Teoria da Não Conceitualidade – Introdução
Trecho da introdução escrita para a tradução brasileira do livro Teoria da Não Conceitualidade de Hans Blumenberg**.
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Embora eu próprio não pretenda conhecer a inteireza da obra do autor, por certo, a obra mais famosa de Blumenberg, A legitimidade dos tempos modernos1, é um confronto explícito com os que se opõem à originalidade dos princípios constitutivos do pensamento moderno. Nesta acepção, Blumenberg não é só um extraordinário criador de novos campos de indagação, como, ao mesmo tempo, um observador irônico da estabilidade que a filosofia costuma procurar conceder à significação que analisa.
Em benefício do leitor brasileiro damos a esta Introdução um caráter bastante geral, falando pouco de sua obra mais famosa e, a propósito da Theorie aqui traduzida, assinalando apenas como a questão se punha no seu antecedente, os Paradigmas.
Dito de maneira esquemática, o princípio orientador de A legitimidade dos tempos modernos se contrapõe à tese sustentada por Karl Löwith, com respaldo na Teologia política de Carl Schmitt: a modernidade se funda na mera secularização de postulados de ordem teológica. Dito de maneira ainda mais sumária: à morte de Deus correspondeu a divinização (e a demonização) do sujeito humano – divinização pelo cogito cartesiano, simultânea (e menos falada) demonização por sua exploração e repressão sistemáticas. Mas o que Blumenberg intitulava de “teorema da secularização” vai bastante além da formulação grosseira:
Sugerindo que a suspensão das crenças no além é uma condição talvez necessária, mas por certo insuficiente para encontrar o mundo, Blumenberg inscreve-se na tradição fenomenológica que sempre foi a sua. No Krisis, Husserl já insistia no aparecimento especificamente moderno de um mundo não secular na idealização matemática do real operada pela física galilaica. Tanto quanto por sua abstenção teológica, a modernidade caracterizar-se-ia então por uma abstração do mundo, identificado à natureza como sistema de legalidades.
Para recursar-se a ilegitimidade dos tempos modernos, não é, por tanto, bastante o afastamento da explicação teológica porque ainda é preciso encontrar uma fundamentação imanente ao próprio mundo. Dizê-lo tem como consequência imediata declarar insuficiente o argumento formulado por Carl Schmitt, no interior de sua luta contra o liberalismo, e bem antes de sua adesão ao nazismo:
Todos os conceitos fundamentais da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados. Não só em virtude de seu desenvolvimento histórico, por terem sido transferidos da teologia para a teoria do Estado, na medida em que, por exemplo, a onipotência divina foi convertida no legislador todo poderoso, senão também em sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para a consideração sociológica desses conceitos. O estado de exceção (Ausnahmezustand) tem para a jurisprudência uma significação análoga ao milagre na teologia.2
É nada menos que em Heidegger que Foessel encontra a base para a formulação contrária:
O decisivo está em que o discurso da “secularização” é um engano desvairado (eine gedankenlose Irrefuhrung); pois para a “secularização”, “mundanização”, já é preciso um mundo, em que e dentro do qual se mundanize.3
É certo que Foessel faz de imediato uma observação cuja relevância imporia o desdobramento que ele próprio não realiza:
Dizer, como o faz Heidegger, que a “mundanização” precede a “secularização” é dar primazia ao ontológico sobre o epistemológico e conceder ao conceito de mundo proeminência inclusive para uma interpretação de tipo histórico.4
Que significa tal primazia senão trazer o ontológico para a dimensão da existência (Dasein), onde, coerentemente, Heidegger situava a “ontologia fundamental”, e assim manter em condições de estabilidade a ideia de verdade, que, deixando de ser metafísica para se mundanizar, se internaliza no Dasein, nele se oculta, para, descontinuamente (historialmente), surgir de repente e de novo desaparecer?
