Montaigne e a justiça no Renascimento: a física e a metafísica do eu
Antes de abordar propriamente meu tema, em um evento como este, em que a física ocupa um lugar central, devo dizer que, em geral, não encontramos em Montaigne uma física (nem uma metafísica), a não ser nos termos montaignianos em que o estudo de si mesmo constitui o núcleo dinâmico: “Estudo a mim mais do que a outro assunto. Essa é minha física, essa é minha metafísica” (III, 13, p. 434). Afinal, para ele, o pensamento sobre si mesmo é o centro unitário das mais diferentes experiências humanas e pode permitir algum tipo de exatidão, pois o eu pode se conhecer, observando-se, mais do que observando o outro. Todavia, sobre a cosmologia em Montaigne, o que se depreende de sua escrita é um estado permanente de abertura e de suspeição com relação aos modelos estabelecidos (e mesmo aos novos), pois chega a afirmar que tanto o geocentrismo quanto o heliocentrismo são dois sistemas rivais que apresentam problemas, na medida em que pretendam desvendar a verdade indiscutível sobre o cosmos. Vale a pena assinalar, porém, que o ensaísta saúda o novo conhecimento cosmológico; o que ele rejeita é a ideia de que o ser humano, finalmente, tenha decifrado definitivamente o cosmos. Ou seja, Montaigne questiona toda tentativa de estabelecer pela razão princípios fixos e imutáveis. Julga que sempre haverá a possibilidade de surgir um pensamento novo que irá se chocar com o que está em voga:
O céu e as estrelas moveram-se durante três mil anos; todo o mundo havia acreditado nisso, até que [C] Cleantes de Samos – ou, segundo Teofrasto, Nicetas de Siracusa – [A] decidiu afirmar que era a terra que se movia [C] pelo círculo oblíquo do zodíaco, girando ao redor de seu eixo; [A] e, em nossa época, Copérnico fundamentou tão bem essa doutrina que a utiliza regularmente para todas as consequências astronômicas. Que concluímos disso, senão que não nos deve importar qual dos dois está certo? E quem sabe se uma terceira opinião, daqui a mil anos, não derrubará as duas anteriores? (II, 12, p. 356).
No que se refere às novas descobertas da física, em seu tempo, que pretendem solapar o conhecimento prático dos antigos mediante novos argumentos ‘indiscutíveis’, Montaigne é reticente, pois considera que nossas convicções giram facilmente ‘como um catavento’. Constata a vanidade da razão – instrumento da ciência – a insignificância do ser humano em relação ao universo e o quão a ação do homem é diminuta no cosmos, mesmo comparado aos animais (II, 12). Afirma que prefere seguir a experiência em vez da teoria, uma vez que a razão consegue – mediante ‘demonstrações irrefutáveis’ – combater, bem como subverter, a realidade da experiência e a evidência dos fatos:
Um homem desses que professam novidades e reformas físicas dizia-me, há não muito tempo, que todos os antigos haviam se enganado evidentemente sobre a natureza e os movimentos dos ventos, o que ele me faria tocar claramente com as mãos, se eu quisesse ouvi-lo. Depois que tive um pouco de paciência para ouvir seus argumentos, que tinham plena verossimilhança, perguntei-lhe: “Como então os que navegavam sob as leis de Teofrasto iam para o Ocidente quando eles sopravam para o levante? Iam de lado ou recuando?”. “Era a fortuna, respondeu ele; tanto é assim que eles se enganavam”. Repliquei-lhe então que preferia seguir os fatos em vez da razão (II, 12, p. 358).
Nosso autor parece pensar o modelo de um universo infinito com uma pluralidade de mundos. Não há um porto seguro universal, que dê estabilidade à sociedade, mas essa estabilidade, sem a qual a sociedade perece, é necessária; daí a importância dos costumes. Desse modo, além de desconfiar das diferentes interpretações cosmológicas, ele duvida dos estudiosos que pretendem dar a última palavra sobre a cosmografia, por exemplo. Montaigne pergunta: se grandes pensadores erraram anteriormente acerca da cosmologia, quem nos garante que também não há engano e equívocos nos novos conhecimentos? Nessa sua argumentação ele alude ao caso de Ptolomeu:
Ptolomeu, que foi um grande personagem, havia estabelecido os limites de nosso mundo; todos os filósofos antigos pensaram dominar-lhe a medida, exceto por algumas ilhas distantes que podiam escapar a seu conhecimento; teria sido pirronizar, há mil anos, por em dúvida a ciência da cosmografia e as ideias que eram aceitas por todos; [B] era heresia admitir os antípodas; e eis que em nosso século acaba de ser descoberta uma extensão infinita de terra firme – não uma ilha ou uma região específica, mas uma parte com extensão mais ou menos equivalente à que conhecemos. Os geógrafos desta época não deixam de garantir que doravante tudo está descoberto e tudo está visto, […]. Se outrora Ptolomeu se enganou quanto aos fundamentos de seu raciocínio, resta-me saber se não seria tolice confiar agora no que estes aqui dizem; [C] e se não é mais plausível que este grande corpo que chamamos de mundo seja uma coisa muito diferente do que julgamos (II, 12, p.358-359).
Em suma, acerca do universo, Montaigne requer um pensamento aberto que recuse a rigidez do pensamento cósmico. Não é possível ao ser humano alcançar nada estável no universo e conhecemos apenas fenômenos que estão em perpétua mutação. O autor acrescenta nesta direção: “Ora, se há vários mundos, como Demócrito, Epicuro e quase todos os filósofos pensaram, como podemos saber se os princípios e as regras deste atingem igualmente os outros? Talvez eles tenham outra aparência e outras regras de governo” (II, 12, p. 288). O nosso saber é uma parte bem pequena de nossa ignorância:
O homem mais sábio que já existiu, quando lhe perguntaram o que sabia, respondeu que sabia que nada sabia. Ele estava comprovando o que se diz: que a parte maior do que sabemos é a menor do que ignoramos; ou seja, isso mesmo que pensamos saber é uma parte, e bem pequena, de nossa ignorância (II, 12, p. 252).
Cardoso (1992b) escreveu que Montaigne, com seu procedimento, teria inventado para o domínio da interioridade, ou da subjetividade, um método correspondente ao caminho experimental que começavam a trilhar, em seu tempo, as ciências da natureza, e acrescenta ainda que a reflexão, que se inscreve na obra, inspeciona os relevos e marcas da identidade do escritor, enredados no seu movimento mesmo de abertura para o mundo, na aplicação de seu pensamento às mais diversas matérias, nas múltiplas modalidades de sua atuação: “quer descreva, aprecie ou especule, quer deseje, rejeite ou delibere, em vista de qualquer assunto ou objeto, o autor observa-se e testemunha a si mesmo, pois manifesta nesses atos algum traço de sua constituição […] qualquer ação é apropriada para dá-lo a conhecer” (CARDOSO, 1992b, p. 52-53).
Após essas considerações, ressalto, porém, que não entrarei na profundidade da discussão cosmológica, me limitando ao meu assunto, acatando o conselho prudente do ensaísta:
Eu gostaria que cada qual escrevesse o que sabe e na medida em que sabe, não apenas nisso, mas em todos os outros assuntos; pois alguém pode ter um conhecimento ou experiência específica da natureza de um rio ou de uma fonte e sobre o restante só saber o que todos sabem. No entanto, para divulgar essa migalha, ele se disporá a descrever toda a física. Desse vício surgem muitos grandes inconvenientes. (I, 31, p. 307).
Vamos, então, ao meu tema. Os Ensaios foram lidos possivelmente, no Brasil, desde o Romantismo na busca de uma identidade brasileira. Assim, não é estranho que a influência do espírito de tolerância de Montaigne, em nosso país, seja percebida na iniciativa de se criar uma lei contra a discriminação racial, conhecida como Lei Afonso Arinos. Na realidade essa lei constitui o primeiro código brasileiro a incluir entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele (SOUZA FILHO, 2012). De acordo com Villey (2005), o advogado Montaigne tem consciência de estar em oposição com seu século. Nosso autor critica o fundamento da lei, a multiplicação das leis, bem como as interpretações da lei. O debate que Montaigne realiza acerca da lei e da justiça se apresenta aos leitores como um problema paradoxal: a base da lei é frágil, mas é necessário obedecê-la, em razão do bem público. De fato, há este paradoxo em Montaigne: se as leis e os costumes não são portadores de nenhuma ‘verdade’, como evidencia a crítica montaigniana, por que obedecê-las e acatar os costumes? Por que a preocupação com a justiça e com a equidade, se não há um fundamento indiscutível para isso?[1]. Iremos discorrer sobre tais questões ao longo deste texto. É no exercício de seu movimento crítico que o ensaísta recoloca a fragilidade da condição humana. Com o seu radicalismo habitual, Montaigne formulou o problema do valor das leis morais: se há apenas opiniões e costumes, uns contrários aos outros, as condutas se equivalem. Entretanto, formulado o problema, ele mesmo buscou a resposta: a dúvida acerca do valor do dictamen da consciência fundamenta-se em considerações exteriores. Na realidade, o trabalho de desmistificação das leis, contido nos Ensaios procura mostrar que tanto a obediência cega às leis quanto a recusa das leis são prejudiciais e pretensiosas. Como mostra Berns (2000), as duas posições são rejeitadas por Montaigne, em razão da paix publique[2]. Assim, neste estudo, nossa ideia não é aprisionar Montaigne, e sim tentar acompanhá-lo em seus quadros móveis e no movimento de seu pensamento, elegendo como objeto mais direto apenas dois capítulos dos Ensaios. Embora cada um deles possa ser tomado como objeto de reflexão, nós elegemos capítulos cujo teor interessa mais ao foco deste trabalho, em especial Do costume e de não mudar facilmente uma lei aceita (I, 23) e Da experiência (III, 13).
