Renascimentos: do resgate da Antiguidade à emergência de um saber híbrido
“Em êxtase estamos.
Embriagados sim, mas de um vinho
que não se colhe na videira;
O que quer que pensem de nós
em nada parecerá com o que somos.
Giramos e giramos em êxtase.
Esta é a noite do sama
Há luz agora.”Rumi
Nossa era emerge de uma longa jornada dos saberes. O que se passa?[1] No início do processo civilizatório oficialmente reconhecido pela História canônica, nota-se nas sociedades babilônicas, egípcias etc. uma amálgama ao longo do campo social: filosofia – que surgiu antes da grega (NOGUERA, 2015) – religião, política, arquitetura etc. Com o advento da filosofia grega, inicia-se um processo mais intenso que chamaremos aqui de separatismo. De um lado, o que hoje chamaríamos de filosofia e ciência; do outro, os aspectos místicos: o mito e o rito. Ainda que tal separação não fosse tão evidente no início – com filosofias de aspectos místicos, como Pitágoras e, de certo modo, Platão ̶ o racionalismo acabou sendo uma tardia herança grega, ainda que a filosofia oriunda da Grécia Antiga era frequentemente influenciada pelo pensamento indiano via o comércio pela Pérsia (MCEVILLEY, 2002).
É justamente com Platão com sua ontologia marcada pela separação entre um Mundo das Ideias transcendente e um Simulacro imanente que se dá uma grande separação que ecoa, transformada em, respectivamente, cultura e natureza. A divisão platônica ecoa no Deus criador separado do mundo na Escolástica, nas naturezas diversas do corpo e da mente em Descartes e, finalmente, no desencontro entre a Coisa em Si e a mente em Kant (JOB, 2013).
Todavia, ao longo do pensamento ocidental, cultivavam-se pensadores cuja obra não se curvava ao separatismo e a lista está longe de ser pequena: Heráclito, os estoicos, Plotino[2], os magos herméticos como Bruno, Spinoza, Leibniz (ainda que algum Deus transcendente sobrevivesse de algum modo à sua obra), Tarde, Whitehead, Bergson, Deleuze e tantos outros. Fica claro o quanto há de ressonância conceitual entre magia, filosofia e ciência entre alguns desses autores e também, historicamente, é notória a influência da magia hermética e da alquimia na ciência do Renascimento, via Paracelso, Bruno e Kepler. Na figura de Newton, com sua confluência entre alquimia, astrologia, teologia, filosofia, matemática e física que constituem uma obra única, unificadora. No entanto, a publicação em vida apenas das obras científicas contribui enorme e ironicamente para um mundo cada vez mais separado em sua cosmovisão.
Hoje, vivemos as ruínas do separatismo em nossa forma de nos apreendermos enquanto seres cósmicos (nos sentimos separados do cosmos), em nossa linguagem (separação entre significado e significante, entre sujeito e objeto), ou seja, experimentamos a separação entre cultura e natureza. De outro lado, pensadores da imanência estão cada vez mais presentes e sendo recuperados. Fala-se muito na interdisciplinaridade (a relação entre saberes) e até na transdisciplinaridade (a emergência de um saber híbrido a partir da relação entre saberes).
Nossa era, que valoriza, em certos aspectos, a inter e transdisciplinaridade, nos remete a um novo Renascimento. As instabilidades social, política, econômica, religiosa e epistemológica nos permitem resgatar saberes antigos, problematizar os desdobramentos do Iluminismo e do Racionalismo e construirmos agora o melhor de dois (ou vários) mundos. A Revolução Científica e seu afã representacional recortou uma faixa da realidade e a decretou como única. Disso resultou controle das mentalidades e tecnicização do mundo, culminando no que hoje chamamos de medicalização da vida: para suportar o concretismo do mundo, retirado de seu encantamento, tomam-se drogas legais e/ou ilegais para suportá-lo e fazer o seu jogo infinito de consumo e de imanentização do controle, ou seja, eu mesmo me endivido de contas de celular, plano de saúde, internet, cartão de crédito etc. e me encarrego de fazer parte de um sistema de trabalho eterno e reflexão mínima. Vivemos uma guerra de realidades: de um lado o mundo iluminista, aparentemente apartado de invisíveis, e de outro, um mundo em que se cocria a realidade. É preciso enfatizar que o controle mais sutil e, no entanto, mais implacável é a crença na separação de natureza e cultura, ou seja, a produção infinita de dualidades. Elas não existem em si, mas a impressão dessa separação já causa grandes danos na vida.
