Jogos da Natureza – Parte IV – Capítulos 7 e 8
CAPÍTULO 7: Jogo da Criação: Versão antiga
– “Vamos começar por este?”
Era o que menos atraía Maria Luisa. Mas não pôde refletir nesta questão, pois foi literalmente projetada no jogo. Imediatamente começou um diálogo inesperado que interessou muito à menina. É bem verdade que no começo desta conversa ela teve momentos de ansiedade e medo pois a figura que estava à sua frente e que tentava estabelecer uma conversa normal com ela era positivamente apavorante.
Ela podia jurar que já o vira em algum lugar, talvez mesmo em sua própria casa, possivelmente em um quadro, uma fotografia, dentre as inúmeras que seu pai espalhava por seu escritório.
Finalmente, depois de um bom esforço de memória, conseguiu recordar: era uma figura de um quadro do grande humanista, poeta e desenhista inglês, William Blake. E ela sabia de onde vinha esse medo, esta angústia que sentia. Esta figura, que ficara durante vários anos bem na frente da mesa do dr Luis, era, com efeito, aterrorizante. Tratava-se de um gigante, um semi-deus – talvez a imagem divina humanizada – com longas barbas brancas que pareciam balançar ao vento. Ele estava debruçado – em verdade ajoelhado – dentro de uma gigantesca nuvem que se confundia com o Sol. Havia um clima estranho, fantasmagórico, sublime neste quadro. Talvez esta impressão viesse da ação que ele parecia estar realizando. Ele trazia em sua imensa mão um compasso e o abria entre configurações celestes, como a querer associar sua potência à medida dos astros. Como se estivesse fazendo mais até do que isso. Não simplesmente medindo os céus pré-existentes, mas como se os estivesse fabricando. Parecia um engenheiro, confirmando através de uma medida a exatidão de sua obra. Era essa a primeira impressão: como se ele fosse o criador destes céus, deste universo. Isto é, o quadro representava uma situação singular de um criador de mundos em ação. E esse personagem, semi-humano, semi-deus, estava agora à sua frente, em seu quarto, conversando tranqüilamente com ela!
M Luisa vivenciara tudo isso com o coração, com um sexto sentido que a agitou. Mal teve tempo de pensar nisso pois ele começou a falar. Embora sua voz fosse potente e estrondosa, havia uma certa doçura nela, permitindo-lhe ganhar pouco a pouco sua confiança, diminuindo sua angústia e temor iniciais de tal modo que a conversa pôde se estabelecer até mesmo com uma certa intimidade inesperada.
A menina percebeu que ele tinha se dado conta do susto inicial que ela levara ao identificá-lo com um deus e procurava por todos os meios acalmá-la, conversando de modo tranquilo, sobre assuntos simples, para distrai-la. Como ela parecia interessada pelos jogos da natureza resolveu começar por aí.
– Você deve saber que a característica mais importante e que pode influenciar as etapas de evolução de um jogo, depende da situação do jogo no seu começo, aquilo que constitui seu estadoinicial. Esta configuração inicial varia muito de jogo para jogo, como o dr Luis um dia te explicou.
A princípio a menina teve dificuldades em compreender a quais jogos ele se referia. Havia conhecido tantos jogos nestes últimos tempos e já nem acreditava que havia um jogo mais especial, mais global, mais interessante, mais envolvente do que os outros. Ademais, como ele sabia sobre o quê ela conversava com seu pai? Mas como estava se acostumando ao inusitado, ao invés de perguntar isso lembrou que, com efeito, um dia tinha perguntado a seu pai qual o jogo que a Natureza jogava.
– A que jogos você se refere?
– Xadrez e Go, por exemplo. Embora o cenário fundamental, o pano de fundo, o palco, o tabuleiro básico onde se desenrolam as ações, os movimentos, as diferentes batalhas tramadas pelos participantes, seja o mesmo, para ambos os jogos, no começo as peças estão colocadas em situações diferentes, arranjadas de modo complementar.
Ele falava de um modo tão simples e direto que ela chegou a rever mentalmente esses tabuleiros.
Por exemplo, no jogo de xadrez a configuração inicial contém todas as peças, tudo que existe e existirá neste jogo. Todos os personagens do jogo estão presentes. Alguns irão desaparecer no desenrolar, mas nunca ocorrerá o caso de aparecer um personagem novo. O jogo permite a perda de algumas peças, mas não o aparecimento de novas. Essa é uma regra fundamental, constitui exemplo de uma lei absoluta, que não pode ser violada. Mudar essa propriedade equivale a abandonar este jogo.