Montaigne discute com propriedade lei e justiça. Durante a maior parte de sua vida, o ensaísta testemunha a contradição das leis e subversões, que redundam em covardias, combates, massacres e exações diversas, no caos ideológico e político francês. Por isso, deixa claro que “não apenas leu, mas viu” (I, 31, p. 302). Com 16 anos de experiência profissional como conselheiro na corte de Périgueux e magistrado no parlamento de Bordeaux, Montaigne escreve em primeira mão sobre os aspectos práticos da jurisprudência. Saliente-se também sua atuação como prefeito da cidade de Bordeaux, em dois mandatos. Dentro de seu contexto contemporâneo, os Ensaios compartilham muitos dos mesmos interesses historicistas dos humanistas legais; um grupo diversificado de escritores, juristas e magistrados, cujos estudos da lei, particularmente o direito costumeiro, mudaram radicalmente as percepções do passado e sua relação exemplar com seu presente.
No entanto, a ‘indiferença’ professada de Montaigne para a profissão de advogado foi levada excessivamente a sério (ou mal compreendida) tanto pelos seus contemporâneos como pelos estudiosos posteriores, que tenderam a negligenciar a dimensão jurídica dos Ensaios, até o estudo pioneiro de André Tournon na década de 1980 (FARQUHAR, 2002). Desde então, a influência do humanismo jurídico nos Ensaios tem sido estudada, semeando questões críticas para uma melhor compreensão do discurso jurídico e sua interação com a ética.
Minha leitura tentará acompanhar Montaigne no movimento interno de sua escrita paradoxal. Mais precisamente, o objetivo deste trabalho é examinar apenas alguns pontos da reflexão montaigniana, no campo do Direito. Significativamente, o ensaísta expande os horizontes da sua investigação sobre a lei para incluir a vida comum e um agudo senso de humanidade compartilhada, em contraste com uma ética aristocrática de honra e de valores militares. É certo que Montaigne tece críticas mordazes à lei, especialmente em Da experiência. Isto pelo fato de que os Ensaios como um todo estão profundamente comprometidos com uma tradição de ‘interpretatio scripti’, ou de interpretação das leis, porém, mais ainda, com a interpretação equitativa das leis.
Montaigne chama a atenção para um problema que permanece atual quando reconhece que qualquer documento legal é incapaz de tratar todas as circunstâncias ao longo do tempo. Assim, mostra que o juiz tem à sua frente uma infinita variedade de circunstâncias humanas para acomodar às regras gerais. Ou, como escreve Gadamer, o juiz tem a tarefa hermenêutica de adaptar o significado do texto à situação concreta em que o texto está se referindo ou de compreender o texto de uma maneira diferente como a ocasião exige. É nesta direção que argumenta Farquhar, quando entende que o princípio da equidade ajuda a definir a tarefa da escrita de Montaigne e fornece, desse modo, um conceito central para seu projeto ético (FARQUHAR, 2002). Sem dúvida o ensaísta conecta sua interpretação com as práticas sociais e com sua experiência pessoal. Observe-se ao longo dos Ensaios, a propósito disso, os inúmeros exemplos que arrola a partir do que vivenciou na condição de magistrado, de conselheiro e de prefeito.
Em termos de contexto, a crítica da legislação de Montaigne é uma espécie de resposta a uma ruptura do sistema jurídico no final do século XVI, na França, durante os problemas devastadores das guerras religiosas. A fragmentação do direito consuetudinário francês, e as antinomias do direito, tinham criado um sistema desigual, agravando a crise de autoridade política. Com isso a demanda para a reforma legal cresceu, levando juristas, pensadores e políticos a debateram um conjunto de tópicos em matéria de justiça, equidade, conhecimento e sabedoria. De seu lado, Montaigne entra neste debate não como um magistrado, para defender um ideal de justiça, mas como um cético pirrônico, para dissipar ilusões de que leis mais numerosas e ‘melhores’ irão fornecer um remédio para a França destruída.
Mesmo a um leitor iniciante é possível enxergar, nos Ensaios, a proeminência de uma crítica ao direito (e à medicina), que está semeada por todos os Ensaios, por assim dizer. De uma perspectiva cética, o ensaísta submete todas as leis, todos os Estados, todas as crenças, todos os partidos, todas as tradições, todas as autoridades a um exame impiedoso, e celebra os canibais que vivem sem juízes e sem leis[3].
Remete-se à amizade como modelo da sociedade perfeita (na qual os indivíduos se mantêm unidos e em paz não porque são coagidos a isso pela força das leis, mas porque mantêm laços de amizade) para lembrar o problema da convivência com o diferente, com a alteridade. A magnanimidade, a moderação e o destemor não se contrapõem à civilidade e ao respeito pela alteridade, mesmo na guerra. O próprio ato de descrever o fenômeno[4] que possibilita a interpretação do pensamento político de Montaigne, especialmente quando, numa abordagem que inova o ceticismo, dá estatuto filosófico a temas que até então não eram tratados no âmbito da filosofia, cuja metafísica despreza a vida, a prática e o corpo.
O autor se diverte com aqueles que não conseguem se desvencilhar da imagem pública, nem mesmo quando estão a sós. Chama a atenção, entre outras, para autoridades que dão a impressão que estão acima dos seus semelhantes e que não têm necessidades humanas. Por isso escreve: “E os reis e os filósofos defecam, e as senhoras também. As vidas públicas estão comprometidas com a cerimônia; a minha, obscura e privada, desfruta de toda permissão natural […]” (III, 13, p. 453). Isto ocorre devido ao fato de que, o poder político tem todas as possibilidades de corromper a muitos, mas – como se vê – o ensaísta considera que a maior parte das funções públicas também tem algo de cômico: “[B] Vejo homens que se transformam e se transubstanciam em tantas e novas criaturas e tantos novos seres quantos cargos assumem, e que se fazem prelados até o fígado e os intestinos, e levam seu cargo até para a latrina” (III, 10, p. 341). Por isso escreve: “eu, o primeiro, por meu ser universal, como Michel de Montaigne, não como gramático ou poeta ou jurisconsulto.” (III, 2, p. 28). Ou seja, ele não se apresenta numa identidade a ser desempenhada, mas na sua identidade pessoal. Ele parte do particular para o geral e do individual para o social.
Assim argumentaremos que, na ótica de Montaigne, o exame racional das leis, dos governos e dos costumes (I, 23) revela suas precariedades; são produtos humanos históricos e não têm nenhum fundamento natural ou sobrenatural (III, 13). Na interpretação de Berns (2000) acerca da questão da origem da lei e da gênese histórica do poder, em Montaigne, somente encontramos a fragilidade da origem da lei ou do seu nascimento fortuito[5]. A autoridade das leis em um Estado vem da antiguidade de seu exercício; é esta a base delicada da obediência política. Porém, ainda que tal noção se origine de uma base tênue, é muito perigoso buscar sua origem, pois, na base, estão os costumes – e não se pode mudar os costumes tão facilmente: a autoridade das leis provém pelo fato de existirem e terem passado para os costumes; é perigoso fazê-las retornarem à sua origem. Como os rios que se avolumam com o rolar das águas, elas adquirem importância e consideração à medida que se aplicam. Se remontarmos o curso até a nascente, veremos um insignificante filete de água (II, 12). O ensaísta distingue ‘lei’ de ‘justiça’ (TOURNON, 2005), uma vez que nem sempre essas duas instâncias podem coincidir. De maneira que as leis devem ser obedecidas não porque são justas, mas porque são leis. É por isso que o autor registra a fragilidade delas, visto que se assentam apenas em sua antiguidade, e, em vários casos, foram feitas por pessoas contrárias à igualdade:
Ora, as leis conservam seu prestígio não por serem justas, mas porque são leis. Esse é o fundamento místico de sua autoridade; não tem outro. [C] Isso lhes é muito proveitoso. Frequentemente são feitas por tolos, mais frequentemente por pessoas que devido à aversão pela igualdade têm falta de equidade, porém sempre por homens – autores vãos e incertos (III, 13, 433-4).
Em seguida o ensaísta, escreve sobre o quanto o desajuste e disformidade das leis prestam auxílio à desordem e corrupção que se veem em sua dispensação e execução (III, 13). Sendo assim, Montaigne se apresenta como um crítico temível, que destrói as instituições, e, simultaneamente, como um político prudente, registra que há a necessidade da obediência política, por imperfeitas que sejam as instituições e as ações dos governos, e sustenta que a autoridade da lei não depende da sua justiça, ainda que tenha escrito que “a obediência não é total nem tranquila naquele que raciocina e argumenta” (II, 17, p. 485). A política é um componente da vida social, a paixão política, própria dos homens, e a justiça, “engendrada para a sociedade e a convivência dos homens” (II, 12, p. 250). O autor reconhece que, a depender do partido que toma o poder, mudam as referências, os pesos e as medidas. Assim, atos que constituíam crimes passíveis de pena de morte tornam-se legais e, se o partido adverso triunfar, as ideias contrárias prevalecem e nossa justiça passa a ser injustiça. Usam-se critérios diferentes para as mesmas coisas ao se tratar com aliados políticos ou com adversários. De modo que ainda que escolha um partido, em defesa do bem comum, Montaigne reivindica o direito de criticar todos os partidos (inclusive o próprio rei), bem como o de admirar suas qualidades (III, 10).
