Lições de Cosmologia para não-especialistas (das leis físicas às leis cósmicas) – 1
Estas notas constituem uma extensão de um curso de cinco lições que dei em 2018 no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas para divulgar alguns aspectos do universo que os cientistas têm elaborado nas últimas décadas, sem me deter nas demonstrações matemáticas associadas. Aqueles que tiverem interesse em aprofundar este conhecimento técnico poderão consultar as referências citadas.
Os antigos diziam que a Natureza tem horror ao vácuo.
O mundo quântico mostrou que, com efeito, o vazio é instável.
Os astrônomos diziam que a Natureza tem horror ao infinito.
A cosmologia mostrou que sob o manto do infinito, o mundo esconde um caos.
As religiões antigas acreditavam que o mundo foi criado em um momento mágico e único, há um tempo finito.
A união do mundo quântico com a cosmologia mostrou que o mais provável é que o universo seja eterno.
Nos séculos passados, supunha-se que o mundo se estruturou na estabilidade.
Os físicos hoje reconhecem que a configuração atual do cosmos foi o resultado de uma instabilidade.
Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma
(Hegel)
Comentário inicial
Desde sempre o homem foi atraído pelo esplendor do universo.
Adentrar a cosmologia, usar a razão e o método cientifico para perscrutar o universo deveria ser um momento grandioso do pensamento.
No entanto, a cosmologia ao longo do século 20 produziu a diminuição desse maravilhamento, deixando em seu lugar equações que para a grande maioria dos não-iniciados não faz sentido e cuja interpretação não provoca nenhum aprofundamento da reflexão sobre o mundo.
A acreditarmos em Heidegger, a ciência não poderia mais ser entendida como um valor de civilização, ela se tornou um afazer técnico e prático. Ela não permitiria, no caminho que se desenvolveu, produzir modos de pensar amplos, capazes de despertar o espirito e produzir reflexão sobre o mundo.
Contrariamente a essa visão negativa do filósofo, iremos ver neste curso que a cosmologia está gerando um movimento de ideias que vão em direção oposta e, sim, permitem um despertar do espirito. Em particular iremos ver como uma certa atividade, construída a partir da análise da estrutura do universo, deu origem a um caminho de renovação do pensamento que iremos chamar de metacosmologia.
De modo preliminar podemos distinguir a cosmologia que trata deste universo, da metacosmologia, que trata de todos os universos compossíveis.
Na tarefa de produzir novos modos de pensar, a metacosmologia vai se apoderar, em particular, daquela que Heidegger considera a questão fundamental da metafísica, isto é, “por que existe alguma coisa e não nada?”
Entender como isso foi possível é o objetivo principal desse curso.
Acrescentei ao final alguns comentários sobre uma recente modificação importante à teoria da relatividade geral gerando uma nova teoria da gravitação. As consequências dessa nova teoria ainda estão sendo estudadas.
Introdução
Nessas lições iremos entender as razões pelas quais, a partir da segunda década do século 20, uma certa ideia da Cosmologia adquiriu uma quase total concordância entre os cientistas através da aplicação ao universo da teoria da gravitação proposta por Albert Einstein. Vamos discutir alguns dos modelos cosmológicos que se desenvolveram e em particular a solução de Alexander Friedmann de um universo dinâmico e singular.
Aparece então a inesperada possibilidade de poder tratar na ciência a pergunta fundamental qual a origem do universo? Vamos examinar algumas das respostas apresentadas pelos cientistas em diversos momentos e que requerem a distinção entre a formação do espaço-tempo e a criação da matéria. Isso passa pela análise envolvendo o mundo microscópico e ficará claro que as características globais do universo têm uma conexão intima com o mundo das partículas elementares e suas configurações quânticas.
E, no entanto, malgrado esse sucesso que pode facilmente ser exibido pela evolução da cosmologia neste século de sua constituição, irei comentar uma análise crítica que gera dificuldades para essa cosmologia padrão. Em seu favor, vamos ver que esta critica conduz a uma riqueza de consequências que transcende de fato a ordenação cientifica e invade outros territórios do pensamento.
Iremos requisitar que a cosmologia tenha uma atitude crítica e repensar o significado do que chamamos lei da natureza. Em particular, devemos enfatizar que o cientista não deve aceitar, sem uma análise profunda, que uma lei física terrestre seja automaticamente generalizada para o cosmos.