Ao contrário do xadrez, onde no começo encontramos essa configuração completa, fechada, cheia; no Go, no início nos deparamos com um vazio. A situação inicial, no Go, o que chamamos de espaço do jogo inicial, é o espaço vazio, o tabuleiro não contém nenhuma peça. Mas não podemos esquecer que afinal de contas, as peças existem. Estão presentes em algum lugar, escondidas em um reservatório anexo, do lado de fora do tabuleiro. E vão aparecendo uma a uma, à medida que o jogo se desenvolve.
Assim, por analogia, como se as leis da natureza pudessem ser identificadas com as regras de um jogo, poderíamos perguntar – como você fez ao dr Luis – se tudo-que-existe, o universo inteiro apareceu em um instante único de criação total ou se parte dele teria aparecido em momento posterior. Ou até mesmo, se alguma parte poderia ainda estar escondida, em algum outro lugar.
– E como posso saber disso? – perguntou, entrando no ritmo da conversa.
– É preciso olhar em todos os lugares e mesmo além!
– Mas isso é impossível! – retrucou a menina.
Angustiada com esta conversa que parecia não levar a nenhuma conclusão definitiva, a menina ensaiou mudar de assunto, mas nenhuma idéia lhe vinha à cabeça. Sem maior interesse perguntou:
– E quando começa este Jogo?
– Se você se refere ao Jogo da Criação, saber quando ele começa faz parte dele. Aliás, segundo algumas regras esta é a parte mais importante. Tão importante que saber isso já é se aproximar do seu final. Ademais, isso depende também de uma convenção que se faz fora do jogo. Quer ver um exemplo?
Esperou a menina responder. Mas ela entendeu que não se tratava de uma verdadeira pergunta que precisasse de resposta. Visto que ele parara de falar e percebendo o jeito como ele a olhava, fez um sinal afirmativo com a cabeça, e ele continuou.
– Vamos comparar, por exemplo, o jogo de xadrez com o Go. Alem do tabuleiro comum, as peças devem estar disponíveis. Mas enquanto o Go começa com a entrada de um só personagem – um peão qualquer, colocado em um ponto de encruzilhada do tabuleiro – no xadrez, antes que se considere o começo do jogo, deve-se colocar as peças no tabuleiro em uma ordem específica. Veja que qualquer um pode fazer isso, a mesma pessoa pode até colocar todas as peças – brancas e pretas – sem que isso seja considerado o começo do jogo! Isto é, as condições iniciais deste jogo não se identificam com a colocação das peças no tabuleiro. Essa etapa é considerada anterior e definitivamente, não faz parte do jogo. Continuando a analogia deste jogo com a história científica do mundo, os cientistas pensam cenários de criação de modo semelhante como se a matéria que constitui tudo-que-existe tivesse aparecido ou de um modo ou de outro. Isto é, ou ela foi criada inicialmente por alguma ação de fora do jogo ou ela foi criada depois que se iniciou o mundo! E com ela teria sido criada, ao mesmo tempo, algumas das regras do jogo. O dr Luis, por exemplo, acredita na segunda possibilidade. Mas ele tem poucos cientistas do seu lado. Muitas pessoas acreditam até que esta idéia é pouco provável que seja verdadeira.
Ela achou isto um despropósito. Conhecia melhor do que qualquer pessoa a lista enorme de cientistas que pensavam como seu pai, mas ao invés de retrucar ficou pensativa. Estava interessada em outra questão. Ela não entendera porque ele se referira a algumas regras. Ora, as regras de cada jogo não estão definidas de antemão? Antes do jogo começar? Porque se as regras vão mudando à medida que o jogo evolui, então seria preciso – mais do que isso, seria indispensável – existir uma super-regra para controlar estes tipos de modificação.
Parou um pouquinho com este pensamento e logo se deu conta que esse processo não tinha mais fim, pois se levássemos isso a sério, teríamos que pensar nas variações das super-regras bem como nas correspondentes regras que deveriam controlar essas variações e assim sucessivamente, em um processo que não teria fim. Isto mais parecia um paradoxo.
Ele interrompeu seu devaneio.
- Isto não é para discutir agora. Um dia possivelmente você irá se ocupar disso, dessa sequência de criações. Hoje, aproveitando essa nossa conversa sobre Go e Xadrez, vamos tratar somente de um desses casos que é muito possivelmente, o que deve te interessar mais: o Jogoda Criação deste universo. Algumas etapas desse jogo são extremamente delicadas e tem-se que usar de muito cuidado para não se atrapalhar e imaginar que este jogo possa ser jogado sem uma longa, bem longa preparação. Por exemplo, para saber como funcionam as regras desse jogo é indispensável, logo no começo, definir com muita precisão o que significa existir.