Montaigne acompanha Pirro e Sexto Empírico na crítica da razão[6]. Para Montaigne, se permanecermos no âmbito exclusivo da razão, podemos destruir a sociedade, uma vez que a esfera teórica que investiga o fundamento dos governos, a origem das leis, a legitimidade dos costumes não encontra nenhuma resposta definitiva, como mostra, por exemplo, a diaphonia dos partidos dos filósofos[7]. É aí que Montaigne introduz a ideia de que, do ponto de vista prático, é necessário garantir a ordem das coisas para que se possa viver[8]. Do ponto de vista da razão e da verdade, os governos, os Estados, as sociedades, as leis, a justiça e os costumes são igualmente bons ou ruins.
Com isso, uma das intenções de Montaigne é mostrar que, dadas as limitações da razão, a política não deve ser avaliada apenas do ponto de vista racional, mas também do ponto de vista de suas consequências práticas. Em razão disso, não pode ser alterada segundo os caprichos parciais dos partidos, das facções e das seitas, pois a razão não é capaz de penetrar nas coisas e descobrir seu funcionamento (II, 12), de modo que toda ação política elaborada pela razão traz uma série de consequências imprevisíveis. Assim, procuraremos mostrar que o ensaísta compõe uma crítica radical às instituições, mas, tendo em vista a paz pública, não as abandona; ao contrário, adere plenamente aos costumes por constatar que não há outra base melhor. Veremos que, dada a transitoriedade das certezas políticas, Montaigne entende, do ponto de vista político, que a tolerância é a atitude mais adequada e recomendada. Argumenta, porém, que não é uma boa política ir contra a natureza e os costumes; nem as leis nem as religiões devem contradizê-los. Segundo ele, em via de regra, a natureza humana é considerada desconhecida. Nesse debate, Starobinski (1992) registra:
Nada conheceremos de nosso ser, diz Montaigne. Mas, em outra parte: ‘O homem não pode ser senão o que é’. Por afastado que esteja da verdade essencial, o homem mantém sua posição entre aquilo que existe; e, por mais ‘insuficiente’ que seja a sua condição, não deixa de representar, bem ou mal, um modo particular do ser, o qual faz com que o homem seja o que é […] Se a natureza não pode ser conhecida no movimento das causas, pode ser aceita no sistema de seus efeitos. Não se trata mais de apreender o segredo da Natureza, mas de se deixar levar por ela. […] O homem não é, de todos os animais, o único que tem o poder de recusar e de contrariar a natureza? […] (STAROBINSKI, 1992, p. 205-6-7).
Nessa circunstância, há necessariamente muita imprudência e injustiça nas ações. A esses exageros Montaigne chama paixão política. A paixão política desmedida, a certeza absoluta e os sentimentos destrutivos ameaçam a paz pública. Até mesmo a pena requerida pela lei deve ser equilibrada, visto que, para ser mais eficaz, a punição deve ser feita sem cólera. O ensaísta tira, assim, lições filosóficas da paixão que embriaga, ofende e se encoleriza:
A filosofia quer que do castigo pelas ofensas sofridas eliminemos a cólera; não para que a vingança seja menor, mas, ao contrário, para que seja mais bem assestada e de mais peso; e parece-lhe que tal impetuosidade põe obstáculos a isso. [C] A cólera não apenas perturba como, por si, também cansa os braços dos que castigam. Esse fogo entorpece e consome-lhes as forças. [B] Como na precipitação […] a pressa dá rasteira em si mesma, entrava-se e se intercepta (III, 10, p. 336).
O autor pensa com apreensão a respeito do delicado fio do equilíbrio social. Conclui que as ‘nouvelletez’ ameaçam a sobrevivência da comunidade e trazem à tona as piores paixões. Ocorre daí que, conforme Montaigne, como o bem não sucede necessariamente ao mal, a inovação como um mal oprime um Estado e pode resultar em efeitos desagregadores, visto que a sociedade é um imenso edifício composto de tantas partes, de difícil equilíbrio:
Nada oprime um Estado como a inovação: a mudança apenas dá forma à injustiça e à tirania. Quando alguma peça cede, podemos escorá-la; podemos opor-nos a que a alteração e degradação natural a todas as coisas afastemo-nos demais de nossos começos e princípios. Mas aventurar-se a refundir uma tão grande massa e a mudar os alicerces de um edifício tão grande é próprio daqueles que para limpar apagam, que querem corrigir os defeitos particulares com uma confusão universal e curar os doentes com a morte (III, 9, p. 258).
OS COSTUMES E A LEI: a importância do equilíbrio social
Como já adiantamos, o objetivo deste artigo é examinar as leis vistas como artefatos, como produtos de prática social a ser apropriados como parte de um código cultural e aplicados à vida das pessoas. Nos Ensaios nós adentramos em um mundo de direito. Estes escritos traduzem as implicações do ceticismo de Montaigne no estudo da lei e da ética. Na realidade, é sabido o quão elevado é o grau de complexidade da obra de Montaigne por tratar de temas diversos, inclusive éticos, e ao mesmo tempo não firmar uma teoria acabada sobre suas compreensões acerca do fenômeno humano.
Adiantemos que a questão da lei, no Renascimento, é uma área de controvérsia mais do que uma área de investigação (TOURNON, 2005). De fato, porém, o direito ocupa uma posição estratégica na ética do Renascimento e o seu estudo possibilita um entendimento particular do passado e do presente, acerca das pessoas e das sociedades. Efetivamente, questões legais moldam a investigação ética de Montaigne quando estuda o comportamento humano por meio das forças normativas de tradição, diversidade e ordem, costumes, códigos e práticas culturais. No entanto, o ensaísta repetidamente lembra aos seus leitores que nós não escolhemos nossas leis. Nas páginas dos Ensaios, o costume e a lei não têm a autoridade de pronunciamento sagrado, mas, em vez disso, funcionam apenas como artefato cultural. Porém, os costumes decidem por nós as nossas formas práticas de justiça, não importa o quão arbitrária, desordenada e injusta. Ainda que Montaigne submeta a intenso escrutínio a ordem jurídica, as leis e os costumes, não sugere a desobediência; ao contrário, defende a obediência inquestionável da ordem costumeira, em razão da força da tradição. Ressalta que devemos obediência às leis, cuja única autoridade é que “elas são leis”.
Na realidade, Montaigne pensa o social como uma acomodação costumeira, soldada pela crença na legitimidade (naturalidade) desses costumes, de acordo com os assuntos públicos. Até mesmo as virtudes e os vícios, os interesses econômicos e conflitos são ajustados no equilíbrio social, como escreve no capítulo O lucro de um é prejuízo do outro (I, 22). Registra, aí, que o mercador só faz bem seus negócios por causa da devassidão dos jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquiteto, pela ruína das casas; os oficiais de justiça, pelos processos e contendas dos homens; mesmo as honras e a atividade dos ministros da religião provêm de nossa morte e de nossos vícios: “Nenhum médico se alegra com a saúde mesmo de seus amigos, diz o cômico grego, nem o soldado com a paz de sua cidade; e assim sucessivamente. E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo e descobrirá que a maioria de nossos desejos íntimos nasce e se alimentam às expensas de outrem (I, 22, p. 159-160). Para Montaigne, a possibilidade da vida política depende da dominação consentida e obedecida. As pessoas devem temer o braço da lei, porém só o temor não basta; é preciso que obedeçamos as leis por convicção interna e não tanto pelo medo. Efetivamente, Montaigne radicaliza quando escreve que tem medo de ter medo porque o inimigo mais letal do poder político não é a desobediência, visto que a obediência pode ser reposta pela mão do príncipe. O medo de ter medo parece querer escapar ao poder do príncipe, porque não consegue dobrá-lo nem mesmo aquela violência que almeja incutir o medo pelo terror. Desse modo, a mais efetiva ação do príncipe não é a da força, nem a da violência, nem a da mentira:
E nunca houve tempo e lugar em que existisse para os príncipes recompensa mais certa e maior oferecida à bondade e à justiça. O primeiro que decidir elevar-se em crédito e favor trilhando esse caminho, estou muito iludido se facilmente não superar seus companheiros. A força, a violência pode alguma coisa, mas não sempre tudo (II, 17, p. 471).
Às vezes o recurso à lei visando reparar um ato de injustiça pode implicar em um aumento da injustiça sofrida. Num contexto em que tanta injustiça é feita, Montaigne procura evitar ser réu em processos judiciais, renunciando até a alguns direitos: “Quantas vezes fiz para comigo uma injustiça evidente, a fim de evitar o risco de recebê-la ainda pior dos juízes, após um século de problemas e de práticas suja e vis, mais contrárias à minha natureza do que o são a tortura e a fogueira?” (III, 10, p. 350). Em razão disso, não considera que a medida da dominação seja ilimitada, ainda que o Estado tenha o recurso da prisão, da tortura e da ignomínia. Ao contrário, repele o uso de tais práticas. Para ele, a tortura é um expediente desumano, inútil e cheio de risco que parece antes pôr à prova a resistência à dor do que a sinceridade. Quem a não pode suportar esconde a verdade tanto quanto quem a suporta: “[B] Disso advém que aquele que o juiz torturou, para não fazê-lo morrer inocente, faça-o morrer inocente e torturado” (II, 5, p. 56). Escrever isso lhe trouxe represálias, visto que a denúncia da lei e da tortura nos Ensaios fez muitos parlamentares tentarem vingar-se do seu autor (LACOUTURE, 1998). Além dos debates entre o Estado central e as particularidades das províncias, é, sobretudo, no campo da política ou, em todo caso, das relações entre o parlamento e a autoridade real, que o magistrado Montaigne desenvolve suas atividades até certo ponto perigosas. Porém, sua consciência o enche de segurança e de confiança em suas ações, pois registra: “[B] E posso dizer que em muitos perigos caminhei com passo bem mais firme, devido ao conhecimento íntimo que tinha de minha vontade e da inocência de meus desígnios” (II, 5, p. 55).