Enquanto reconhecemos que existe entre os físicos, entusiasmo na tentativa de estabelecer uma teoria unificada que conteria a base onde reside a explicação de todo processo físico, a cosmologia como a iremos tratar aqui, na contramão dessa prática, deve preliminarmente instaurar um inquérito sobre a validade cósmica dessas leis que se pretende unificar.
Ou seja, a tarefa do cosmólogo não é somente produzir uma ordenação dos processos observados no universo usando uma extensão irrestrita das leis físicas, mas principalmente, examinar de forma crítica e independente de critérios formais universais e absolutos, a aceitação, subjacente à cosmologia corrente, da conjectura de que as leis da física terrestre são válidas em todo o universo
Uma ideia antiga, abandonada pelo establishment por quase um século na aplicação da física ao universo, está vindo à tona e parece produzir um terremoto na organização da ciência e, a partir daí, gerar a necessidade de uma reconstrução da ordem científica.
Embora seja uma noção que permeou o pensamento cientifico há muito tempo, podemos simbolicamente atribuir sua aparição com destaque na física no final da década de 1930.
Com efeito, em 1937 dois artigos publicados em importantes revistas científicas, sugerem que as leis da física podem variar com o tempo cósmico. Um deles, o físico britânico Paul Dirac propôs que a força gravitacional entre os corpos tivesse característica diferente com o passar do tempo universal. O físico S. Sambursky da Palestina, sugeriu que o mundo quântico teria propriedades distintas de acordo com o tempo cósmico.
Em síntese, esses cientistas propuseram que as leis da física não são universais, contrariamente à ideia convencional que tem sido aceita pela grande maioria dos físicos. No capítulo sobre a dependência cósmica das interações exponho alguns aspectos técnicos dessas propostas e de sua evolução. Aqui eu me limitarei a tirar algumas consequências da ideia de que as leis físicas variam com o tempo cósmico.
Aparece então a questão: por que as leis variam? Existiria uma razão teleológica, como pretendem alguns físicos? Deveríamos aceitar que o tempo de existência do universo seria um parâmetro maleável? Não vivemos então em um mundo perfeito, no melhor dos mundos? Por isso seria preciso um ajuste dessas leis? De outro modo, por que razão haveria um controle, em ação permanente, para modificar, para supostamente aperfeiçoá-las, alterando suas características?
A necessidade das leis físicas no cosmos e as leis jurídicas (uma comparação ingênua)
Um momento importante na história da humanidade aconteceu quando os homens começaram a descrever o comportamento das coisas, associando os fenômenos a leis físicas. Iniciou-se ali um caminho maravilhoso que levou à esperança de produzir uma descrição completa do comportamento do universo.
Em momento ulterior, de grande sofisticação, em tempos recentes onde nosso conhecimento da natureza já havia avançado enormemente, uma questão de natureza estranha ao corpo de leis físicas começou a se desenhar no horizonte. Ela conduzia colocar a questão da universalidade da lei física. Ou seja, começou-se, em um primeiro momento, de modo simplista, ingênuo mesmo, a questionar a razão pela qual o universo precisaria ter leis às quais tudo que existe — a matéria, a energia e o próprio espaço e tempo — deveriam obedecer rigidamente. E, por fim, questionar essa rigidez das leis.
Uma tal questão transportada para a sociedade humana tem sentido e respostas várias, todas elas podendo ser unificadas e sintetizada em um só termo: as leis jurídicas existem para estabilizar as relações na sociedade e variam com a transformação da sociedade.
E no universo, por que existem leis físicas?
Essa é uma daquelas indagações que os físicos consideram irrelevantes, pois entendidas como sem sentido no interior do pensamento científico. Deveriam ser desconsideradas pois não se requer da ciência a explicação da origem de suas leis, mas somente sua constituição. E, no entanto, a Cosmologia está produzindo um território de análise onde uma tal questão ganha sentido e até mesmo, embora timidamente e com pouca repercussão na comunidade científica, construir respostas significativas.
Não irei comentar as intervenções que procuram desqualificar essa pergunta. Curiosamente, elas pertencem ao establishment que se organizou precisamente graças ao sucesso que tiveram por produzir representações efetivas e aplicações práticas bem-sucedidas das leis físicas.
