem quanto mal ao progresso da cosmologia. E isso, claro está, quase independentemente de Roger e outros.
V. Bem, creio que podemos aceitar este seu ponto de vista, atribuir limitadamente esta responsabilidade a Roger e seus colegas para que possamos seguir em frente.
E. Está bem. Eles podem ser responsabilizados pelo menos, por deixarem esta opinião transbordar de sua demonstração. Mas teriam eles este poder que M está querendo lhes atribuir?
M. Não creio que devemos continuar esta linha de argumentação. Eu prefiriria deixar a responsabilidade diluída pela comunidade científica e não atribuí-la a uns poucos agentes. Todos tivemos nossa parcela de responsabilidade. Voltando ao nosso tema central, há duas questões que poderíamos tentar examinar. Uma delas diz respeito à definição de singularidade utilizada implicitamente na formulação do teorema S (vamos passar a chamá-lo assim? Isso simplifica nossa conversa e a deixa transparente para quem nos ouça). A outra diz respeito aos diferentes esquemas que foram criados e que exibem modelos de universo sem começo nem fim. Universo eterno, como eu tenho dito.
V. Bem, você não foi o primeiro a chamá-lo assim, mas reconheço que de todos nós você é o que mais tem lutado por tornar este “universo eterno” um tema de trabalho comum em Cosmologia. Eu me lembro até mesmo uma vez, em Caxambú, quando você, ao dar uma palestra plenária sobre este tema, apresentou um modelo de universo eterno e, para distingui-lo do modelo sem singularidade conhecido entre os não-especialistas – a geometria estacionária de de Sitter – que não evolui com o tempo, ou melhor, que tem a mesma aparência em qualquer tempo, chamou a seu modelo de “Cenário de Universo Eterno Dinâmico”. Até aí, tudo bem. A situação curiosa foi que, como todos faziam à época, devido aos estrangeiros presentes na audiência, sua transparência estava escrita em inglês. E, neste idioma, ao escrever o título de sua conferência sublinhou com uma caneta vermelha as suas iniciais. Ficou alguma coisa assim:
Dynamical Eternal Universe Scenario.
Pois não é que esta brincadeirinha foi considerada ofensiva por alguns. E, mais grave ainda, acharam que se tratava de uma arrogância. Como se quisesse se comparar a Deus! Vejam só!
E. Eu penso que posso responder à primeira questão de um modo bastante simples. Basta examinar atentamente a sentença de número (iii) do teorema S. Ora, um observador real caminha sobre trajetórias que estão situadas no interior do cone de luz local. Isso nada mais é do que a afirmação de que todos os observadores reais devem viajar com velocidade menor do que a da luz. Por observador, aqui estamos entendendo, claro está, qualquer corpo ou objeto material. Uma máquina levando instrumentos, por exemplo. Ora, a menos que alguma coisa dramática aconteça em um dado ponto, esta trajetória não deve ser interrompida. Lembremos que estamos considerando somente a força gravitacional em jogo. Assim, se em algum ponto de sua trajetória ele é interrompido, não podendo ser estendido além, neste ponto alguma coisa catastrófica acontece com o corpo. Ele literalmente desaparece do espaço-tempo. Ora, este lugar bem mereceria ser qualificado como singular. Um ponto onde a noção de contínuo espaço-tempo deve dar lugar a alguma outra coisa. Ou seja, podemos dizer que aquele ponto é singular.
M. Mas você há de concordar que não é esta a maneira usual, tradicional com que definimos uma região singular em todas as outras teorias de campo. Se você quiser comparar com a situação do elétron que citamos há pouco, a história é bem diferente. Ali, o campo eletromagnético do elétron possui uma verdadeira divergência, é verdadeiramente singular, isto é, assume valor infinito!
E. Sim, isso é verdade.
V. Vamos então aceitar que o teorema S fala de uma propriedade que não se identifica com uma divergência tradicional de um campo físico, mas alguma coisa estranha e impeditiva acontece em algum lugar. Estamos todos de acordo? Bem, se é assim, isso pode estar sinalizando duas coisas. Ou há uma verdadeira singularidade, no sentido tradicional – embora com uma aparência nova, geométrica –, ou uma outra descrição do que ali está se passando deve ser empreendida. Possivelmente com uma conotação de natureza quântica. De gravitação quântica, quero dizer.