Sem que tais consequências sejam novidade para o leitor de Heidegger, elas são de extrema importância para acentuar a diferença em que o pensamento de Blumenberg se põe; mais precisamente, para a reviravolta provocada por sua reindagação da metáfora. Nesse contexto, assume uma clareza espantosa a conclusão dos Paradigmas: “Com frequência, a metafísica se nos revelou como uma metafórica tomada ao pé da letra; a dissolução da metafísica volta a conceder à metafórica o seu lugar.”5
Em consequência, embora se deva a Heidegger o termo “mundanização” (Verweltlichung), o sentido que lhe dava não se adéqua à Legitimidade, que antes está de acordo com a explicação dada por Kant ao que chamara de “Antinomia da razão pura” – a postulação de inferências opostas e, no entanto, igualmente justificadas. Foessel o corrobora por meio de passagem de carta de Kant a Garve, datada de 21 de setembro de 1798:
O meu ponto de partida não foi o exame da natureza de Deus, da imortalidade, mas a Antinomia da razão pura. (…) Foi essa Antinomia que me despertou de meu sono dogmático e me levou à crítica da própria razão pura, afim de suprimir a contradição aparente da razão consigo mesma.6
Em louvor daquele que captou a ponte decisiva, transcrevo seu comentário:
Só, com efeito, as características essenciais do tempo (e do espaço), definidas na estética transcendental, permitem sair da arena das antinomias, exibindo a insanidade do projeto que consiste em apreender a esfera dos fenômenos por meio da categoria absolutizada de totalidade.7
“Mundanização”, no sentido desontologizado de Blumenberg, significa pois que a apreensão do mundo se encerra com ele mesmo, sem recorrência a uma dimensão teológico-metafísica extra. Daí, em suma,
(…) a referência a Kant permite-nos melhor alcançar as modalidades de uma tal Verweltlichung: atenção concedida à dimensão irredutivelmente sensível do mundo, desimplificação do mundo da temática da criação, emancipação do pensamento da história e da “legibilidade do mundo” de todo fundamento teológico.8
Não tendo tido o propósito de apresentar a Legitimidade, reitero apenas a relação íntima entre a recusa da deslegitimação do pensamento moderno e o realce da metáfora. E, como falar em metaforologia implica pensar a questão da tékhne e também da retórica, lembre-se a passagem levemente irônica do Arbeit am Mythos [Trabalho sobre o mito]: “Ter um mundo é sempre o resultado de uma arte (Kunst), mesmo que ela não possa ser em sentido algum uma obra de arte total (Gesamtkunstwerk).”9 Mas não basta a referência. Dizendo respeito ao relacionamento de Blumenberg com a Krisis, ela não pode ser tão ligeira. No ensaio “O mundo da vida e a tecnificação”, escrito nove anos depois da Habilitationss-chrift, sua abordagem principia pela comparação entre as concepções grega e moderna de mundo, e por suas implicações para tékhne e a metáfora.
Ao passo que a concepção grega do mundo como cosmos supunha a admiração por uma ordem que tinha lugar para cada coisa – e, em consequência, não admitia lugar algum para o homem como agente criador – , admiração e harmonia que eram o substrato para a “contemplação”, isto é, a especulação filosófica, a concepção moderna aparta a técnica do menosprezo que secularmente a cobriu. Como dirá nosso autor, apontando para o ensaio de Valéry sobre Da Vinci, para o homem moderno o abismo, em vez de provocar terror, motiva-o para o cálculo de uma ponte ou a construção de um “pássaro mecânico”. A reconsideração da técnica, no entanto, não se estende à tradição filosófica. Assim, ao dizer que a “produtividade da empresa filosófica ajuda, por seu lado, a gerar continuamente de novo aquele mal-estar”10, o autor tanto remete a Husserl quanto a Heidegger. Para que, contudo, dispusesse do horizonte suficiente para a consideração do conceito de “mundo da vida” (Lebenswelt), Blumenberg precisava recordar o papel que a sofística desempenhara na valorização paradoxal da técnica:
Na segunda metade do século V, apresentou-se pela primeira vez um tipo de “técnica” leve e isolada do campo da política e do direito. A oferta sofística apresentava uma formação conforme a qual bastava saber como se faz algo, sem levar em conta os formulários relativos ao direito, ao fundamento e à necessidade objetiva.11
Contra a liberação assim concedida à técnica da retórica, levantou-se o Sócrates platônico. Vitorioso, ele se tornou o guia da tradição filosófica ocidental. E, com essa vitória, impôs-se a separação entre filosofia e retórica.