Consideremos exemplos precisos vindo de análises da união da cosmologia com o mundo das partículas elementares. Sabemos que neste universo existem duas partículas elementares fundamentais por sua importância na estruturação de tudo que existe: o próton e o eletron. Ambas são absolutamente estáveis. Isso é interpretado como se eles permanecessem como tais durante toda a existência deste universo, tenha ele uma existência finita ou infinita. (Note que estou me referindo a este universo como se pudéssemos imaginar outro. Mas é exatamente a partir dessa possibilidade que a variação das leis físicas ganha sentido).
Começamos então a entender o primeiro importante conceito que devemos investigar para entender a necessidade de leis físicas: a estabilidade.
Aplicado ao universo, requer que ele tenha um tempo de existência suficientemente longo para permitir sua evolução e a formação de estrelas, planetas estáveis e configurações como o nosso sistema solar capaz de permitir a constituição de um ambiente favorável ao aparecimento da vida.
Certamente não é por acaso que a estabilidade de uma sociedade humana requer a existência de leis jurídicas que priorizam a coletividade. Aparentemente, o mesmo parece acontecer com as leis físicas: elas permitem a existência de um cosmos estável no qual a solidariedade de suas partes serve para controlar possíveis instabilidades que o destruiriam em tempo mínimo. Isto aponta para uma analogia bastante defensável entre as leis que tendem a priorizar a coletividade como veremos nas próximas seções.
Sabemos, por exemplo que um universo sem interação entre suas partes, sem solidariedade (como os modelos de universo estático, sem evolução, como se pensou no passado) são altamente instáveis.
No momento em que a rigidez neoliberal leva ao abandono da solidariedade, não deixa de ser inspirador olhar para o universo e, seguindo os passos de Giordano Bruno, pensar a utopia de uma sociedade que mimetiza a beleza cósmica, produzindo uma profunda alteração nas relações sociais estabelecida sob a égide do único conceito universal e absoluto que nos vem do cosmos e que significa cooperação, interação, participação, ou seja, solidariedade.
Breve comentário sobre o alcance e a aparência da solidariedade
No universo encontramos diversas catástrofes cósmicas, como galáxias que se devoram, estrelas que colapsam e se transformam em buracos negros, etc.
Esses exemplos parecem contradizer a tese de solidariedade do cosmos. No entanto, estes exemplos são sempre questões locais, não envolvem a globalidade do cosmos, da qual a solidariedade que estamos nos referindo está associada.
Embora a analogia com a situação da espécie animal seja ineficiente, eu ousaria considerá-la somente para relatar a dicotomia local-global e suas diversas aparências no universo e nas relações entre animais. Ou seja, vamos ver (salvadas as consequências do comentário acima) o que diz André Pichot sobre a dualidade egoísmo-altruismo na espécie animal.
« Le dawinisme est consideré comme totalement égoiste, car il suppose une lutte sans merci entre les individus, dont seuls les plus aptes à vivre sortiront vainqueurs. Autrement dit : chacun pour soi, la sélection reconnaîtra les meilleurs. Pour sortir de cet égoïsme tout en conservant les principes darwiniens, il fallait donc imaginer un comportement altruiste héréditaire ayant une valeur sélective supérieure à celle de la lutte de tous contre tous ; un comportement conférant aux individus le pratiquant un avantage tel que l´évolution le conserverait. Wallace trouva ce comportement altruiste dans l´entraide entre les individus d´un même groupe social (il dit « tribu »).
En effect, selon lui, une telle entraide entre ses membres permet à la tribu de plus facilement survivre dans la lutte pour la vie, comparativement aux tribus dont les membres ne s`entraident pas, tribus qui sont donc moins solidement soudés face à l´adversité ».
Ou seja, o individualismo pessoal se transferiu para o egoísmo do grupo. Para preservar o grupo, um efetivo altruísmo se instalou individualmente.
No caso do universo, a solidariedade global requer que as catástrofes acima apontadas sejam sempre localizadas, limitadas no espaço e no tempo, e que elas possam ser incorporadas como pequenas oscilações no território maior do cosmos. Quando isso não acontece, quando essa solidariedade global não se instala, o resultado é uma catástrofe global, o universo se destrói. O exemplo mais simples é o instável modelo cosmológico de Einstein.