M. Eu prefiriria que deixássemos por um momento esta questão quântica. Isso levaria a uma outra discussão que podemos ter mais tarde, mas certamente nos afastaria desta nossa conversa sobre o começo-do-mundo.
V. De acordo.
E. Neste caso, o que é que se poderia colocar no lugar da singularidade? O que por exemplo, nosso colega M, prescreveria para que o universo pudesse seguir adiante – ou, melhor, para trás – além deste ponto primordial?
M. Se vocês quiserem, posso dar uma idéia simplificada de meu seminário de amanhã, onde eu respondo a esta questão.
E. Se podemos criticar à vontade, eu aceito.
M. E alguma vez você deixou de me criticar?
V. Bem, bem, deixemos essas discussões sem interesse maior de lado e vamos ao que nos interessa. Vamos lá, M. Faça-nos uma avant-première de sua conferência.
M. Pois bem, vamos a ela. Vamos seguir a mesma sequência da transparência que preparei, certo?
A primeira questão que aparece é como conciliar a história da cosmologia com a descrição atual. Isso significa, dentro do cenário padrão, que devemos identificar a estrutura da geometria do mundo, após a fase extremamente condensada inicial – e qualquer que seja ela –, à de Friedmann. Nós podemos fazer isso sem maiores dificuldades, como veremos, mas o principal obstáculo consiste em impedir que esta geometria desapareça em uma singularidade inicial.
Vamos representar a geometria de Friedmann, convencionalmente por um gráfico de R(t) contra t. Ela representa como o que podemos chamar, simplificadamente, de “raio do universo” e varia com o tempo.
E. Ora vejam! Você criticou há pouco a idéia de um tempo global, único para todo o universo e no primeiro momento que fala de seu modelo, o que acontece? Você usa precisamente este conceito. Você faz apelo a um tempo cósmico! Isso não lhe parece contraditório?
M. Não, e explico porque. Eu não estou pretendendo, com este modelo, nada mais do que mostrar como é possível criar um cenário coerente e adaptável à visão comum, padrão, da cosmologia de hoje. Eu não quero me afastar destes cânones neste momento e a razão é simples. Se eu não seguir a maior parte das regras convencionais com que os cosmólogos têm construído modelos de universo, muito possivelmente estaríamos envolvidos em uma outra discussão e eu não poderia sequer demonstrar aquilo que estou pretendendo. Eu lembro que nossa questão agora é mostrar – dentro de um esquema convencional da física – como é possível evitar a singularidade cósmica e, consequentemente, produzir um cenário coerente de um universo eterno. Nesta proposta, embora haja uma profunda mudança na estrutura da geometria do espaço-tempo, podemos simplificar nossa exposição identificando esta alteração com um campo escalar. Eu vou só comentar as propriedades gerais deste modelo. Os detalhes técnicos vocês poderão ver e criticar amanhã. Pois então, comecemos a examinar o que eu chamaria de Criação Espontânea do Universo Clássico.
A questão que estamos examinando pode ser colocada do seguinte modo: será possível, classicamente – isto é, sem fazer apelo a processos quânticos – conectar as fases colapsante e expansiva de um Universo friedmanniano? A resposta é sim, e vários modelos capazes de descrever uma tal configuração foram examinados nos últimos anos. Uma lista mais completa destes modelos pode ser encontrada em minha palestra, de 2002, na 9ª Reunião do Marcel Grossmann, em Roma. Aqui, vou me concentrar a examinar somente um destes modelos, recentemente elaborado, e que tem por base a modificação da estrutura geométrica do espaço-tempo.
Ao passar pela fase extremamente condensada, tendo atingido seu raio mínimo R0, o Universo sofreu violentas mudanças globais em seu comportamento. Dentre estas, vamos considerar a modificação estrutural de sua geometria. Para compreender como é possível, pelo menos, em princípio, uma tal alteração, devemos, preliminarmente, entender uma questão delicada e responder à questão: se observações efetuadas em um dado momento e em uma determinada região do espaço indicam o tipo particular de estrutura geométrica do mundo, como podemos concluir que esta estrutura será mantida ao longo da história do Universo? Dito de um modo mais técnico: se em uma dada hipersuperfície tri-dimensional ∑1 – aquilo que costumamos chamar de espaço tri-dimensional – a estrutura geométrica é do tipo riemanniano, podemos afirmar que a estrutura deste espaço-tempo em uma outra hipersuperfície ∑2, no futuro de ∑1, será também riemanniana?