Para dar um passo rumo à exercitação dessa cocriação da realidade, será preciso criticamos o transdisciplinar em um âmbito: pode-se evocar um pensamento transdisciplinar sem praticá-lo, em outras palavras, pode-se viver disciplinarmente – o que é deveras comum – e adotar um discurso transdisciplinar, caindo, mais uma vez, no separatismo. Propomos em um (I)manifesto (JOB, 2013) os chamados transaberes: o transdisciplinar aplicado à vida. É nesse âmbito que se evidencia toda a nossa fraternidade e ressonância profunda com a obra do antropólogo Tim Ingold (2015): “não é só um fio, mas um certo agregar de fios da vida”, no sentido que os transaberes são esse agregado.
Quando, de saída, evocamos uma prática do conhecimento, pensar-devir, ou seja, intuir, no sentido do agenciamento Spinoza-Bergson feito por Deleuze (no que podemos acrescentar – sobretudo na ressonância com Spinoza – alguns iluminados do Oriente como Ramana e Nisargadatta): intuição como apreensão da imanência, seu Um e múltiplo simultaneamente, e tal fato nos remete a uma Ética cósmica, alegria, aumento de potência. Aliás, preferimos gargalhada cósmica: um alegre apreender de que somos Cosmos, enquanto coágulo cósmico, agenciado por toda a imanência, ainda que esse “sistema”, em devir, seja por demais instável[3].
Cabe agora a questão: como seria um conceito oriundo dos transaberes? Nas ressonâncias estabelecidas por nós ao longo do campo magia-filosofia-ciência, emerge um conceito que possui características de todos os outros: o vórtex. Termo oriundo da hidrodinâmica, mas que não se satisfaz nela, visto que ali apenas se verificou uma faixa do vórtex. O vórtex é, simultaneamente: puramente intensivo (abandonando as categorias de atual e virtual ou de tempo e espaço “puros”, ainda que, ao dilacerar o vórtex, ele pode apresentar características extremamente temporais e espaciais, mas sua pureza nunca se dá completamente), autossimilar e auto-organizado (ainda que esteja em devir mais selvagem), ubíquo, anímico (no sentido que não há ausência de vida e dinamismo, apenas níveis de [des]organização) e instável.
Como o vórtex foi apreendido nos saberes ao longo do tempo? Já se lidava com aspectos do vórtex, ainda que os saberes não tivessem a clareza necessária, como no antigo conto indiano dos sábios cegos diante do elefante, onde cada um apreendia “pedaços” do elefante. Os saberes apreendem o vórtex das seguintes formas: a ciência o modela, a filosofia o ex-plica (des-dobra), a magia o modula (conjura e intensifica), a arte o evidencia, a ética o cultiva, o amor o multiplica. Cabe-nos, à luz dos transaberes, vivenciarmos o vórtex.
Como seria vivenciar o vórtex? Vamos colocá-lo no nexo[4] de algumas dualidades que ainda nos assolam, por exemplo, a vigília e o sonho. Sabemos que diversas tradições apontam o sonho como uma realidade, uma extensão de nosso mundo. Vortexeando esse nexo, apreendemos o sonho como um devir da vigília (ou vice-versa, como propunha o sábio taoísta Zhou com seu sonho – intercambiável ̶ com a borboleta), em que o sonho pode cultivar novas criações na vigília, até estabelecer a obscurecida obviedade de que as diferenças que se instalam ao longo do sonho e da vigília são apenas de densidade, gradações, modulações, assim como no real e o imaginário, na palavra e a coisa, no pensamento e o pensado e, finalmente, urge vortexear o eixo entre ontologia e epistemologia. O vórtex é, por assim dizer, epistemontológico.
A realidade em vórtex que apreendemos muda nossa perspectiva também em relação a qualquer tipo de patologização, legitimando as diversas possibilidades de vida, tornando relevante apenas cultivar o que é ético, em termos spinozistas: suscitar o bom encontro, o aumento de potência, a alegria. A dinâmica da melancolia, que até o século XVII era uma necessidade dos sacerdotes para se isolar e promover o entusiasmo (ser tomado por Deus), foi fractalizada em transtorno bipolar, onde a melancolia é indesejável – afinal, em estado melancólico não se “produz”, ainda que seja uma ótima oportunidade para aprender a cocriar outro mundo – e a alegria se tornou uma patética ação na vida, deteriorada em “mania”. Ainda no contexto psíquico, permite-se que a criança tenha amigos imaginários; no entanto, no adulto isso é considerado ilusão ou até mesmo alucinação, um estado psicótico.
O vórtex traz de novo para a vida os invisíveis, o oculto e, sobretudo, o inominável. O sobrenatural só é considerado enquanto tal em uma cultura (devidamente entendida como separada da Natureza) que de tanto separar deixa de lado (ou não apreende em uma cognição limitada) certos elementais, que são, por assim dizer, partes imanentes da Natureza. Esses elementais começaram a adquirir alguma “visibilidade” quando a Mecânica Quântica postulou a coexistência da partícula e da onda. A onda – que, vale dizer, é imanente à partícula – “abriga” esses elementais. Em outras palavras, o sobrenatural é um preconceito da Transcendência, que vê seus “objetos” (devidamente separados do sujeito) “sobre” as coisas. Mas passado quase um século da equação de Schrödinger, os desdobramentos da MQ ainda carecem de vortexalização, ainda que isso tenha sido preconizado por Mario Bunge na formulação de seu conceito quanton (JOB, 2013).