Para entender o universo inacabado
Isaac Newton teve um “insight” extremamente bem-sucedido ao generalizar a queda de um corpo na Terra sugerindo a existência de uma atração universal de todos os corpos via força gravitacional. Um tal procedimento, no entanto, não deveria ser uma regra geral aplicada a todos os processos físicos observados na Terra. Infelizmente, a extensão ilimitada das leis físicas terrestres a todo o cosmos, feita sistematicamente, associou o universo a um sistema rígido, fechado, completo.
Essa orientação se baseou na hipótese de que ao examinar as leis físicas nos laboratórios terrestre, os cientistas estariam desvendando a estrutura das leis cósmicas, válidas para todo o universo.
Imaginar que as leis da física são eternas e imutáveis, dadas por um decálogo cósmico é ter uma visão a-histórica dos processos no universo. Somente introduzindo a dependência cósmica das interações é possível retirar qualquer resquício de irracionalidade na descrição dos fenômenos na natureza e afirmar a força do modo científico de pensar o cosmos.
É ingênuo pensar que no século XX se tenha introduzido a função histórica na cosmologia graças à caracterização da expansão do universo. A extensão do alcance de aplicação das leis físicas para além da região onde elas foram efetivamente observadas é um modo natural de iniciar a descrição cientifica do desconhecido. No entanto, seu uso absoluto resultou ser tão impositivo e foi usado de modo tão amplo que inibiu qualquer forma de crítica, mesmo naqueles territórios onde essa extensão das leis não possuía nenhuma confirmação observacional.
Essa forma de limitar o pensamento, na tentativa da descrição racional do universo levou à subordinação a leis rígidas, fixas, imutáveis e cuja origem estaria para todo o sempre inacessível. Creio que é aí que podemos encontrar as origens de sustentação formal do nefasto pensamento único que controla e corrói a sociedade nos dias atuais, uma utilização indevida da prática científica.
Recentemente, (Scientific American, outubro 2018) comentei a importância de experiências que estão procurando por evidências da dependência cósmica das leis da física. Como meu texto foi muito resumido, estou voltando ao tema pois penso que ele merece uma explicação maior para que se possa ter a devida dimensão das consequências derivadas da sentença principal com que terminei aquele texto, isto é, de que “a natureza possivelmente está ainda em formação. Não somente em processos e fenômenos, mas na constituição de suas próprias leis”. Ou seja, refletir sobre consequências daquelas experiências e responder a duas questões:
- A dependência cósmica das leis da física enfraquece o poder da ciência em sua leitura da realidade?
- Como uma tal dependência afeta a procura da síntese capaz de conter todo conhecimento da natureza em um só esquema formal? Ou melhor, a entrada da história na descrição dos processos físicos no universo enfraquece a dominação absoluta do positivismo na ciência?
Essa dependência pode parecer para os não-iniciados como limitação do alcance das leis físicas, gerando uma nova interpretação da ciência ou até mesmo, se levado ao extremo, anunciando o fim da análise racional dos processos na natureza. Se as leis variam, então não existem leis fixas, rígidas, duradouras? Não existem “leis duras” da natureza?
Para esclarecer essas questões devemos preliminarmente entender como se estrutura, no interior da atividade científica, aquela dependência. Para isso, não será necessário questionar o sistema de formação do conhecimento cientifico nem considerar sua robustez como método. Vários filósofos têm examinado essa questão e apresentado múltiplas orientações. O que aprendemos dessa análise é que os processos de síntese global não são controlados por estruturas localizadas. Em termos mais precisos, a descrição dos fenômenos em termos de equações diferenciais não controla completamente questões envolvendo características globais, como por exemplo aquelas associadas à topologia.
Teremos oportunidade nestas lições de desenvolver a análise dessa questão que aquele pequeno texto anterior não pôde tratar explicando com mais detalhes o significado que devemos atribuir àquela frase. Para isso iremos percorrer um caminho um pouco mais sofisticado, mais técnico. Tentarei ser o mais didático possível, embora reconheça a priori a difícil tarefa que tenho pela frente, pois os argumentos que devemos usar para esclarecer aquela sentença exigem o aprofundamento formal de algumas questões.