Será aqui preciso dar um enorme salto no tempo para então encararmos a proposta fenomenológica de Hursserl (1859-1938). Seu apelo de vir às próprias coisas (Zu den Sachen selbst!) se punha quando a autonomização e o desenvolvimento das ciências, iniciados nos séculos XVI e XVII, provocara o divórcio progressivamente drástico entre a filosofia e o manejo técnico. Para combatê-lo, se não com a ilusão de saná-lo – lembre-se o título da obra de 1911; Philosophie als strenge Wissenschaft [A filosofia como ciência rigorosa] -, Husserl adotara o conceito de intencionalidade de Brentano: ”Com esta expressão, a fenomenologia se afastava de uma concepção atomista da consciência, que interpretava os objetos como associações de dados no fluxo da consciência.”12
Em seu lugar, o fundador da fenomenologia partia de que “toda consciência não só ‘tem’ seus objetos senão que se funda na intenção de chegar o quanto possível à plenitude de seus objetos.”13 E, estendendo o conceito à história, rechaça que ela seja uma conexão de factualidades, passando, em troca, a vê-la como um movimento de intercomunicação e, quanto tal, relacionada à técnica, pois “o problema da técnica essencialmente tem a ver com a responsabilidade (Veranwortung) que a história assume, por meio do homem (…)”.14 Dessa maneira, Husserl se associava à herança cartesiana: “Como processo de fundamentação e desenvolvimento de sentido, a história tem um começo (Anfang).”15
Aí, na verdade, se concentra a razão de seu questionamento do legado husserliano. Tento sintetizá-lo. Assim decorre de que a intencionalidade da consciência engendra o surgimento de uma inconsequência insanável. Entendo-o assim: como é inconcebível que o começo da história coincida com o início de um investimento teórico, haveremos de supor que tal começo tenha sido precedido por “uma fase heterogênea da naturalidade originária da atitude humana perante o mundo”.16 Ora,
(…) se a consciência é intencionalidade, se a possibilidade de uma intuição plena, [isto é]17, da evidência, determina a unidade das coisas que lhe são dadas (die Einheit seiner Gegegenbenheiten), então a representação de uma primitividade (Urwuchsigkeit) natural e pré- histórica é uma ficção mítica.18
A “ficção mítica” assim estabelecida ainda se torna, mas danosa pelo duplo sentido que a expressão “mundo da vida” assume. Por um lado, ele é “o ponto de partida histórico da transformação teórica, e, por outro, é o estrato fundamental sempre presente da vida diferenciada em uma hierarquia de interesses (…)”.19 Tal duplo sentido marca o conceito com uma ambiguidade de que ele não consegue se libertar. Para que a contradição fosse ultrapassada ter-se-ia de supor que o estrato pré-teórico já se orientasse em direção ao processo de fundamentação e desenvolvimento do sentido pleno a ser alcançado pelo plano teórico. O que equivaleria a dizer que Husserl concebia que a intencionalidade da consciência humana é teleologicamente orientada. Só assim a manipulação técnica seria possível de manter-se coerente com o investimento teórico.
Dito de maneira menos rigorosa, apesar de toda sua admiração por Edmund Husserl e mesmo sabendo o que o nazismo fez o filósofo de ascendência judaica sofrer – sua Krisis, por exemplo, só pôde ser publicada na Alemanha em 1954 -, Blumenberg notava que sua falha derivava de não haver submetido sua indagação ao questionamento radical de toda a herança acumulada desde a vitória socrático-platônica. Por não o ter feito, seu diagnóstico da crise da consciência europeia se tornava inconsciente. Por essa razão, se mostra mais relevante entender como Husserl entendera o papel da técnica dentro dessa crise, e a correção que Blumenberg propunha.