E. Certamente! E, para demonstrar isso, podemos usar a mesma argumentação que nosso colega Hawking utilizou para demonstrar uma questão semelhante envolvendo a impossibilidade de criação de matéria ex-nihilo. Se em uma dada superfície ∑1 a energia da matéria é nula, ela será nula em qualquer outra superficie ∑2, no futuro de ∑1. Para mostrar isso basta utilizar a lei de conservação de energia.
M. Pois do mesmo modo que ele estava enganado nesta demonstração, você também está.
E. Como assim? Ele estava enganado?
M. Sim, e creio que V pode explicar isso melhor do que eu, pois ele esteve envolvido nesta discussão, não é verdade V?
V. Bem, eu não estive diretamente envolvido, mas participei desta discussão e posso resumir a questão de modo conciliador. O argumento de Hawking é correto, se nos limitarmos ao mundo clássico. Mas como pode haver excitação quântica do vácuo, o campo gravitacional pode produzir partículas e alterar aquela configuração do vazio. Assim, o argumento de Hawking não é válido no mundo quântico. Ele reconheceu isso e ficou tão excitado por este argumento contrário que o integrou a seu pensamento elaborando a partir dele sua brilhante idéia de que um buraco negro deve irradiar energia!
M. Bem, como nós não podemos dizer à natureza para ela só se comportar classicamente, então o argumento estava errado. Do mesmo modo, aqui. Para entendermos isso, devemos nos situar no interior de uma teoria física que seja capaz de descrever o comportamento do campo gravitacional ao longo de toda a história do Universo. Modificações estruturais na geometria podem ocorrer de modo semelhante ao que ocorre com a matéria ordinária, que pode exibir transições de fase (passagem de um estado líquido ao gasoso, por exemplo) controladas pela temperatura. Quando o Universo se encontra extremamente condensado, nas vizinhanças de seu raio mínimo R0 (o que, de acordo com a descrição friedmanniana típica, é sinônimo de temperatura muito elevada), uma transição de fase geométrica pode ocorrer. Quando essa transição é suave e as alterações contínuas, é possível estabelecer uma descrição analítica deste processo – associada a uma modificação efetiva da gravitação einsteniana. Pode-se descrever este processo como a passagem de uma configuração de uma geometria riemanniana (quando o universo é suficiente grande, comparado com R0) para uma estrutura descrita pela geometria de Weyl integrável, o chamado Wist, das iniciais de Weyl Integrable SpaceTime. Alarga-se, assim, o número de variáveis necessárias para descrever a gravitação. Como devemos tratar do universo espacialmente homogêneo, este número se reduz a dois: além do raio R(t), devemos conhecer também uma outra função ômega (t) que controla o afastamento da estrutura riemanniana do espaço-tempo. Quando a função ômega (t) é uma constante, a geometria é riemanniana; a estrutura Wist só aparece naquelas regiões onde ômega não é uma constante. Neste caso, a questão a que nos referimos acima pode ser reinterpretada: se a função ômega é praticamente constante hoje, como pode ela ter variado ao longo do tempo cósmico? A resposta a esta questão é fácil de ser representada.
Por questões técnicas, estamos interessados particularmente na variação temporal da derivada de ômega. A razão para isso é que o afastamento da geometria riemanniana é medida precisamente pela variação de ômega (ver quadro wist). O raio do Universo, R(t), admite, graças a essa dependência funcional da função ômega (t) a configuração eterna (isto é, não singular).
É possível, pictoricamente, representar este universo associando-o a um gás contido em uma caixa que dispõe de um pistão capaz de fazer variar o seu volume, passando por várias fases:
– Fase 1: graças à instabilidade do vazio, pequenas perturbações (representadas simbolicamente pelo pistão) crescem: um universo vazio começa a colapsar, o seu volume V decresce lentamente.