O centro dos conflitos é o partido protestante, que traz à baila a questão cética e o debate acerca do ‘critério para decidir o critério’ (POPKIN, 2000). Como desdobramento disso, Montaigne discute o fundamento místico das leis. Ajuíza que se estivéssemos de posse de um critério de verdade, poderíamos encontrar as premissas de um sistema metafísico de conhecimento verdadeiro, o que, por sua vez, nos fornece os fundamentos de um sistema físico de conhecimento verdadeiro (POPKIN, 2000). Mas é com isso, exatamente, que Montaigne não concorda. Conclui que, dada a fragilidade da ordem legal, quando a verdade política ignora a utilidade política, sem atinar com suas consequências, seu resultado é politicamente desastroso, no sentido de que agrava os males, fomenta a desagregação social e a guerra civil:
Se não convém ‘despelar’ abertamente argumentos inválidos embora úteis, especialmente quando está em jogo a paz pública, isso parece se reportar, em última instância, àquilo que Montaigne vai denominar o ‘fundamento místico’ das leis: a vida em sociedade se rege por uma diversidade de ‘pressupostos’ aceitos por força do costume e, a rigor, racionalmente injustificados (ao menos, não demonstrados como verdades absolutas) num grau muito maior do que os homens estão comumente dispostos a reconhecer (EVA, 2007, p. 119).
Montaigne não somente confere aos Ensaios a dimensão subjetiva e provisória, como também se contrapõe às noções abstratas e genéricas e aponta a experiência de si como o único saber capaz de orientar, de alguma maneira, nossas ações, sempre singulares, circunstanciadas, e referidas a situações particulares. Não podemos identificar com segurança nossas afecções e disposições, devido à sua complexidade e indeterminação, e não podemos determinar nossos movimentos internos; portanto, somente podemos ver uma parte do todo, ou um traço entre tantos traços possíveis. Nesse sentido, as noções gerais e os padrões não podem determinar nossas condutas com certeza e segurança, uma vez que toda tentativa de forçar nossas ações a corresponderem às abstrações alcançará, no limite, algum traço de semelhança entre a noção geral e o particular, jamais uma plena correspondência entre ambos. O ensaísta constata que tudo são opiniões. Nenhuma lei pode provar que está baseada em uma norma absoluta de justiça. São muitas e diversas as regras e as concepções.
Assim, em lugar da unidade, Montaigne encontra a fragmentação, de maneira que nenhum jurista pode pretender ter modelo fixo, de ação política, de regra universal. Às vezes o governante, por uma razão superior, vai contra a lei. Nessa direção, Caio Júlio César já citava que “caso se há de violentar a justiça, é para reinar que se deve violentá-la. Nos demais casos, pratica-se a virtude”[9]. Desse modo, Montaigne, argumenta que a ninguém é permitido ir contra a própria consciência, salvo os homens de Estado e o príncipe (por uma razão superior e não por interesses privados). O limite do que pode fazer no serviço do príncipe e do que deve obedecer é dado por sua consciência, que não cessa de se interrogar.
O autor segue as leis porque sabe de sua utilidade pública, mas não dobra sua consciência ao sabor fortuito das legislações humanas. Vê a sociedade totalmente fracionada, ou mais precisamente, partida. Parece, dessa maneira, que a sociedade, para ele, é constituída de vários partidos, seitas e facções, cada qual com suas ideias, muitas vezes antagônicas e, ao mesmo tempo, igualmente verdadeiras. Entendemos, porém, que essa caracterização não converte Montaigne num relativista; sua postura é a de um cético, que se atém ao fenômeno porque é tudo que temos (PORCHAT, 2007). Entretanto, para ele, nem todos os modelos são iguais: ele escolhe, posiciona-se e os compara. Como exemplo veja-se o texto Dos canibais (I, 31), em que o ensaísta critica a conquista do Novo Mundo e se interroga sobre o valor moral dessas expedições, chegando mesmo a defender a superioridade moral dos canibais[10] (DESAN, 1994). Julga que tais povos vivem com mais legitimidade e mais ordenadamente por não terem magistrados, advogados, notários, procuradores, oficiais de justiça, processos:
[A] Os que retornam daquele mundo novo que foi descoberto pelos espanhóis no tempo de nossos pais podem atestar-nos o quanto suas nações, sem magistrado e sem lei, vivem com mais legitimidade e mais ordenadamente do que as nossas, onde há mais oficiais de justiça e leis do que há outros homens e do que há processos (II, 12, p. 247).
Montaigne não recusa a ação política porque sua epokhé cética (SEXTO EMPÍRICO, 2000) não implica abstenção política e, muito menos, oportunismo ou imobilismo. Ele não se afasta permanentemente da política, ainda que tenha mandado escrever na parede de sua biblioteca que está decepcionado há muito tempo com a política e com a justiça; e que se retirou da vida pública desgostoso da escravidão da corte do Parlamento e dos cargos públicos; e que, sentindo-se ainda bem disposto, veio isolar-se para repousar no seio das doutas virgens (VILLEY, 2001). De fato, Montaigne se afasta, por um certo tempo, da política, buscando concentração e tranquilidade, mas o que ele encontra é a dispersão e o arrebatamento. Daí o seu movimento posterior de ação e recolhimento, que caracteriza o seu percurso político de descrever. Como político, Montaigne faz duas reivindicações revolucionárias para a época: distribuição do imposto em função dos recursos e gratuidade da justiça. Ou seja, na prefeitura, desenvolve uma série de decisões muito avançadas para as práticas correntes com relação à justiça social (inclusive junto ao rei) e à tolerância religiosa, procurando fazer com que o interesse coletivo prevalecesse sobre os interesses privados. Veja-se um trecho da reclamação de Montaigne endereçada ao rei:
[…] Todas as imposições devem ser feitas igualmente para todos, o forte carrega o fraco [e é] muito razoável que aqueles que têm mais recursos se ressintam da carga mais do que aqueles que vivem apenas aos tropeços e com o suor de seu corpo; no entanto há alguns anos e nesse mesmo ano as famílias mais ricas e opulentas da cidade […] foram isentadas das imposições feitas por sua ordem graças ao privilégio devido a todos os oficiais de justiça […] De modo que a partir de agora quando for necessário criar alguma taxa ou imposição, esta recairá sobre os mais pobres habitantes das cidades, o que é completamente impossível […] (MONTAIGNE apud LACOUTURE, 1998, p. 226).
Lacouture (1998) também informa outras medidas requeridas pelo ensaísta:
[…] os jesuítas foram instados a tornar pública a renda do convento; os salários das amas-secas deveriam ser indexados de acordo com a variação dos preços; os cadáveres das crianças deveriam ser examinados a fim de determinar os responsáveis por sua morte. Decisões audaciosas – que na prática substituíam a ‘caridade’ pelo direito social (LACOUTURE, 1998, p. 221).
Em sua atuação no espaço do Direito, aos poucos, Montaigne pode medir a distância entre as leis da cidade e as da consciência individual, das incertezas do saber oficial, das significações divergentes, dos partidos autofágicos. Conclui, porém, que é honestidade agir de maneira virtuosa conforme a forma mestra de si mesmo, conforme seus moeurs. Montaigne requer que o discernimento esteja isento de degeneração, num século tão viciado que não somente não pratica a virtude como ainda sequer a concebe. O autor cita uma metáfora de Horácio, dizendo que pessoas viciosas em um bosque sagrado não veem senão madeira para queimar (I, 37). Chama a atenção para o fato de que, ao menos, deveríamos honrar a virtude, mesmo sem compreendê-la. A virtude, porém, assim foi reduzida a uma espécie de jargão retórico, ou um penduricalho. Temos a casca, mas não a essência. Ressalta que podemos até enganar outras pessoas simulando virtude, mas não a nós mesmos. Pode ser só por interesses, por exemplo, que se minta acerca de si mesmo, simulando virtude. Em razão disso, os atos de justiça, coragem ou bondade que emanam de nós podem ser considerados pelos outros como provocados pela virtude, mas não é a virtude que os inspira:
É um adorno para ser pendurado num gabinete, ou na ponta da língua, como na ponta da orelha para ornamento. [A] Já não se reconhece ação virtuosa: as que apresentam tal aspecto não têm entretanto sua essência, pois o lucro, a glória, o temor, o hábito e tais outras causas alheias nos encaminham para produzi-las. A justiça, a valentia, a bondade que exercemos então, podem ser assim chamadas na avaliação de outrem e do aspecto que apresentam em público; mas com relação ao autor, não se trata absolutamente de virtude; há um outro objetivo proposto, [C] outra causa motora. [A] A virtude só assume aquilo que se faz por ela e para ela apenas (I, 37, p. 344).