Para Husserl, foi a “essência das ciências modernas da natureza” que conduziu “à abstração que lhes é fundamental”.20 Seu questionador respondia:
Não foi a transformação teórica que provocou a saída do mundo da vida senão a consciência de sua condução que contaminou todo processo (die Inkonsequenz ihrer Durchfuhrungließ den Gesamtprozeß Kritisch werden).21
O malogro da interpretação ante a crise constatada resultava da ambiguidade, já aqui notada, no “mundo da vida”. Para que a “abstração” das ciências da natureza, a que Husserl se referia, não tivesse levado ao descompasso entre o investimento teórico e a tecnificação resultante seria preciso que o momento pré-teórico do começo da história tivesse um caráter de inocência, favorecedora do “bom sentido” que a abstração absorvera e eliminara. Ora, argumenta Blumenberg, isso não sucedeu porque a “tecnificação é ‘a metamorfose da configuração de sentido originalmente vida’ em método, que se transmite, sem ser acompanhada de ‘seu sentido de fundamentação’(…)”. 22
A misinterpretation de Husserl derivava da manutenção do mito moderno do “bom selvagem”. A correção de Blumenberg consistia simplesmente em afastá-la. Em vez de o desenvolvimento das ciências da natureza ter provocado o divórcio entre teoria e práxis, promoveu sim o que Husserl considerava sua aberração. Isso porquanto toda ciência realizada termina por propor um método “e todo método traz consigo uma irrepetitividade irrefletida, um fundamento crescente de pressupostos, que sempre entra em jogo, sem ser atualizado em cada oportunidade”.23 Em palavras mais simples: o domínio da ciência supõe “a renúncia de sentido” (Sinnverzicht) e não “a perda de sentido” (Sinnverlust) como Husserl postulara.24 Ou ainda mais diretamente: “A tecnificação, no sentido de uma perda de autocompreensão e de autoresponsabilidade, é uma transformação originada no seio de todo o processo teórico”.25 Ou seja, a opção incondicional pela ciência levou o Ocidente à situação que a Husserl parecia patológica, sem que ele ou qualquer outro pensador pudesse saná-la. Pela contra argumentação de Blumenberg, era uma ingenuidade, alimentada pela erudição filosófica, supor que a fenomenologia servisse de terapia ao quadro exposto. Estabelecida a prioridade da ciência frente à ideia que a filosofia guardava de si como preceptora do pensamento, passava a não haver aberração, falseamento da intencionalidade originária ou abstração. A crítica de Heidegger à ciência por certo não repete a ingenuidade de seu mestre, mas tampouco sua concepção de verdade, como um ocultamento que se desvela de súbito e descontinuamente, é capaz de oferecer alguma solução. Desde que concentrou seu máximo potencial no desenvolvimento das ciências, o Ocidente passou por certo a viver uma crise. Mas, por terrível que ela seja, em vez de patológica é a decorrência da própria opção feita. (O fascínio que o marxismo então desenvolveu se associa à promessa de oferecer uma alternativa. O marxismo soviético se encarregou de logo desmanchá-lo.)
Em suma, é dentro desses parâmetros que se põe o problema da metáfora em Blumenberg. Fique bem claro, contudo, que seu questionamento não se propõe como solução para uma crise que não deixa de ser verdadeira porque fosse desarrozoado o entendimento que Husserl dele oferecia. Em ensaio que aqui não devolvemos, há uma frase que, em sua formulação irônica, contém a dramaticidade com que Blumenberg encara nada menos que a condição humana: “Tão logo deixa de haver o que se tinha por ‘real’, as próprias substituições se tornam ‘o real’.”26 Se o real, por tanto, é sempre a invenção fantasmal que tranquiliza e, ao mesmo tempo, assombra o homem, o requestionamento da metáfora ao menos franqueia uma porta ante a completa oclusão a que os tempos modernos e, mais precisamente, a modernidade, sucessiva ao otimismo iluminista, nos tem submetido.
Comecemos por observar que semelhante requestionamento supõe retirar a retórica do menosprezo, posterior ao prestígio que o Renascimento lhe concedeu, com que os tempos modernos a encararam, aumentando a secundariedade a que ela esteve filosoficamente sujeita desde Platão. De maneira sumária, pode-se dizer: desde que se considera a linguagem como transmissora da verdade, a retórica é tomada como ornamento e superfluidade. Pois, se o enunciado é capaz de dizer o que é, a fala deixa de ser honesta e verdadeira quando procura explorar algum ângulo que não entre no que então se toma por “real”.
Por si mesma, a retórica de imediato se destaca por dois traços: “A retórica cria instituições onde faltam evidências”;27 “tudo que permanece aquém da evidência é retórica”.28 Por isso, para falar com Descartes, “ela é o órgão da morale provisoire”.29 Ou seja, da moral passível de vigorar enquanto o princípio do cogito não esteja plenamente e seja de fato praticado. Aqueles traços não se confundem com seu elogio senão que acentuam seu caráter transitório, modificável e adverso à concepção da verdade como permanente.