– Fase 2: Quando o Universo atinge seu volume mínimo V0 a aceleração do pistão é máxima.
– Fase 3: Atingindo o volume mínimo V0 a força sobre o pistão inverte sua direção, o espaço-tempo começa sua fase de expansão, a princípio muito rapidamente e com o passar do tempo diminuindo.
– Fase 4: O Universo continua sua lenta expansão.
Enquanto as fases 1 e 4 têm duração muito grande, as fases 2 e 3 ocorrem muito rapidamente. Tudo se passa como se o Universo, ao se aproximar da vizinhança do seu volume mínimo V0 sofresse um sobressalto, de curtíssima duração.
Definimos assim, arbitrariamente, o ponto t = 0 como correspondente ao momento de máxima condensação ou raio mínimo. A função ômega se torna uma constante longe de t = 0. Sua concentração em torno da origem t = 0 sustenta a afirmação de que a estrutura wist se encontra limitada, temporalmente, a uma pequena fase da história do Universo, em torno de seu ponto de máxima condensação. O campo ômega passeia pelo Universo, controlando sua geometria, como um pulso variável no tempo e de amplitude máxima centrada em torno da origem t = 0, justamente no instante de transição da fase colapsante à fase expansiva.
Tudo se passa como se uma onda espacialmente homogênea preenchesse todo o universo, caminhando do infinito temporal passado (riemanniano) para o infinito temporal futuro (riemanniano), espraiando-se nestas regiões assintóticas, tendo concentrada sua energia (definida em termos da quantidade ômega em torno do ponto t = 0). A este pulso temporal, chamamos “wiston”. Ele induz e controla a variação estrutural da geometria, permitindo a passagem de uma configuração riemanniana a outra, através de uma ponte geométrica da forma Weyl-integrável.
Curiosamente, além da solução wist descrita acima é possível construir uma outra solução – que chamamos anti-wiston – que representa uma configuração oposta.
Aqui aparece uma particularidade notável deste modelo: como a energia dos wistons (respectivamente, anti-wiston) não depende de ômega, mas, sim, de seu quadrado, concluímos que ambas configurações (wiston e anti-wiston) geram a mesma evolução temporal para o raio do Universo.
E. Você poderia explicar um pouco mais sobre a origem desta onda? Se trata de um campo físico? Carrega energia?
M. Veja bem. Se trata do campo gravitacional. O campo gravitacional é um campo físico, mas na teoria da relatividade geral de Einstein, como você bem sabe, não sabemos como definir uma densidade de energia para ele, não sabemos definir uma energia localizada no campo gravitacional. Pois o mesmo ocorre com o Wist. Em verdade, eu estou adicionando uma função a mais na geometria. Vista deste modo, estou considerando que a gravitação requer uma descrição um pouco mais completa da geometria, envolvendo também a possibilidade de sua flutuação entre uma geometria de Riemann e de Weyl.
E. Essa teoria parece muito próxima dos resultados recentes de “strings”. Você poderia explicar se estou certo?
M. Em parte sim, é parecida. Mas essa semelhança eu deixo para contar amanhã durante meu seminário, está bem? A invariância sob a transformação de inversão temporal a que me referi, teria profundas repercussões filosóficas sobre a direção temporal na qual a evolução ocorre, não fossem certas particularidades envolvendo o comportamento das flutuações dos vácuos dos diferentes campos físicos. Isto nos leva a penetrar na questão da cosmogonia, a saber: qual a origem da matéria? Do mesmo modo, devemos procurar responder à pergunta: é um Universo eterno instável? Antes de responder a essa questão, é preciso procurar esclarecer um pouco melhor qual seu significado. Um Universo tão simétrico quanto o de Friedmann pode ser considerado como o ponto final de configurações anteriores, menos simétricas, que teriam dissipado suas irregularidades por algum processo físico. Ou então, o que é mais aceito, pode ter tido uma origem, num tempo finito ou infinito, sendo projetado diretamente neste estado. Mesmo que não desejamos por o foco de nossa atenção dirigido para a análise desta questão, ela nos permite considerar o contexto em que devemos situar esta pergunta. Um Universo homogêneo e isotrópico pode sofrer perturbações, pequenas alterações em suas propriedades geométricas, possivelmente induzidas por flutuações materiais aleatórias, de diferentes características, não necessariamente preservando as mesmas simetrias que a geometria original. Isto significa que sobre a estrutura friedmanniana considerada como básica, pequenas perturbações podem ocorrer induzindo desvios em suas propriedades, como por exemplo, em sua condição de ser espacialmente homogênea, bem como também sua isotropia. Se estes desvios resultassem crescer fora de controle, isto é, se pequenas flutuações da geometria crescessem tornando-se macroscópicas, um universo eterno certamente deixaria de ser homogêneo em algum momento ulterior. Do mesmo modo, deve-se considerar a questão das flutuações de entropia e de densidade da matéria aí presentes. Se estas pudessem crescer sem controle, um universo eterno conduziria ao paradoxo de conter uma quantidade infinita de matéria e de entropia – com as dificuldades óbvias de tratamento formal que daí decorreriam.