– Papai diz que o que existe é o que é observado. Ou aquilo que pode, em principio, ser observado, de qualquer modo, usando todos os instrumentos disponíveis, os mais avançados possíveis.
– Eu sei. Como todo bom cientista, ele prefere uma definição simples e prática, envolvendo um observador impessoal, uma máquina. Mas logo se percebe que esta definição não permite ir muito longe.
A menina não conseguiu acompanhar o que ele dissera. O Demiurgo, sem prestar atenção neste diálogo colateral que ela tinha provocado, continuou sua explicação anterior:
– Pois como eu dizia, deve-se definir com precisão o que significa existir – uma tarefa que é, sempre foi, e sempre será, extremamente difícil. Saber – de verdade – o que é aquilo que chamamos uma coisa. Em princípio parece simples, trivial mesmo. Mas quando tentamos precisar uma definição, qualquer que seja, nos deparamos – aí sim – com uma questão extremamente delicada e que nos arrasta para o domínio que constitui os fundamentos do conhecimento cientifico. É preciso perceber que em verdade existem duas formas distintas de um mesmo jogo, ou melhor, duas versões de um único jogo. Elas se parecem, mas não são idênticas. Algumas das principais regras, fundamentais mesmo, são bem diferentes. Agora, aqui, comigo, neste diálogo em que estamos envolvidos, vamos considerar um só tipo de jogo, uma só dessas versões. Trata-se da mais antiga, à qual estou intimamente envolvido e à qual foi dado um pomposo nome:
Jogo da Criação Mítica
Em verdade, antigamente se chamava mito da criação. Agora, chamamos de jogo. A razão para esse nome é simples: a natureza é lúdica. Joga jogos. Brinca. Como eu e todos meus companheiros. Como tudo-que-existe. Mas nisso vocês não acreditam…
A menina entendeu que ele se referia aos cientistas, aos homens em geral, na tentativa de produzir uma história do mundo usando atitude formal, rígida, fechada, autoritária. Antes que ela tivesse qualquer reação a este comentário, ele continuou no mesmo tom, alegre e um pouco irresponsável:
– “Esta versão”, continuava, “tem mais de dez mil anos! A outra versão, moderna, só apareceu no século XX. Chama-se, como se poderia esperar,
Jogo da Criação Científica
Alguns mais conservadores chamam de mito científico da criação. Estas duas versões possuem muitos pontos em comum e é por isso que se pode falar de um único jogo. Como se elas tivessem passado, para ir de uma versão para outra, por um processo de alteração pelo uso através do tempo. Aliás é assim que acontece com quase todo tipo de jogo: suas regras vão sendo deturpadas, modificadas, à medida que ele é jogado. Algumas vezes estas alterações são tão profundas que, depois de um certo tempo, não dá nem para reconhecer as formas do jogo original.
Fez uma pausa para que a menina pudesse trocar de lado. Ele se deu conta que a enorme diferença de estatura criava um certo desconforto pois ela ficava a maior parte do tempo com a cabeça virada para cima. Quase na horizontal. Ele fez um gesto com a mão para que procurasse um lugar mais adequado. Ela se ajeitou melhor e com um leve balanço da cabeça, deu a entender que estava bem assim. O demiurgo continuou.
– Antigamente, eu acreditava que qualquer regra que se afastasse das minhas, daquelas que definiam o meu jogo deveria ser tratada como indesejável. Mas hoje em dia, estou convencido que nenhuma dessas duas versões é superior à outra. São só diferentes.
A menina ficou contente com essa atitude magnânima por parte de quem considerava uma espécie de deus onipotente. Em um primeiro momento pensou que isto se relacionava ao fato de que estava tentando deixá-la à vontade, pois ela se colocava sempre do lado de seu pai, junto aos cientistas. Esta atitude conciliadora, agradou-a. No entanto, isso poderia ser somente consequência da perda de poder que o Demiurgo havia sofrido nos últimos séculos.
De qualquer modo, ele continuou, sempre gentil:
– Como eu trato da versão mais antiga, sou o responsável natural para explicar estes pontos em comum. O que falamos, ainda há pouco, consiste precisamente numa das propriedades mais importantes do Jogo da Criação, a saber:
a definição do estado inicial.
Se você comparar os dois tipos de jogos de criação que um dia, embora vagamente, você ouviu falar, percebe que ambos se enquadram em uma das categorias destes dois jogos, xadrez e Go. A principal e mais importante diferença que os separa está relacionada com a forma do estado inicial, pois o desenvolvimento do jogo é muito semelhante. Se você quiser me acompanhar posso mostrar como se realizou essa criação completa, de tudo-que-existe.