OS PARTIDOS E A LEI
Ao longo dos Ensaios, o autor compõe uma crítica radical aos partidos. O ensaísta critica o partido protestante, os irresolutos e os oportunistas (III, 1). Em outro texto volta-se contra o partido católico, por duas razões: primeiro, pelo fato de, ao invés de extirpar os vícios, encobri-los, alimentá-los, incitá-los; segundo, pelo fato de que, nele, os homens servem-se da religião. O autor alerta que deveria ser exatamente ao contrário:
[A] A justiça que está em um dos partidos está nele apenas como ornamento e pretexto; é muito invocada, mas não é nem aceita, nem alojada, nem esposada: está ali como na boca do advogado, não como no coração e na afeição da parte. […] Os homens ali são condutores e servem-se da religião; deveria ser exatamente o contrário (II, 12, p. 167).
Julga que a corrupção a todos envolve de alguma forma, pela contribuição particular de cada um de nós: os mais poderosos concedem-lhe a traição, a injustiça, a irreligiosidade, a tirania, a cupidez, a crueldade, e os mais fracos (entre os quais Montaigne se coloca) levam a tolice, a vanidade, a ociosidade (III, 9, p. 241). Montaigne quer chamar nossa atenção para que possamos distinguir o fundamental do secundário, o principal do acessório, e denuncia, por exemplo, os oradores que estudam para discutir a justiça, mas não a praticam. O ensaísta critica os homens incapazes de agir e cuja filosofia consiste unicamente em palavras e teorias que não põem em prática. O reconhecimento da ausência de vínculo entre as leis e a justiça não leva o ensaísta a defender sua desobediência, porque as leis constituem e garantem o vínculo possível entre os homens, reunindo-os em sociedades políticas. O fundamento da obediência que lhes devemos reside nelas mesmas, em sua pura função de autoridade e de comando político. Dadas às inúmeras variedades de razões e de opiniões políticas, todas elas frágeis, é preciso proteger o bem público e obedecer:
[…] somente a humildade e a submissão é que podem fazer um homem de bem. Não se deve deixar ao julgamento de cada um o conhecimento de seu dever; é preciso prescrevê-lo, não deixar que ele o escolha segundo seu discernimento; de outra forma, dadas a fragilidade e a infinita variedade de nossas razões e opiniões, por fim nos forjaríamos deveres que nos levariam a devorar-nos uns aos outros (II, 12, p. 232).
Entendemos que Montaigne pensa a sociedade como resultada da participação das pessoas no conjunto de um Estado, na qual a maioria deve assumir uma responsabilidade ativa, produzindo um conjunto de atitudes que possam alentar tendências políticas equilibradas. A responsabilidade pelo bem comum requer obediência política. A responsabilidade é uma atividade política viva que age em função do todo (por isso, em função de si mesma) e que tem confiança no ambiente social, numa judiciosa química de respeito e obediência à autoridade, bem como de vigorosa independência pessoal. Em tais circunstâncias, as pessoas são integradas e levadas à obediência por ter não só conhecimentos e consciência, como também sentimentos e pensamentos favoráveis a esse respeito. Isso mantém a convicção da validade das instituições políticas porque o processo de institucionalização é capaz de orientar a mudança e a mobilização social é capaz de criar estabilidade política. De acordo com o ensaísta, devemos obediência aos reis, sejam eles bons ou maus. Se o príncipe for bom, é relativamente fácil obedecer; se for mau, também deve ser obedecido; mas, cumprindo esse dever, não há razão para que nos recusemos a julgá-lo e não tenhamos liberdade para criticá-lo, se for o caso. Procura distinguir ‘justiça particular’ (interesses pessoais em detrimento do bem social) de ‘justiça pública’. De qualquer forma, não há razão de ordem pública para defender a memória de um príncipe indigno:
Devemos submissão e obediência a todos os reis igualmente, pois ela se refere a seu ofício; mas a estima, não mais que a afeição, só a devemos a seu valor. Condescendamos, pela ordem política, em pacientemente suportá-los indignos, calar sobre seus vícios, auxiliar com nossa consideração suas ações indistintamente, enquanto a autoridade deles necessitar de nosso apoio. Porém, terminado nosso comércio, não há razão para recusar à justiça e à nossa liberdade, a expressão de nossos verdadeiros sentimentos, e especialmente para recusar aos súditos bons a glória de terem respeitosa e fielmente servido a um senhor cujas imperfeições lhes eram tão conhecidas, privando a posteridade de um exemplo tão útil. E os que, por respeito a algum compromisso pessoal, esposam iniquamente a memória de um príncipe indigno de louvor, fazem Justiça particular à custa da justiça pública (I, 3, p. 21).
Já observamos que é com seus costumes que cada ser humano e cada povo constroem o seu destino, e que os fundamentos que os justificam são demasiado fracos para que um se sobreponha a outros. Avancemos, agora, para a ideia de que o costume constitui a principal defesa da justiça e da liberdade; todavia, ao mesmo tempo, esconde-nos a verdade essencial das coisas (I, 23). Até mesmo as leis da consciência são determinadas pelo costume. A razão não é absolutamente segura, dado que todas as opiniões e todos os costumes encontram lugar, mas os seres humanos pensam que o que está fora dos costumes está fora da razão (II, 12). O hábito retira de nós a possibilidade de um juízo sadio, impedindo-nos de enxergar coisas estranhas e repugnantes no que fazemos, fazendo-nos considerá-las naturais, de forma que se considera como repugnante e estranho apenas o que outros povos fazem, e mais: “Condenamos tudo o que nos parece estranho e o que não entendemos” (II, 12, p. 203).
Acerca dos costumes, há em Montaigne um ataque e uma defesa. Como vemos, o ensaísta destrói os alicerces superiores sobre os quais os costumes se assentam e, ao mesmo tempo, defende-os, por não se ter outra coisa melhor e mais duradoura a propor. Os fundamentos que justificam os costumes são fracos, e alguns de muita autoridade são susceptíveis de abandono e assentam apenas na sua antiguidade decrépita (I, 23), e ainda que não tragam argumentos razoáveis, somos persuadidos pela autoridade de quem afirma. Como viemos apontando, antes de fazer prevalecer uma observância da lei, Montaigne diz que buscou fundamento para isso. Desse modo, assegura que, por meio de pesquisas que realiza até a origem, encontra apenas um débil fundamento para o costume:
Outrora, tendo de fazer prevalecer uma de nossas observâncias, aceita com firme convicção bem longe ao nosso redor, e não querendo, como se faz, estabelecê-la somente pela força das leis e dos exemplos, mas fazendo pesquisas sempre até sua origem, achei-lhe o fundamento tão fraco que tive dificuldade em não me desgostar dela, eu que tinha de consolidá-la em outrem (I, 23, p. 174).
Não é pouca coisa desprezar o costume. Mais que isso: é perigoso, temerário e absurdo desprezarmos o que não compreendemos, pois julgamos e raciocinamos sobre as ordens do costume. Não há o que a força do hábito não possa fazer; é o império dos costumes: “[A] Em suma, na minha opinião, não há coisa alguma que ele não faça ou que não possa; e com razão Píndaro, pelo que me disseram, chama-o de rei e imperador do mundo (I, 23, p. 172).
A concepção que tem Montaigne dos deveres do homem público implica em não perturbar a ordem social com inovações que destruam a sociedade, visto que, para ele, uma sociedade é um conjunto de costumes e regras tradicionais que lhe conferem sua estrutura. Baseados nisso, os seres humanos estabelecem uma ordem, qualquer ordem. Mesmo no caso extremo de bandidos reunidos na mesma cidade e entregues a si mesmos, acabariam por constituir um Estado, uma vez que a eficiência de um Estado depende dos costumes. O autor cita o caso do Rei Felipe, que povoou uma cidade com os piores indivíduos que pôde encontrar, e, a seu ver, essa sociedade heteróclita constituiu-se, desde logo, em estado político baseado nos próprios vícios dos habitantes, os quais nela implantaram por certo uma ordem e uma justiça: “Acredito que com seus próprios vícios eles construíram entre si uma contextura política e uma sociedade conveniente e legítima” (III, 9, p. 256). Ainda que se trate de uma ordem social qualquer, considera que as mudanças repentinas dos alicerces de tão grande edifício que sustentam as sociedades acabam por querer curar as doenças pela morte.
Em última instância, a melhor forma de governo de um país é, pois, aquela que vem sendo adotada tradicionalmente. Em razão disso, é a partir dessa constatação que Montaigne contraria a ideia de que a multiplicação das leis reprimiria o julgamento dos juízes, pois mesmo a plena aplicação da lei está submetida à interpretação e esta última sempre deixa grande margem ao julgamento. Ele afirma que há muita licença tanto no que se refere à interpretação das leis como na criação delas. Nosso espírito descobre tantas razões parta criticar a interpretação alheia quanto para defender a nossa, e tanto comentar como inventar prestam-se às mais acerbas discussões. Assim, obscurecemos e enclausuramos a compreensão; já não a entrevemos a não ser à mercê de tantas cercas e barreiras. Nas pendências judiciais, o centésimo comentário remete-o a seu seguinte, mais espinhoso e mais escarpado: “Precisamos menos de advogados e de juízes do que quando essa massa de direito estava ainda na primeira infância?” (III, 13, p. 427).