Até muito pouco tempo a microfísica e, de modo mais amplo, a física terrestre, eram pensadas fora do contexto cósmico. Elas pareciam não necessitar de explicação ulterior, eram tratadas como sistemas autorreferentes, sem admitir qualquer forma de análise extrínseca para constituir uma razão auto consistente. No entanto, nas últimas décadas a Cosmologia invadiu abruptamente esse domínio tranquilo do pensamento positivista dominante e destruiu a paz racional daqueles que acreditam que a Terra, os homens, possuem um papel especial no Universo.
A nova face da ciência
Há uma nova ordem em construção na Cosmologia contemporânea capaz de produzir uma alteração substancial na ciência e que transborda para outros saberes. A razão para isso se deve à análise da dependência cósmica das leis físicas que induz a inesperada consequência de que as leis do universo estão ainda em formação. Somos assim levados à conclusão perturbadora de que vivemos em um universo inacabado.
Uma tal variação com o tempo cósmico coloca uma questão pouco usual na ciência: devemos aceitar que algum princípio teleológico controla essas variações? Seria esse princípio a instauração do domínio do sagrado na natureza? Existe uma intenção nessa alteração como, em outro contexto, afirmam os defensores do princípio antrópico? Afinal, como interpretar a variação das leis da natureza?
Espera-se da física que ela se limite ao aspecto coisa do mundo, exibindo um distanciamento notável de nós humanos, pois na modernidade o universo não tem alma, é inanimado e a ciência deve construir leis que exibam uma ordem fixa e imutável.
Ou seja, as leis físicas deveriam estar determinadas de um modo único e preciso. No entanto, essas leis sofrem influência cósmica fazendo com que em diferentes eras da evolução do universo elas possuam propriedades distintas. Essas alterações, mesmo no contexto de um universo dinâmico, produzem questões que os físicos não estão acostumados a tratar.
Para contornar essa dificuldade, diminuir o abalo em suas estruturas e reinstaurar uma ordem cósmica como nos tempos iniciais da fundação da ciência, os físicos imaginaram uma solução simples e efetiva. Trata-se de aceitar a hipótese de que é a gravitação que determina a variação das leis da física no universo. A sustentar essa proposta invoca-se seu caráter universal e seu papel na estrutura da geometria do espaço-tempo.
Em resumo iremos investigar a ação de três princípios que sustentam a nova ordem na ciência:
- A universalidade da interação gravitacional;
- A descrição da força gravitacional como modificação da geometria do espaço-tempo;
- A interferência da geometria na constituição das leis cósmicas.
Essa estratégia, por ser uma solução técnica, operando no interior da tradição científica, produz um resultado positivo, permitindo tratar a variação das leis físicas em um contexto conservador da ciência, limitando o efeito perverso que essa ausência de rigidez provoca no modo convencional de assegurar a consistência das leis. No entanto, embora ela reduza as dificuldades geradas pela dependência cósmica das leis físicas, ela não elimina a inquietude que essa dependência provoca.
Nós só reconhecemos uma só ciência: a ciência da história, afirmaram Marx e Engels em A ideologia alemã. Essa sentença deve ser entendida, no interior da atividade científica, exibindo as origens de sua refundação na cosmologia – a ciência histórica por excelência.
No primeiro momento, os físicos não consideraram aquela afirmação de Marx e Engels seriamente porque a quase totalidade dos cientistas acreditava que aqueles filósofos estavam se referindo às questões humanas, o território natural da historicidade. A física, a ciência da natureza por excelência, sempre foi associada a uma prática que lida com processos que não se submetem à evolução e transformação que aquela asserção sub-repticiamente remete.
No entanto, um movimento subversivo estimulado por cientistas como Paul Dirac, Andrei Sakharov, Cesare Lattes, Fred Hoyle e outros alterou profundamente a visão tradicional e a a hipotética rigidez do universo ao instaurar o exame da possível variação temporal das leis físicas com a evolução do universo, apresentando argumentos sólidos segundo os quais a afirmação daqueles filósofos pode efetivamente ser aplicada igualmente à física.
Dito de outro modo, esses cientistas exibiram como a limitação de restringir a evolução do universo a um único esquema de leis, de um único modo de pensar o cosmos, é uma escolha particular de representação do mundo.