A menina nem podia acreditar no que estava ouvindo! Então ela iria ver, de verdade, como se criou o mundo? Sem um segundo de hesitação fez um rápido sinal positivo com a cabeça. Estava muito emocionada para poder falar qualquer coisa.
– Bom, então vejamos. Há vários modos de descrever os primeiros passos. Mas o mais simples e comum é o seguinte. A criação do que existe é sempre precedida por um intenso processo no interior de um meio que a singulariza, pois ela não é única.
A menina não entendeu. Estaria ele querendo dizer que há outros mundos, além deste nosso? E que outros Demiurgos estariam criando esses mundos paralelos? Parecia uma loucura, pensou. O dia em que contar isso para papai ele vai rir e muito.
Ele continuava.
– A criação não se deu do nada, mas sim a partir desta espécie de meio especial, prenhe de potencialidades, que é o Vazio.
Ao tomar consciência de si, um Demiurgo se vê mergulhado nesse Vazio. Neste particular jogo mítico, deste nosso universo, sou eu quem organizo estas ações. Mas não pense que faço tudo isso, de criar um mundo, sozinho. Assim como na versão cientifica há vários tipos de agentes fundamentais, aqui também usamos diferentes atores que chamamos genericamente de Demiurgo ou Deus ou Elohim ou dezenas de outros nomes. Eu sou um deles, mas não sou único, pois a minha função …
A menina tomou um susto. Como assim? então ele que tinha um imenso poder – o poder até de fazer um mundo – ele também era limitado! Não era independente? Tinha uma função! Isto é, pensou, uma obrigação! E quem o obrigava?
Sem se ocupar do espanto dela, o Demiurgo continuava:
-… é somente criar o Demiurgo-Prático com a única tarefa de gerar um mundo a partir deste estado inicial. Ao criar este Demiurgo cedo-lhe também o cenário, a estrutura que irá servir de palco e que trouxe comigo ao reconhecer-me no Vazio. Afinal, não se pode querer que um só Demiurgo crie ao mesmo tempo as coisas e o palco…Nos diferentes jogos de criação, em todos os mundos, depois do processo inicial de auto-excitação, realizado pelo Demiurgo-Primordial, segue a criação de um outro Demiurgo que, por simplicidade, chamo Demiurgo Prático. A função dele, como disse, é única e exclusivamente a de criar um mundo.
Ele pode criar as diferentes coisas que existem ou em etapas sucessivas ou de uma só vez. Isso dá origem a dois tipos de mundos, com histórias bem diferentes que dependem, quase exclusivamente, do tempo de duração gasto para completar a respectiva criação, e que divide-se em duas classes:
*Criação instantânea de tudo-que-existe;
*Criação contínua.
Cedo ou tarde você irá descobrir que os cientistas, em sua versão do jogo da criação, usam uma divisão muito parecida com essa. No primeiro caso, como o próprio nome indica, trata-se de uma criação de um só golpe, de um só momento, bem semelhante ao que se costuma chamar big-bang. O segundo caso é menos preciso: o tempo de cada uma destas criações varia, podendo ser extremamente rápido ou bem longo. Pode acontecer mesmo em uma situação extrema, que esta criação nunca seja interrompida, que ocorra durante toda a existência de cada mundo particular. Há mesmo quem acredite que isso poderia estar ocorrendo neste mundo aqui. Em suma, o mundo seria recriado a cada instante.
– Mas você, digo o senhor, não deveria saber disso?
– Minha filha, depois de exercer minha função e criar o Demiurgo-Prático, eu fui aposentado…
Isso ao mesmo tempo que espantou tremendamente ML, respondeu à pergunta que ela trazia preparada:
* o que poderia acontecer com o Demiurgo depois de sua ação de criação?
Ele continuava:
– Podemos resumir a situação da seguinte forma. Alguém, alguma coisa, atua no estado inicial. No vazio, como no jogo de Go ou no que-existe, como no xadrez. Você já viu que este vazio não é completo, total. Nem mesmo os cientistas conseguiram manter o vazio absoluto! Embora durante muito tempo eles pensassem que o que existe, o mundo, nada mais seria do que a direta e, até certo ponto, esperada consequência do horror que a natureza teria pelo vazio. Mas os cientistas, como você vai ver lá no mito cientifico da criação, já não acreditam mais nisso. Nos dois jogos da criação – o mítico e o científico – o vazio inicial possui esta característica peculiar de conter essa possibilidade latente de produzir um mundo. Este estado vazio inicial, não-absoluto, contém algo latente que vai ser realizado, isto é, tornado real, por um Demiurgo. Em uma das descrições do mundo que os cientistas propuseram, tanto o estado inicial quanto o estado final do universo é o mesmo e podem ser identificados com este Vazio latente. Assim como nos mitos este estado inicial não requer uma explicação, mas só auto-consistência.