Esta é, assim, simplificadamente considerada talvez a maior dificuldade que se apresenta a todos os modelos que propõe um universo não singular, eterno: como controlar suas perturbações, como inibi-las, ou melhor, como estabilizá-las? O cenário wist consegue resolver esta questão de um modo particularmente simples e elegante, mas os detalhes eu deixarei para minha conferência (ou em artigos com meus colaboradores como o Dr. J. M. Salim e outros).
E. Eu gostaria de voltar a examinar o modelo padrão, pois não me parece que tenhamos verdadeiramente necessidade de abandoná-lo. E, se me permitirem, eu gostaria de expor brevemente minhas razões, que se chocam com as que M apresentou.
V. Claro, isto será muito interessante pois poderemos opor um cenário ao outro, logo em seguida.
M. Desde que vocês não utilizem o argumento de autoridade…
E. Como assim?
M. Veja, não creio que os argumentos que E irá apresentar – e eu os conheço muito bem – sejam mais rigorosos que os meus. Suas premissas e seu embasamento teórico são de natureza semelhantes e ambos não podem ser questionados pela observação, pois suas principais afirmativas estão longe de nosso poder atual de observação. Assim, entre dois modelos igualmente teóricos, se não se pode decidir na observação, como o faremos? Pela autoridade? Pela maioria, como numa votação?
V. Vamos deixar essa questão para mais adiante? Ouçamos o que E tem a dizer sobre a singularidade.
E. Eu começaria por modificar um pouco o tema de nossa questão e considerar uma ou duas questões colaterais que, penso eu, são mais tratáveis pois estão relacionadas às observações. Por exemplo, a questão causal. Creio que todos estamos de acordo que existe uma estrutura causal mesmo na presença de campos gravitacionais intensos e que isto requer a existência de uma velocidade máxima de propagação para toda forma de informação. Ora, se o universo teve uma singularidade, isso quer dizer que nós não observamos todo o universo, pois só podemos observar aquela parte limitada da qual pudemos ser informados desde o momento de condensação máxima. Para simplificar minha exposição, eu me limitarei a considerar que o tri-espaço é infinito e euclideano. Isto é, o tri-espaço coincide com o que todos nós – relativistas ou newtonianos – chamamos simplesmente de espaço. Isso significa que logo imediatamente após o Big Bang singular, todo o espaço já estava constituído. Isso coloca de imediato uma questão. Observações precisas garantem que o universo observado é bastante homogêneo e isotrópico. E, no entanto, diferentes partes deste universo não teriam trocado informação no momento em que esta homogeneidade estaria sendo organizada! Como teria sido possível uma tal homogeneização ocorrer sem violar causalidade? Esta é certamente uma questão bastante séria que exige uma resposta fechada sob pena de inviabilizar o modelo de Friedmann. Pois bem, o modelo inflacionário apresentou uma proposta simples e que possui consequências passíveis de serem observadas – e, como tal, dentro do esquema convencional da ciência. A idéia é tão simples que não é difícil de imaginar que mais de um cientista a tenha imaginado. Mas a história da física – como qualquer tipo de história – é feita por aqueles que detêm o poder. Atribui-se a Guth a idéia original ou, pelo menos, ele é assim considerado por ter conseguido publicidade suficiente capaz de tornar uma tal proposta aceita pela comunidade dos cosmólogos. É bem verdade que, hoje, considera-se que vários outros cientistas tenham apresentado antes dele, trabalhos semelhantes, como Starobinsky, Katsuito Sato e outros. A base da ideia consiste na possível existência de um período na evolução do universo na qual sua expansão teria sido muito mais rápida do que aquela tradicional, gerada por um fluido perfeito convencional. Esta expansão acelerada teria tido origem em alguma forma de constante cosmológica ou fluido de pressão negativa que teria controlado a evolução da curvatura do espaço-tempo nos primórdios de nossa era expansionista. A sustentação de uma tal proposta veio principalmente da física das Altas Energias e seus campos esdrúxulos ainda não observáveis – tais como o campo escalar chamado de dilaton. Não quero criticar este cenário, mas, ao contrário, mostrar que ele produz um modelo bastante razoável, compatível com as observações e sem que tenhamos dificuldades causais.