Em verdade, seguindo a orientação daqueles cientistas históricos, somos levados a concluir que o universo está ainda em formação, é inacabado, eternamente inacabado, em um processo contínuo de formação, criação e destruição. Dito de outro modo, assim como esse universo se autocriou a partir de um vazio, quando ele se autodestruir só sobrará o vazio. A partir desse vazio se construirá um novo universo. Não conhecemos nenhuma razão para acreditar que este processo seja interrompido.
Assim, iremos tratar com cuidado a hipótese de que as leis físicas não são rígidas e admitem uma dependência com a evolução do universo que deverá ser estendida para além de simples restrição temporal. Está claro que essa dependência diz respeito somente a processos cósmicos e o tempo de que ela depende é um tempo cósmico global cujas propriedades temos que examinar.
Iremos ver alguns exemplos que conduzem a aceitar a dependência das leis físicas com a expansão do universo, tais como:
- A questão da ausência de antimatéria no universo;
- A distinção entre a causalidade local e causalidade global;
- A origem da massa.
Antes de entrar nessas análises podemos avançar algumas de suas consequências e ver onde o exame aprofundado dessa hipótese pode nos levar. Dito de outro modo, que representação do universo emerge dessa argumentação?
A primeira e mais vigorosa consequência diz que vivemos em um universo aberto, incontrolável, prenhe de possibilidades inusitadas, imprevisível, e certamente difícil ou mesmo impossível de ser reduzido a uma configuração congelada, única.
Perde-se assim uma certa tranquilidade cósmica e em seu lugar aparecem possibilidades várias que podem gerar uma anarquia do pensamento ou até mesmo, no extremo oposto, uma descrição teleológica da organização do cosmos associada a propostas sugerindo uma direção finalista de sua evolução. Devemos enfrentar essas dificuldades pois ultrapassá-las é condição para nos libertar de uma rigidez absoluta e sem alternativa, imposta pelo cenário padrão atual.
No primeiro momento devemos rever a hipótese cosmogônica de um começo singular do universo, que implica a aceitação de um tempo finito de sua existência. Em verdade, como ficou claro no século 21, as diversas propostas de conciliar essa finitude com as observações requerem a introdução de configurações esdrúxulas que criam problemas de compreensão maiores. Isso ajudou a entender porque a questão central da cosmologia é o reconhecimento da existência de bouncing, isto é, a proposta segundo a qual, anteriormente a essa fase atual de expansão do universo uma fase de contração do volume total do espaço deve ter existido. Abre-se assim a possibilidade, uma consequência natural a ser examinada, de existir mais de um ciclo de colapso-expansão, o que permite imaginar que cada ciclo poderia ter alterações especiais das leis físicas.
A teoria da gravitação que controla os processos globais do universo mais bem aceita hoje é a teoria da Relatividade Geral. Ela se baseia em uma equação não linear para o campo gravitacional identificado com a curvatura do espaço-tempo. Essa característica, a não linearidade, permite entender a autocriação do universo (ver o exemplo do universo de Kasner). Dito de outro modo, não é necessário sair da análise do universo físico para produzir uma história completa do universo envolvendo sua criação, pois um processo não linear não requer uma fonte externa que lhe dê origem. Ou seja, esse universo autocriado, não necessita de um agente externo para provocar sua existência.
Por outro lado, devemos cuidar para que não nos deixemos atrair por sugestões que transcendem o território que escolhemos para dialogar, a saber, o interior do pensamento científico. Isso não nos impede de tratar algumas utopias controladas que os cientistas têm examinado. Escolhi tratar somente de uns poucos casos, para não nos ocuparmos em demasia com eles. Dentre esses, iremos ver como os cosmólogos se permitiram ir além da ideia de um único universo, ou seja, pensar questões envolvendo os chamados multiversos, as diversas hipóteses de existência de múltiplos universos como por exemplo a proposta de Markov, bem como uma extravagante ideia do que se chamou darwinismo cósmico. Dentre estas, a proposta menos fantasiosa se limita a pensar a possibilidade de diversos regimes de comportamento do universo atravessando fases interpretadas como ciclos de expansão e contração. Iremos ver também a questão causal e as conexões entre caminhos que permitem viagens não-convencionais no tempo e umas poucas outras.