À mudança de concepção da retórica corresponde o reposicionamento da metáfora. É ocioso repetir que a secundariedade a ela concedida vinha desde a obra platônica (não esqueçamos que a mímesis fazia parte da tékhne – com a ressalva considerável, mas não absoluta de Aristóteles) e que essa posição subalterna se acentua nos tempos modernos, tanto com Bacon, quanto com Descartes. Sua posição torna-se passível de mudança apenas com Kant. Partindo, na Crítica da razão pura, da afirmação de que não há conhecimento efetivo senão precedido por uma intuição sensível, de que espaço e tempo constituem suas formas puras e apriorísticas, decorre que sem aquela intuição não há conceitos empiricamente verificáveis. A seu lado, porém, se dispõem os conceitos do entendimento, que se fundam no que em Kant recebe o nome preciso de esquema. (Assim “o esquema das categorias quantitativas é o número, ao passo que os [esquemas] das categorias de qualidade são ser no tempo (realidade), não-ser no tempo (negação) e o mesmo tempo preenchido e vazio (limitação) CRP A 143/ B 182”30). Além deles, há ainda os conceitos puros da razão, as ideias, que não constituem propriamente objetos do entendimento, sem que, por tanto, haja possibilidade de uma ciência das ideias.
Recorda-se a distinção Kantiana para, a seguir, lembrar-se a significação que kant, usando a designação de “símbolo”, empresta à metáfora:
A metáfora é claramente caracterizada como modelo em função pragmática, pelo qual nos é fornecida uma regra de reflexão, que se deve empregar no uso da “ideia de razão”, sendo, por conseguinte, “um princípio não da determinação teórica do objeto (…) no que ele é em si, senão da determinação prática do que a ideia do objeto deve ser para nós e por seu uso finalístico” (zweckmassig).31
É a partir dessa sua dedução que Blumenberg extraía nos Paradigmas, portanto já e, 1960, no momento em que participava da elaboração do Dicionário histórico, o princípio capital da metáfora absoluta:
Serem essas metáforas chamadas absolutas significa apenas que resistem à exigência terminológica, que não possam ser absorvidas pela conceitualidade, que uma metáfora não possa ser substituída por outra, representada ou corrigida por uma mais precisa.32
Por si só, a passagem parece ocasional. Sua importância só se mostra pela leitura paciente dos Paradigmas, dos diversos ensaios em que a metáfora absoluta é referida e da obra que aqui se traduz. Ela consiste em compreender como Kant dava condições de ir-se além do conceito, sem parar na especulação das ideias. Dito de maneira mais direta, desde a Antiguidade clássica, confundindo-se a metáfora com uma figura da linguagem, adequada, portanto tão só a seu uso ornamental – outra vez, Aristóteles seria a execeção, embora não sistemática -, o conceito aparecia como o grau mais alto no uso da palavra. Como Blumenberg a desencava da genialidade kantiana, a metáfora absoluta assinala que o conceito, mesmo o mais afastado das formas de intuição, não cobre todo o nomeável da experiência humana. É o que sucede tipicamente com a suposição da verdade. Blumenberg passa em revista definições propostas para ela desde a Antiguidade e a Idade Média, e destaca a formulada por Tomás: cognitio est quidam veritatis effectus.33 Ela se diferencia porque, em lugar de uma definição da verdade, ela é apresentada como efeito da cognição. Ou seja, Tomás renunciava a aprender sua causa formal e a expunha enquanto causa eficiente. Em sua formulação, não há qualquer expressão metafórica senão que o enunciado alcança uma unidade de sentido pelo qual “se pode aceder a uma produção metafórica diretora”, a partir da qual “o enunciado pode ser comprovado (abgelesen)”.34
Não haveria espaço para desdobrar-se o exame da impossibilidade de conceituação da verdade. Recorro, por isso, ainda apenas à observação de Hume, no Treatise of Human Understanding:
Quando estou convencido de um princípio qualquer, é apenas uma ideia que me atinge com mais força; quando dou preferência a um conjunto de argumentos sobre outro, não faço mais que decidir, partindo daquilo que sinto, sobre a superioridade da influência.35
Apesar da distância de suas posições filosóficas, Tomás e Hume são bastantes para a conclusão que Blumenberg oferecia: “O destino da ‘verdade’ é cada vez mais entregue ao jogo imanente das faculdades do sujeito.”36 Ou seja, a verdade necessariamente é temporalmente modificável.