Em sua crítica devastadora o ensaísta argumenta que na lógica da multiplicação das leis é possível criar uma lei para cada ser humano, todavia essa infinidade de leis não esgotaria a possibilidade de julgamentos distintos, visto que não há conformidade entre os atos e as leis, pois os primeiros são mutáveis ao passo que as últimas são fixas e estáticas. Em razão disso, o ensaísta afirma que as leis devem ser as mais simples possíveis e concebidas em termos gerais; e fora ainda melhor não as ter do que as possuir tão numerosas. Julga que sofremos tanto das leis como dos crimes, visto que a multiplicação das leis gera um ciclo que se retroalimenta, o que leva a uma liberdade licenciosa e poderosa de juízes[11]. À medida que mais leis são criadas, mais atos são submetidos aos interditos da lei; consequentemente, em maior número serão os criminosos e mais leis serão necessárias: “Que ganharam nossos legisladores ao distinguir cem mil espécies e fatos específicos e a eles ligar cem mil leis? Esse número não tem a menor proporção com a infinita diversidade dos atos humanos” (III, 10, p. 424). Uma sociedade onde superabundam advogados, juristas e leis parece indicar também uma sociedade injusta e corrompida (III, 10), que alimenta a criminalização. Essa afirmação de Montaigne nos possibilita especular: que seriam de muitos profissionais se o crime não existisse, ou mesmo, se não aumentasse.
De fato, a criminalidade, de alguma forma e contraditoriamente, ajuda na multiplicação de profissionais da área jurídica, nas faculdades de direito, bem como no número de professores que produzem cursos de direito criminal, livros de legislação, compêndios sobre direito criminal. Talvez se não houvesse criminalidade muitos profissionais perderiam o emprego. A criminalidade também alavanca a venda de aparatos de segurança. O crime também produz arte, literatura, romances e tragédias. Além, é claro, do fato de que a criminalidade produz polícias, agentes, juízes, advogados, pesquisadores, jornalistas especializados e, poderíamos acrescentar: a tecnologia, a indústria de carros blindados, a indústria de armamentos, os programas policiais, os cursos de tiro e de defesa, etc.
Assim, Montaigne cita o caso do rei Fernando, que decidiu não enviar profissionais do Direito para as colônias sob o argumento de que esses profissionais poderiam provocar o surgimento de demandas (muitas vezes sem fundamento real) no Novo Mundo. O ensaísta avalia que, como Platão, o rei percebia os profissionais do direito como um dos maus sinais em um país (III, 10, p. 425) e considera que a ciência jurídica, muitas vezes, produz alterações e dissensões, e não resoluções e conciliações. Avança questionando o uso de linguagem rebuscada na construção das leis e dos documentos jurídicos. Este uso de uma linguagem artificial e minuciosamente construída só faz aumentar as dúvidas e as dificuldades interpretativas:
É a mesma coisa, pois, subdividindo essas sutilezas, eles ensinam os homens a aumentarem as dúvidas; levam-nos a ampliar e diversificar as dificuldades, alongam-nas, dispersam-nas. Semeando as questões e retalhando-as, fazem o mundo frutificar-se e multiplicar-se em incertezas e em querelas, [C] assim como a terra se torna fértil quanto mais for esmigalhada e profundamente revolvida. […]. Seria preciso apagar o rastro dessa inumerável diversidade de opiniões, e não pavonear-se com ela e encher a cabeça da posteridade (III, 13, p. 426).
Nesta direção, ressalta o ensaísta, que tal linguagem rebuscada, inextrincável para a maioria da população, utilizada nos textos jurídicos, mais afasta o objetivo de busca pela justiça do que o aproxima:
A não ser que os príncipes dessa arte, aplicando-se com particular atenção em selecionar palavras solenes e em formar frases artificiais, tenham pesado tanto cada sílaba, esquadrinhado tão minuciosamente cada espécie de costura que os vemos enrascados e enredados na infinidade de figuras e de segmentação tão minúsculas que não podem mais sujeitar-se a nenhum regulamento e prescrição nem a um entendimento seguro (III, 10, p. 425).
Desse modo, surgem as diferentes doutrinas com a suposta intenção de trazer os fundamentos da ciência jurídica e isso, na realidade, se torna uma espécie de cipoal indevassável. Inspirando-se nos antigos, Montaigne considera que as dificuldades nascem das minúcias das doutrinas. Ou seja, a pluralidade de doutrinas jurídicas, que querem entrar em todos os pormenores, conduz os sujeitos ao erro, uma vez que “Desdobramos a matéria e a expandimos destemperando-a; de um assunto fazemos mil e multiplicando e subdividindo, recaímos na infinidade de átomos de Epicuro” (III, 13, p. 426). Montaigne constata que também há muito palavrório, muita obstinação e muitas picuinhas que acabam por dispersar a verdade e a ampliar e diversificar as dificuldades com tantas interpretações. Os intérpretes buscam conduzir ao sentido próprio, porém também se colocam a fortiori, como dificuldades a serem transpostas, porque são escritos que também exigem entendimento acerca de suas interpretações, como salienta Montaigne: “[B] Há mais dificuldade em interpretar as interpretações do que em interpretar as coisas, e mais livros sobre os livros do que sobre outro assunto; só o que fazemos é nos glosarmos mutuamente. [C] Tudo fervilha de comentários; de autores há grande penúria” (III, 13, p. 428-429). Os doutrinadores e comentadores aumentam as dúvidas e a ignorância, pois tornam os textos da lei cada vez mais difíceis de serem compreendidos, uma vez que interpretar as próprias interpretações dá mais trabalho do que interpretar a própria coisa. Tudo é questão de palavras e se resolve com palavras. Muda-se uma palavra por outra ou mais desconhecida.
Concordando com os antigos, mais uma vez, escreveu que os escritos de Heráclito, por exemplo, precisavam de um leitor bom nadador para que não se afogasse na profundidade e no peso da sua doutrina (III, 10). Em suma, Montaigne argumenta que a multiplicação das leis consequentemente produz a multiplicação dos profissionais do direito, dos intérpretes, dos doutrinadores, visto que com o refinamento da linguagem jurídica, as diferentes interpretações contidas em cada sinal ortográfico, palavras, frases, expressões solenes, bem como as sutilezas argumentativas, tornam tais especialistas insubstituíveis na interpretação e na defesa de direitos, pois ao homem comum esses escritos tornam-se ininteligíveis. Os advogados e os juízes decidem a respeito da vida das pessoas. Todavia, a honra e a vida dependem mais da industriosidade (III, 10, p. 432), das ‘sutilezas’ e da malandragem do que da própria inocência. Em tais condições valoriza-se mais a astúcia do que a sinceridade. Conclui o ensaísta que isso provoca injustiças do Direito, sob o entendimento de que, em muitos casos, a decisão judicial depende muito mais da habilidade do profissional do Direito em fazer alguma interpretação torcida, forçada e indireta do que, de fato, da inocência do acusado:
[C] Todas as coisas ligam-se por alguma semelhança, todo exemplo é claudicante, e a relação que se obtém da experiência é sempre falha e imperfeita; no entanto juntamos por algum ângulo as comparações. Assim as leis servem e assim se combinam com cada um de nossos casos por alguma interpretação torcida, forçada e indireta (III, 10, p.430).
Antes de escrever sua denúncia sobre a importância que o dinheiro tem para que as pessoas possam defender a própria inocência (no caso de inocentes), ou até mesmo de escapar da punição (no caso de culpados), escreve: “Considerai a forma dessa justiça que nos rege: é um verdadeiro testemunho da fraqueza humana, tantas contradições e erros há” (III, 10, p. 430). Nosso autor critica o poder da riqueza para recorrer às leis, porque na verdade as corrompe. Quanto mais recursos financeiros uma pessoa tiver, maiores serão suas chances de se safar. Avalia que vivencia um processo de judicialização dos mais diversos níveis da vida cotidiana, processo este criado e fomentado pela falsa ideia de que os profissionais do Direito, particularmente os juízes, são os arautos e os defensores primordiais da justiça, únicos capazes de se opor aos mandos e desmandos públicos e privados. De acordo com Montaigne, muitas vezes os advogados e juízes se mostram mais preocupados com o formalismo da norma do que com a busca da verdade que entra em cena no momento em que se dá um julgamento. A motivação dos juízes é simplesmente para preservar a autoridade da lei, e dela se tornam prisioneiros. Mostra que de um lado está a razão da causa, do outro a razão das formas judiciais. O ensaísta cita um caso que vivenciou, quando duas pessoas inocentes foram enforcadas para atender ao formalismo da lei:
Quantos inocentes descobrimos que foram punidos – quero dizer, sem culpa dos juízes – e quantos há que não descobrimos? Isto aconteceu em minha época: alguns homens são condenados à morte por um homicídio, estando a sentença, se não pronunciada, pelo menos concluída e decidida. Nesse momento, os juízes são avisados pelos oficiais de uma corte subalterna vizinha de que têm consigo alguns prisioneiros, os quais confessam claramente esse homicídio e lançam em todo o fato uma luz evidente. Delibera-se se por isso se deve interromper e adiar a execução da sentença dada contra os primeiros. Considera-se a novidade do exemplo e sua consequência na suspensão dos julgamentos; que a condenação está juridicamente decretada, os juízes privados de arrependimento. Em suma, esses pobres diabos são sacrificados às formas da justiça (III, 10, p. 431).