Uma leitura atenta de cientistas, historiadores e filósofos, como Paul Dirac, Cesar Lattes, Fred Hoyle, Paolo Rossi, Cornelius Castoriadis, Karl Marx, entre outros, que certifica a relevância do papel da História no pensamento humano, serve também para estabelecer sua importante influência nas ciências da natureza.
Nas últimas décadas, a noção de historicidade de processos físicos transbordou das ações humanas e se espalhou na natureza. Isso ocorreu quando se tornou público certos conhecimentos referentes à análise matemática envolvendo processos físicos e químicos não lineares que podem exibir o fenômeno de bifurcação [cf Prigogini e Stengers]. Esse termo técnico apareceu na matemática, ao final do século 19, através dos notáveis trabalhos do matemático francês Henri Poincaré — que é mais conhecido por ter sido um dos cientistas que mais contribuiu para a compreensão das regras de transformações das quantidades cinemáticas entre observadores inerciais, a base formal que permitiu o surgimento da síntese efetuada na teoria da Relatividade Restrita (Especial).
Poincaré mostrou que aparecem novidades causais na descrição de processos físicos descritos por certos tipos de equações não lineares. A mais inesperada envolve a impossibilidade de manter uma evolução determinista quando se passa por um certo ponto, típico de cada equação. Chama-se bifurcação a esse ponto. O termo é bem adequado pois ele sinaliza que, ao percorrer uma estrada onde o caminho se duplica em um ponto de bifurcação, a escolha de uma outra direção a seguir não pode ser prevista de antemão, por um observador externo. Em um processo físico descrito por equações que podem exibir bifurcação, a sua compreensão exige seu acompanhamento temporal para que possamos entender como se efetuou a escolha. Dito de outro modo, aparece uma dependência histórica imprevisível. Entretanto, a análise de Prigogine ficou limitada, confinada a processos localizados da física e da química, associados a fenômenos terrestres. Esta historicidade se tornou mais dramática quando se mostrou que certos cenários cosmológicos podem exibir igualmente o fenômeno de bifurcação [Ligia Rodrigues e M Novello].
Mas aqui não iremos tratar desse tipo simples e bem-comportado de historicidade, mas sim de um outro tipo que teve seu início nas hipóteses de Dirac e Sambursky referente à dependência temporal das leis físicas.
Nessa proposta as leis devem exibir uma componente do universo o que leva a transformar as leis físicas em leis cósmicas. Nestas, estaria inscrito o estado do universo, ou seja, as leis cósmicas teriam distintas propriedades ao longo da evolução do universo. Como seria isso possível, como acessar estas leis cósmicas?
Vamos começar por examinar os passos dos primeiros modelos cosmológicos ao longo do século 20, suas dificuldades e as tentativas de resolvê-las. Isso permitirá entendermos o contexto onde a proposta de dependência cósmica ganha um novo sentido e as leis físicas são transformadas em leis cósmicas.
Há um outro comentário que iremos apresentar, embora não nos deteremos muito em seu desenvolvimento, referente ao fim do reducionismo gerado a partir da dicotomia local-global.
Algumas características das teorias que os cientistas têm desenvolvido sobre o universo estão contidas no Manifesto Cósmico que coloquei como apêndice deste texto. Embora dirigido preferencialmente para a comunidade científica, como autocrítica, ele exibe algumas questões que trataremos aqui e em particular o que chamei utopia controlada.
Uma utopia controlada consiste em um processo construído formalmente como consequência de teorias aceitas, mas que ainda não possui nenhuma observação direta que permite considerá-la como parte do que a ciência chama realidade. Nessa rubrica inclui, por exemplo, os multiversos – (configurações de outros universos sem contato direto com o nosso ou com contato não observável em futuro próximo); as curvas do tipo tempo fechadas, onde caminhar para o futuro implica aproximar-me de meu passado; estruturas dos universos quantizados e outros. Entramos assim no que chamei Metacosmologia (cf Cosmos et Contexte).
Para orientar a análise que iremos elaborar nessas lições, proponho examinar algumas questões que apareceram em meus livros desde Cosmos et Contexte (1984) até o recente Universo Inacabado (2018).
Preâmbulo
Nos últimos cem anos os cientistas se envolveram em uma das questões mais formidáveis: entender o universo em que vivemos em sua globalidade.