M. De um certo modo as dificuldades causais não foram resolvidas, mas – para usar um termo bem ao gosto desta comunidade que você se referiu – transcendidas. Como o universo causalmente conectado àquela região primordial não se refere à totalidade, mas somente à parte que observamos, a causalidade está garantida. Mas você não acha que se está escondendo o problema? Ou você é adepto daqueles cientistas positivistas que consideram qualquer comentário para além de nosso horizonte observável como matéria de ficção? Isto é, você está escondendo a questão da singularidade e não resolvendo-a.
E. Pois é isso mesmo. E estou convencido que devemos adotar esta posição como a mais racional no estado atual de nosso conhecimento do universo.
V. Bem, eu não gostaria de tomar partido nem de um lado nem do outro, mas devo confessar que esta sua posição E, de não apresentar uma descrição completa do universo – nem que seja um simples modelo ingênuo – não me satisfaz, nem faz parte da tradição científica. Creio que devemos, a todo momento da evolução de nosso conhecimento racional do mundo, tentar encontrar um modo pelo qual possamos extrair um modelo global e completo do universo. Mesmo sabendo que ele é provisório e possui pontos fracos que deverão ser substituídos à medida que avança nosso conhecimento.
E. Pois eu não acredito nisso. Creio que nossa atividade racional enquanto cientista é apresentar uma descrição daquilo que pode ser contestado ou confirmado pela observação.
M. Você certamente não assimilou a leitura do famoso diálogo entre Bohr e Einstein a respeito da mecânica quântica… Pois, caso contrário, você se lembraria de que o que está em jogo ali é, precisamente, a possibilidade da ciência em produzir uma descrição completa do mundo em todos os níveis da realidade, sem que em algum momento uma hipótese não comprovada se interponha entre o discurso científico e o conhecimento científico.
V. O que M está querendo dizer – corrija-me se o entendi mal – é que todo discurso sobre a visão científica do mundo não pode abdicar de ser completa. Como consequência natural disso, ele deve conter alguma hipótese de principio a que devemos recorrer para dar sentido ao nosso modelo.
E. Eu entendi muito bem o que ele disse. E, com certeza maior até, definitiva e positivamente não concordo!
V. Mas vamos deixar para continuar a discutir isso amanhã em nossa reunião, certo?
E. Está bem.
M. Concordamos finalmente em algum ponto!
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*Mario Novello é doutor em física pela Universidade de Genebra, Suíça, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e fundador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA). Em 2004 recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Lyon, França, por seus estudos sobre a origem do universo. Autor do livros Cosmos et Contexte (Paris, Ed. Masson, 1987); O círculo do Tempo: um Olhar Científico sobre Viagens Não-convencionais no Tempo (Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1998); Os Sonhos Atribulados de Maria Luísa (Rio de Janeiro, Zahar, 2000); Máquina do Tempo (Rio de Janeiro, Zahar, 2005); O que é Cosmologia (Rio de Janeiro, Zahar, 2006); e Do Big Bang ao Universo Eterno (Rio de Janeiro, Zahar, 2010), entre outros.
Este texto faz parte do livro “Do big bang ao Universo eterno”, de Mario Novello, publicado em 2010 pela Editora Zahar.