Minha sobrinha acordou na madrugada com medo do Lobo Mau, versão infantil de um elemental. Não aceitando a assertiva da mãe de que o lobo não existe, fato completamente alheio à experiência da criança que vivenciou o Lobo, o pai, por sua vez, vortexeou a situação simplesmente afirmando que o apartamento deles era feito de tijolos! A menina, claro, dormiu o sonho da imanência percorrida ao longo do real e imaginário, da natureza-cultura, ou melhor, do vórtex.
Mas o exemplo acima não deve ser apreendido apenas como um caso de boa vontade do adulto. Vejamos os casos em que o Coringa, nêmesis de Batman, enquanto elemental, perturba (no caso de Jack Nicholson, que alertou Heath Leadger acerca do problema em relação ao personagem) e até assassina (Leadger) os atores que o vivem no cinema, além de influenciar uma chacina em uma sala de exibição no Colorado (EUA) quando o filme de seu universo foi exibido (FERREIRA, 2015). A partir de quando assumimos que o pensamento é matéria-energia, ele possui um nível mínimo de densidade, começando a influenciar a realidade, seja na forma de uma religião (o cristianismo, o islamismo etc., cujos embates produzem consequências políticas nefastas), de uma ideologia (marxismo, feminismo etc.) ou como uma entidade “ficcional” como no caso do Coringa. O Palhaço do Crime, enquanto entidade, afeta os que lidam mais intensamente com ele, gerando desdobramentos trágicos. No entanto, a vortexalização desse processo gerou um desdobramento inesperado: a ubiquidade do Coringa. Alçado cada vez mais ao estatuto de ícone pop, ele está presente em camisetas, canecas, bonecos e toda sorte de produtos. A entidade outrora temida passou a se tornar exemplo de anarquia desejável: queimar dinheiro, ser agente do caos, problematizar a ordem perversamente estabelecida, ou simplesmente algo que ri diante da sisudez ou concretismo do mundo. Uma forma inesperada de lidar com a problemática do Coringa. O que gerou outra forma de espetacularizar o acompanhamento das filmagens com o atual ator que o imprime nas telas, Jared Leto. Nesse caso, a possessão feita pelo Coringa virou uma piada – duplamente irônica – exercida pelo estúdio e pela mídia: todos querem saber a nova galhofa de Leto com seus colegas no filme.
Vivemos, pois, uma era singular em que emerge um novo Renascimento: aos avanços científicos e tecnológicos se associam à assimilação de invisíveis, elementais, o inominável, cocriando um mundo mais plural, um mundo de transaberes. O vórtex é, simultaneamente, a epistemontologia desse mundo e a sua ferramenta privilegiada de dinamizar esse processo. Vortexemo-nos!
Bibliografia
FERREIRA, Wilson Roberto Vieira (2010) “O Coringa e o Sincromisticismo” in: http://cinegnose.blogspot.com.br/2010/05/o-coringa-e-o-sincromisticismo.html (acesso em 24/09/2015).
INGOLD, Tim, (2012) “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais” in: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832012000100002&script=sci_arttext (acesso em 12/03/2015).
JOB, Nelson, Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica, 1ª ed. Ed. Cassará, Rio de Janeiro, 2013.
MCEVILLEY, Thomas, The Shape of Ancient Thought: comparative studies in Greek and Indian philosophies. New York, Allworth Press, 2002.
NOGUERA, Renato, Sambando para não sambar: afroperspectivas filosóficas sobre a musicidade do samba e a origem da filosofia, em (LOPES SILVA – org) “Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba”, Hexis, Rio de Janeiro, 2015.
[1] O que resumiremos a seguir está desenvolvido no nosso artigo “Confluências entre magia, filosofia e ciência” publicados nesta mesma revista: https://cosmosecontexto.org.br/?p=1249
O restante deste artigo pode ser considerado também uma espécie de continuação do artigo anterior.
[2] Se, ontologicamente, havia a distinção entre não-ser, anima mundi e imanência em Plotino, o neoplatônico os considerava contínuos.
[3] Essa instabilidade remete ao nosso conceito de transcendência a posteriori (JOB, 2013) que não desenvolveremos aqui.
[4] É importante colocar que o ato de vortexear o nexo não deve se tornar um método. O vórtex suscita uma cocriação permanente, sem a prioris, fazendo com que cada problema exija uma nova criação, outra vortexalização.