Na realidade, com seus vários exemplos, ao questionar a autoridade moral da lei, Montaigne mostra também a importância de interpretar as leis com justiça. Montaigne se pergunta: “[C] Quantas condenações já não vi mais criminosas do que o crime?” (III, 10, p. 432). A diaphonia das diferentes doutrinas decorre do fato de que duas pessoas avaliam a mesma coisa de forma diversa, não sendo possível identificarmos opiniões idênticas não só entre sujeitos distintos, mas muitas vezes no mesmo sujeito em momentos diferentes. Mas Montaigne não abre mão de sua liberdade frente ao Estado. O ensaísta se opõe a um Estado que negue a liberdade e escreve que é tão ávido de liberdade que, se lhe proibissem o acesso a algum recanto, viveria incomodamente “e enquanto encontrar terra ou ar aberto alhures, não me encolherei em lugar onde tenha de esconder-me” (III, 13, p. 433.). E, refletindo sobre a situação política de algumas pessoas que perdem a liberdade, afirma: “Meu Deus! Como eu mal poderia suportar a situação em que vejo certas pessoas, retidas numa região deste reino, privadas da estrada nas cidades principais e nas cortes e do uso dos caminhos públicos, por haverem contestado nossas leis!” (III, 13, p. 433). No mesmo trecho, reconhece que não suportaria leis que o ameaçassem: “Se aquelas a quem sirvo me ameaçassem simplesmente a ponta do dedo, iria incontinenti encontrar outras, onde quer que fosse. Toda minha pobre prudência, nestas guerras civis em que estamos, empenha-se para que elas não interrompam minha liberdade de ir e vir” (III, 13, p. 433).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Montaigne, portanto, aponta para o papel necessário e central da equidade como um corretivo para restabelecer a igualdade social e colocar todos os membros da sociedade em pé de igualdade perante a lei. A necessidade de igualdade é levada ao leitor por meio de anedotas marcantes extraídas da experiência pessoal. A narrativa do ensaísta ajuda a construir um modo alternativo de compreender a lei e que visa atingir a sensibilidade e os sentimentos humanos, em vez da razão, dirigindo nossa atenção para a aplicação de leis específicas para os acontecimentos humanos. O cético Montaigne julga que, dando vida à lei, com suas narrativas promove a reflexão ética mais profunda do que o faria um discurso jurídico fundamentado na razão. Evidentemente, o movimento do ceticismo não pode se interromper no próprio ceticismo porque ele se apresenta para Montaigne exatamente como a descrição do movimento, do instante, do corcoveio, da passagem que ele pinta:
Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem; não a passagem de uma idade para outra ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia para dia, de minuto para minuto. É preciso ajustar minha história ao momento. Daqui a pouco poderei mudar, não apenas de fortuna mas também de intenção. Este é um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos: ou porque eu seja um outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações (III, 2, p. 27-28).
A urgência de vários eventos que, o ensaísta narra, acabam de acontecer, como é o caso em que seus próprios trabalhadores acabam de abandonar um homem moribundo que foi encontrado esfaqueado, mas ainda está respirando. Eles lhe disseram que não o ajudaram com medo de serem culpabilizados pelos ‘homens da justiça’. A vida da vítima está por um triz. Mas quem pode culpar os camponeses por suas ações? Sua situação como vítimas indefesas de leis injustas é trazida para fora com pungência. Vejamos, em suas próprias palavras, a denúncia das contradições e dos erros da lei:
Camponeses acabam de vir avisar-me às pressas que deixaram agora mesmo numa floresta que é minha um homem machucado por cem golpes, que ainda respira e que lhes pediu água por piedade e ajuda para levantar. Dizem eles que não ousaram aproximar-se e fugiram, de medo que os homens da justiça os surpreendessem ali e, como acontece com os que são encontrados perto de um homem morto, tivessem de prestar contas daquela ocorrência, para sua total ruína, por não terem nem capacidade nem dinheiro para defender sua inocência. Que lhes poderia eu dizer? É certo que esse serviço humanitário os teria posto em apuros” (III, 13, p. 431).
Em oposição a uma abordagem rigorista da ‘justiça legal’, que envolve uma interpretação mais literal da lei escrita, Montaigne chama a atenção para a equidade, para a necessidade de ajustar a letra da lei às circunstâncias imediatas de indivíduos, em determinado tempo e situação. Na medida em que o sistema judicial exige a aplicação de estatutos escritos ou de leis gerais, nos casos individuais, porém, é fundamental a interpretação não literal da lei.
Retomemos o fio do que afirmamos, em vários momentos, que a base da lei é o costume. Em outras palavras, vimos que o costume, que surge de forma fortuita, é costurado depois em leis, constituindo base para a política. A necessidade associa os homens e os junta: “Essa costura fortuita formula-se depois em leis; pois houve-as tão selvagens que nenhuma decisão humana poderia gerar e que, no entanto, mantiveram seus corpos com tanta saúde e longevidade quanto as de Platão e Aristóteles poderiam manter” (III, 9, p. 256). Rompida a solda entre os homens (submetidos e conformados a certos costumes), como a sociedade é composta de partes em conflito, tudo se desmancha. As leis nascem dos costumes, do acaso ou de causas que escapam à razão; portanto, cumpre obedecê-las, porque asseguram a ordem, mas sem se iludir a respeito de seu valor intrínseco. Argumenta, porém, que não é uma boa política ir contra a natureza e os costumes; nem as leis nem as religiões devem contradizê-los. Montaigne não pensa que as leis não tenham valia para os partidos armados, nem que o tempo da justiça e o da guerra sejam dois; o ruído dos combates não pode abafar a voz da consciência (III, 1).
Montaigne é leitor de Sexto Empírico, um dos expoentes máximos do ceticismo. Este diz ser princípio pirrônico fundamental criar antinomias, opondo razões contrárias, para renovar o estado de epokhé decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes. O ensaísta se opõe à interpretação de que o ceticismo não acata as leis porque, na realidade, isso é uma caricatura. Menciona, inclusive, as tentativas de se ridicularizar o ceticismo e delas discorda, em particular a Pirro, como se esse pensador fosse insociável e incapaz de tomar uma decisão: “[A] Pintam-no estúpido e inerte, adotando um modo de vida selvagem e insociável, tendendo a chocar-se com as carroças, avançando para os precipícios, recusando-se a acatar as leis” (II, 12, p. 259).
Montaigne considera que o conhecimento é sempre fragmentado, provisório, insuficiente para a determinação de leis universais. O saber que o ser humano possui é nulo, mas o horizonte do possível que se estende diante dele é mais vasto do que jamais foi (STAROBINSKY, 1992). De acordo com Montaigne, todas as grandes transformações abalam o Estado e o desorganiza. A questão da conservação dos Estados ultrapassa as possibilidades de nossa inteligência. O autor observa que já viu edifícios em ruínas, prestes a desmoronar, manterem-se de pé por longo tempo ainda, apesar das doenças mortais e intestinas, apesar da iniquidade das leis injustas, da tirania, dos excessos e da ignorância dos magistrados, da licença e revolta dos povos. Muito já se discutiu sobre isso, mas, para nós, a ideia montaigniana de conservar deve ser entendida tão somente como respeito aos costumes, sem os quais não é possível manter uma comunidade. Smith (1996) alerta a necessidade de fazer ressalvas à conotação que o termo adquiriu posteriormente, pois, talvez não caiba aplicar o termo ‘conservador’, com o sentido moderno do termo, ao pensamento político do ensaísta. Todavia, se insistirmos em manter o termo, é forçoso reconhecer que seu conservadorismo é paradoxal, uma vez que não somente admite que não há o que conservar, mas também que sua maneira de ser é diferente dos costumes aceitos; além disso, elabora uma nova concepção de Estado, delimitando nitidamente as esferas do público e do privado (SMITH, 1996).
Tomando em conta que a veracidade, a boa-fé, o respeito às promessas etc. são afirmados como valores fundamentais na existência da sociedade, disso decorre que não se trata apenas de uma vida moral, mas de uma política moral, visto que Montaigne almeja cumprir bem seu dever com o bem público e viver para si, conforme se pode verificar em Do útil e do honesto (III, 1) e em Da vanidade (III, 9). O ensaísta considera positiva sua preocupação com o bem de todos: “A filosofia política poderia censurar à vontade a humildade e a aridez de minha ocupação se eu pudesse algum dia começar a apreciá-la como ele. Sou de opinião que a ocupação mais honrosa é servir ao público e ser útil a muitos” (III, 9, p. 250).
Chama a atenção, mais uma vez, que o efeito dogmático dos costumes, porém, atinge a todos. Em razão disso, Montaigne escreve que mesmo as filosofias mais ousadas – a Epicurista, a Pirrônica e a da Nova Academia – são constrangidas a se dobrar à lei civil, no fim das contas, e a adotar o costume como critério prático. Note-se, aí, que até mesmo os pirrônicos (fundamentalmente antidogmáticos) aderem aos costumes pela utilidade e pela coesão social. Trata-se da adesão não dogmática ao phainómenon como critério prático, em lugar das sciences dogmáticas. Ainda que reconheça a science como um partido bem útil e grande, ele não passa, afinal, de um partido; por isso, tem valor apenas relativo. Como se observa, Montaigne busca conciliar a suspensão do juízo e a plena adesão à esfera da vida prática, ainda que a depuração total dos costumes não pareça ser humanamente passível de se realizar. Não é possível suplantar os costumes plenamente, assim como não nos é possível sair de nós mesmos.