A passagem, que antes citamos sobre as “substituições” do real,37 permite-nos entender por que ao homem é indispensável sempre dispor de algo como “verdade” e, em consequência, como “real”, como essa admissão varia historicamente e, por conseguinte, como se terá de admitir, embora o próprio Blumenberg não o faça, a irredutibilidade, nas operações cognitivas, da subjetividade.38
Reitere-se ainda: o princípio da metáfora absoluta, pondo em xeque a imprescindibilidade e a superioridade do conceitual, era, no seu início, pensado como um meio auxiliar no estudo da formação dos conceitos. Esta, com efeito, era a visada de Blumenberg, enquanto trabalhava sob orientação de Rothacker. A obra inédita que nos deixou e que agora se apresenta em tradução para o português revela que já fora além daquela etapa. A metáfora absoluta significa que, assim como Kant descobrira que a Kritik der reinen Vernunft só dava conta de uma parcela do mundo da experiência humana, Blumenberg compreende que a metaforologia em que se empenhara vai além da condição de coadjuvante dos conceitos.
A ampliação de seu uso não poderá vir a servir para que se rompa o impasse derivado da primazia concedida à ciência sobre as demais formas discursivas? Isso não ameaçará o império da ciência, mas daria condições para que a arte, as especulações filosófica e religiosa deixassem de se confundir com um incômodo resto, que apenas dispersa talentos e encare o orçamento das nações.***
Rio de Janeiro, abril de 2012.
***Com os agradecimentos do tradutor a Doris
Offerhaus, sem cuja prestimosa ajuda corri o risco de desistir de entender várias passagens do original.
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* Luiz Costa Lima é Teórico de Literatura e professor emérito da PUC-RJ.
** Teoria da Não Conceitualidade, de Hans Blumenberg. Tradução: Luiz Costa Lima. Editora UFMG, 2013. Gentilmente cedida pela editora.
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1Hans Blumenberg, Die Legitimität der Neuzeit [A legitimidade dos tempos modernos], Frankfurt a. M., Suhrkamp Verlag, 1966 [ed. Revista em 1988].
2Carl Schimitt, Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität, 8. Aufl., Berlin, Duncker & Humblot, [1922] 2004, p. 43.
3Martin Heidegger, Nietzsche, 5. Aufl., Pfullingen, Verlag Günter Neske, [1961] 1989, v. II, p. 146.
4Foessel, Le modèle dela secularization, p.31.
5 Hans Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie [1960], Frankfurt a. M., Suhrkamp Verlag, 1998, p.193.
6 Apud Foessel, Le modèle de la secularization, p.33.
7 Ibdem, p. 37.
8Ibdem, p. 43.
9Blumenberg, Arbeit am Mythos, p.13.
10 Idem, Lebenswelt und Technisierung unten Aspekten der Phänomenologie, p.9.
11Ibdem, p.13.
12Ibdem, p.18
13Ibdem.
14 Ibdem, p.21
15Ibdem.
16Ibdem, p.22.
17O colchete [], infiel ao texto original, foi por mim introduzido com o propósito de assinalar que a “evidência” esteja sendo considerada como a resultante de uma “intuição plena”.
18Blumenberg, Lebenswelt und Technisierung unten Aspekten der Phänomenologie, p. 22-23.
19 Ibdem, p.23.
20Ibdem, p.24.
21Ibdem.
22Ibdem, p.31-32.
23Ibdem, p.42.
24Ibdem.
25Ibdem, p.40.
26Idem, Anthropologischen Annäherung an die Aktualität der Rhetorik [1971], em Wirklinchkeiten in denen wir leben, p. 120.
27Ibdem, p.110.
28Ibdem, p.111.
29Ibdem.
30Howard Caygill, Dicionário Kant, trad Álvaro Cabral, rev. Técnica Valério Rohden, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, [1995] 2000, p. 126.
31Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, p. 12.
32Ibidem, p.12-13, grifo meu.
33Ibidem, p.20.
34Ibidem.
35David Hume, Tratado da natureza humana, trad. de Deborah Danowski, São Paulo, Editora UNESP, [1740] 2000, p. 133.
36Blumenberg, Paradigmen zu einer Metaphorologie, p. 20
37Hans Blumenberg, Anthropologischen Annäherung an die Aktualität der Rhetorik , p. 20
38Com isso, em vez de problemática oposição entre sujeito e objeto, temos que a subjetividade é tão objetiva como o objeto, restando ao sujeito confundir-se com a consciência, sua ação na composição das posturas adequadas aos frames e a diferenciação dos interesses a que serve.