Para isso foi necessário, em um primeiro momento, ultrapassar a versão newtoniana da gravitação e produzir uma nova teoria capaz de ser aplicada a campos extraordinariamente fortes.
A astronomia ampliou o limitado universo do século 19, exibindo centenas de bilhões de galáxias para além de nossa Via Láctea. Como cada galáxia possui da ordem de uma centena de bilhão de estrelas, vemos que temos de considerar configurações materiais que vão muito além das que estamos acostumados a tratar nos laboratórios terrestres.
Malgrado essa enorme diferença de objetos de estudo considerou-se que a análise do universo poderia ser feita com a extrapolação direta da física terrestre. A cosmologia ficaria assim reduzida a uma física extragaláctica. Não poderia discutir questões envolvendo o universo como entidade global, não poderia questionar sua origem, sua eternidade ou seu eventual começo singular.
É claro que como método de trabalho, essa hipótese é razoável. No entanto não podemos esperar que ela possa ser utilizada em todas as situações e que sua aplicação integral não provoque dificuldades na interpretação das observações. Em verdade, sempre se soube que a generalização ao universo das leis físicas era uma hipótese de trabalho e que, no futuro, deveriam ser substituídas quando conseguíssemos estruturar teórica e observacionalmente as leis cósmicas. Estamos chegando nesse futuro.
Acrescento a estas notas dois textos. Um, Manifesto Cósmico, contém a síntese da autocritica que tenho desenvolvido em minha condição de cosmólogo. A outra, uma versão especial de 1959 de um Simpósio realizado na França coordenado por Serge Sauneron e Jean Yoyotte, sobre o mito de criação do mundo segundo os antigos egípcios. Malgrado a enorme distância temporal que os separam (28 séculos) e os modos completamente distintos de produzirem uma articulação dos mecanismos de criação, considero um bom exercício analisar e comparar o mito com as ideias e teorias da cosmologia moderna que examinaremos nestas aulas. A escolha dos egípcios neste contexto foi fortuita. Caminhos semelhantes foram usados por outros povos na construção de seus mitos de criação.
Um último comentário antes de iniciarmos nosso curso. Veremos que a distinção entre a física e a cosmologia, como a iremos descrever aqui, não é somente de ordem de grandeza dos agentes envolvidos, mas é mais profunda. A cosmologia não pretende organizar o mundo subordinada a um formalismo lógico, fechado em si, ignorando os teoremas de Gödel. Iremos então entender porque podemos dizer que, assim como a biologia (cf. Ernst Mayr), a cosmologia é uma ciência histórica.
O ponto A (origem do sistema de coordenadas) representa a situação onde a densidade de energia é nula e o volume V é constante. O lado direito do gráfico corresponde a densidade de energia positiva, o lado esquerdo a densidade é negativa. Valores positivos da coordenada θ representa universo em expansão; valores negativos representa universo em colapso.
Neste gráfico a coordenada ρ (rho) representa a densidade de energia do universo; a coordenada θ (theta) representa a taxa de variação temporal do volume total V do universo. Elas estão relacionadas pelas equações da relatividade geral. O gráfico mostra as possíveis soluções dessas equações. Cada curva representa uma solução, isto é, um dado comportamento do universo.
Além do ponto especial A (que representa o universo vazio de Minkowski) aparecem dois pontos especiais, representados respectivamente por B+ e B–.
Algumas curvas saem desses pontos e outras nele chegam. As primeiras significam que o universo teve um começo para um valor de densidade finita e com uma expansão finita. Isso é completamente distinto dos modelos de Friedmann que descrevem modelos de universo começando com densidade infinita e expansão infinita.
Referências
- Jacques Merleau-Ponty: Cosmologie du vingtième siècle (Ed. Gallimard, 1965).
- Prigogine: Physique, temps et devenir (Ed. Masson, 1982).
- Novello: Cosmos et Contexte (Ed. Masson, 1987).
- Maurice Merleau-Ponty : A natureza (Ed. Martins Fontes, 2006).
- Alain Supliot : La solidarité, enquête sur un principe juridique (Ed. Odile Jacob,2015).
- Ernst Mayr: Biologia, ciência única (Ed Cia das Letras, tradução de Marcelo Leite, 2005)