O ensaísta estabelece uma demarcação entre a vida pública e a vida privada porque é necessário que a pessoa seja livre dentro do quadro das leis e que a autoridade do Estado, suas exigências e seu controle, sejam tão leves quanto possível[12]. O melhor governo é o que menos se faz sentir, o que assegura a ordem pública sem invadir a vida privada, sem pretender orientar todos os domínios, inclusive os do espírito em todos os seus recantos.
Como é próprio do pensamento de Montaigne, ao apresentar Aristóteles como ‘príncipe dos dogmáticos’, ele afirma que aprendemos com o estagirita que o muito saber traz consigo motivo para duvidar mais (II, 12). Todavia, na interpretação da lei, em Montaigne, há ecos dos escritos de Aristóteles (especialmente das obras Ética à Nicômaco e Retórica), mas não é nosso propósito tratar disso aqui. Mesmo que o tema da equidade ainda esteja aberto às interpretações e debates, indiscutivelmente a questão mais premente na lei, tanto no tempo do ensaísta como em nossos dias, é: o que constitui uma interpretação justa e equitativa da lei? Em Montaigne o equitativo não é apenas legal, mas também corretivo do que é tão somente legal. Ainda que o ensaísta reconheça que toda lei é universal, salienta, porém, que há algumas coisas sobre as quais não é possível falar corretamente em termos universais. Uma vez que não é possível definir o direito em todos os casos, a equidade oferece uma correção para acomodar casos individuais a partir de um princípio geral. Quando Montaigne reconhece a lei como um texto imperfeito significa que é necessário um intérprete legal para ir além do sentido literal e formal, e que articule o universal com os casos particulares. Dessa maneira, se aplica a lei a circunstâncias específicas. Portanto, o ensaista chama a atenção não para a letra da lei, mas para a sua intenção, não à ação em si, mas para o propósito moral.
No estudo da lei, o leitor é parte integrante da prática e da teoria hermenêutica de Montagne, não apenas como receptor, mas também como um intérprete. De fato, no que se refere à escolha de percursos e à lógica na sucessão de vários discursos, cabe ao leitor e pesquisador de Montaigne assumir a responsabilidade pela argumentação. Isso dificulta o estudo de quem busca um sistema filosófico em um autor avesso a isso. A própria posição de Montaigne acerca da relação entre suas noções oferece-se ao leitor na forma de um problema a ser resolvido. É a filosofia de sua experiência pessoal que condensa em seus escritos, de forma que o valor argumentativo está em convidar cada leitor a consultar a sua própria experiência para aferir o valor da descrição que faz nos Ensaios. O ensaísta convida seus leitores a empregarem eles mesmos seus próprios juízos, aos quais é expressamente transferida a responsabilidade de aplicarem a si mesmo aquilo que Montaigne mostra de si.
Ao longo da leitura dos Ensaios observamos que, baseado em sua crítica da razão, de acordo com Montaigne, não há acesso racional direto ou garantido às leis naturais, por isso mesmo critica aqueles que defendem que as leis positivas possam ser fundamentadas por uma lei natural. Em vários momentos, Montaigne discorda da ideia de que exista um conjunto de princípios naturais, eternos, imutáveis e necessários que sirvam como fundamento para toda ação e leis humanas. Observamos, assim, um paradoxo: há uma afirmação e, ao mesmo tempo, uma negação das leis naturais. Mas, a rigor, não é que o ensaísta negue a existência de leis naturais. Limita-se a afirmar que há, na realidade, desconhecimento da natureza humana; dela somente temos um parecer.
Pode-se crer que haja leis naturais, como se vê nas outras criaturas; mas em nós elas estão perdidas, esta bela razão humana metendo-se a tudo dominar e comandar, embrulhando e confundindo a aparência (visage) das coisas segundo a sua vaidade e inconstância. Nada resta portanto que seja nosso: que chamo nosso é artificial (II, 12, 580).
Ademais, se há dificuldade em aceitar a vaidade da presunção de interferir no domínio das coisas naturais, não há menos no domínio das coisas humanas, das leis para as pessoas e da política para a sociedade. Porquanto, a argumentação de Montaigne sobre a dessemelhança alicerça a crítica à tentativa do legislador de ‘aperfeiçoar’ as leis e de afastar a liberdade de interpretação dos juízes, quando de sua aplicação, referindo-as a gêneros e espécies bem determinados de casos ou, ainda, buscando as suas especificações mínimas de modo a cobrir todas as suas particularidades. Obviamente, quando Montaigne reivindica a simplificação dos dispositivos legais e autonomia para os juízes está pensando na busca pela justiça, pela igualdade e pela equidade, que ele não encontra na rigidez da lei, nem, muito menos, na multiplicação de seu formalismo rígido.
Para concluir, como afirma Tournon (2005), seus ataques e críticas à instituição judicial refletem o desejo de Montaigne de ver a virtude da justiça colocada em prática. Acusa essas instituições de descrédito por afrontarem princípios éticos e políticos, cujo fundamento deveria assegurar. Tentamos, assim, assinalar ligeiramente que, na exposição de Montaigne, o exame da prática da lei torna-se problemas filosóficos. Nas divergências com as instituições judiciais e com a legalidade, Montaigne parece requerer em seu trabalho como filósofo uma dupla exigência: justiça e autonomia. É uma exigência, sem dúvida, muito forte, cuja separação pode ter, de certa forma, frustrado suas atividades como magistrado.
REFERÊNCIAS
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[1] Durante minha exposição, no Simpósio Internacional “Renascimentos – Cosmologia, natureza e ética”, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, esta questão me foi formulada pela professora Maria Cristina Theobaldo.
[2] Une fois donc acceptée la faiblesse de l’origine de la loi ou d’une coutume, l’alternative est claire: soit le repos, la permanence, de l’acceptation de l’usage et de la coutume, ou encore, selon la citation précedent, l’acceptation de la seule ‘force des loix et des exemples’, soit la résistance à la violence de ces fictions, résistance qui tout á la fois méne aux ‘opinions sauvages’ et remet le jugement ‘en bien plus seur estat’. Il y a de ce fait un dédoublement de l’opposition, tout à fait typique de Montaigne: si la loi et la coutume ne sont, contrairement à leurs prétentions, portées par aucune verité comme le démontre leur faiblesse originaire, le travail critique, montrant cette faiblesse originaire, est nécessaire – de là l’entreprise des Essais commme démystification de la loi; mais em même temps, s’il n’y a aucune verité dans la loi et la coutume, alors, il convient d’obéir à celles qui sont imposées, sans quoi c’est la porte ouverte à toutes les ‘sauvageries’. En effect qui, au-delà du travail critique, veulent par lui remettre en question l’autorité de la loi, ‘faillent encore plus’ que ceux qui l’acceptent de façon non critique. Dans les leux cas possibles – obéissance aveugle, refus de l’autorité -, on est en tort, on faillit; mais seul le refus est dangereux. Dans les deux cas, on est en tort vis-à-vis de la loi, parce que dans l’un comme dans l’autre, on croit en sa vérite (ou on la remet en question au nom de la vérité). A première vue, seule serait donc tenable – juste? – la position de Montaigne, à la fois respectueux et critique face à la loi. (BERNS, 2000, p. 275-276)
[3] CHAMPION, Edme. Introduction aux études de Montaigne. Paris: Armand Colin, 1900, p. 15.
[4] DUMONT, Jean-Paul. Le scepticisme et le phenomene. Paris: Philosophique, 1972, p. 43.
[5] “Au sein du même raisonnement, Montaigne tient à se distancier aussi de ceux ‘qui poisent tout et le ramenent à la raison’ au lieu de recevoir les lois par autorité et à credit, á image des ‘jugemens publiques’. Dans un même raisonnement donc, il affirme à la fois la precarité de la naissance historique de la loi, et il écarte la prétention à en rechercher les fondements rationnels, écartement qui, à premiére vue, nous renvoie alors face à la question de la seule origine historique de la loi, nous confinant ainsi dans le précaire. Nous reviendrons au fil du texte sur tous ces arguments; retenons à ce stade lincommensurabilité pour Montaigne du raport entre a noblesse de la loi établie et la faiblesse de son origine, vers laquelle il serait dangereux pour la loi elle-même de revenir. Tout en sachant cepedant, que toute recherche du fondement de la loi ne nous amènerait pas á quelques fondements naturels ou rationnels, mais seulement à l’empiricité de faiblesse de cette même origine” (BERNS, 2000, p. 274) ).
[6] EMPÍRICO, Sexto. Outlines of Pyrrhonism. Trad. para o inglês R. G. Bury. Cambridge, Massachusetts, London, England: Harvard University Press, 2000, p. 13.
[7] Id., p. 16.
[8] BURKE, Peter. Montaigne. New York: Oxford University Press, 1994, p. 21.
[9] SUETÔNIO. A vida dos doze césares. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 32.
[10]DESAN, Philippe. Montaigne, les cannibales et les conquistadores. Paris: A. G. Nizet, 1994, p. 11.
[11] [B] Por isso não me agrada a opinião daquele que esperava com a multiplicidade das leis refrear a autoridade dos juízes, mastigando os bocados para eles; não compreendia que há tanta liberdade e amplitude na interpretação das leis quanto em sua confecção (III, 10, p. 423).
[12] Conforme se pode verificar em Do útil e do honesto (III, 1, p. 3) e Da vanidade (III, 9, p. 237) e De poupar a vontade (III, 10, p. 326).