A menina estava maravilhada e ao mesmo tempo confusa. Esta história parecia inverossímil, mas as semelhanças existentes entre várias características destes mitos antigos com os chamados mitos científicos precisavam ser examinadas para ver se havia realmente uma correspondência completa, como ele pretendia.
MLuisa se lembrava de ter ouvido seu pai contar uma história um pouco diferente…mas ela não podia garantir isso.
– Quando você quiser entender mesmo isso, continuou o Demiurgo, deve começar por estudar o que as antigas civilizações fizeram. Pois, continuava ele, as formas do mundo antes da criação …
MLuisa não podia aceitar essa frase. Cada vez que ele se referia ao que havia antes da criação do mundo, ela torcia o nariz como se duvidasse – e muito – da história que ele estava contando. Não que ela duvidasse dele. Não era isso. Aceitava muito bem que ele estivesse contando uma história verdadeira, isto é que, por exemplo, há sete mil anos atrás, lá nas encostas do rio Nilo, nossos antepassados egípcios ou outras civilizações igualmente antigas teriam desenvolvido crenças do nascimento do mundo semelhantes ou idênticas às que o Demiurgo contava. Não queria mostrar a ele o quanto achava esta história ridícula e impossível de ser acreditada.
Ela sabia muito bem que agora com o formidável desenvolvimento da ciência estas histórias tinham perdido muito – senão totalmente – seu interesse e se revelavam como nada mais do que uma historinha infantil, um conto da Carochinha que – justamente na infância da humanidade – teria tido sua importância. Mas agora, esta história nada mais era do que uma curiosa referência passada, sem maior valor. Certamente a versão científica, as regras que seu pai e seus colegas tinham produzido, era muito superior.
Como se tivesse lido os seus pensamentos o Demiurgo comentou.
– Eu até entendo que você pense assim. Mas é preciso saber – e nós iremos ver isso – que o que teu pai e seus colegas dizem, não é muito diferente do que acabei de contar…
Isso certamente soou muito escandaloso! Fez um pequeno sinal com a mão como a dizer que certamente não acreditava nisso. Dava até para perceber que ela considerava esta frase ….ridícula.
– Deixe-me resumir o que falei. O Demiurgo-Primordial – que neste particular mundo aqui sou eu, elabora uma pequena parte da criação: o tabuleiro, o cenário onde um jogo – xadrez ou Go – vai acontecer. Criar o tabuleiro é muito difícil. Criar as peças depois ou colocá-las no tabuleiro é uma função bem mais simples e que não precisa de um esforço maior a não ser o de seguir certas regras. Mas é importante saber que, mesmo no interior de um mundo, outras novas regras podem aparecer. Pois bem, neste cenário completo que foi feito, o Demiurgo-Prático concedeu alguma liberdade à sua criação, a tudo-que-existe e, claro está, ao próprio homem. Dentre estas, a mais notável consiste na possibilidade de construir à sua vontade, independentemente, uma imagem da criação do mundo que não seja esta verdadeira que contei.
MLuisa ficou confusa. Não pela crença dele de que a história (estranha e muito curiosa) que contara fosse verdadeira; mas sim porque esta afirmação dele dava a impressão que alguma auto-referência poderia estar acontecendo aqui, o que se confirmou logo em seguida.
Ele aproveitou o silêncio que se seguiu para acrescentar:
– Com efeito, estes cenários cosmológicos que os amigos de teu pai têm criado, se aproximam – e muito! – destas diferentes etapas que criamos, lá na aurora das civilizações.
Ele considerou o silêncio continuado da menina como uma prova de que ela acompanhava e, até certo ponto, concordava com ele e resolveu acrescentar mais um pouco de informação.
– O Demiurgo Prático estabelece alguns movimentos do Jogo, mas a parte fundamental, o jogo propriamente dito, é jogado entre ele e a natureza. É nesta parte prática que eles interagem para criar tudo-que-existe.
MLuisa não conseguiu entender. Que história era aquela de “…natureza criar tudo-que-existe”? Resolveu perguntar.
– Isso quer dizer que a natureza é anterior a tudo-que-existe? Mas então, que coisa é esta que estamos chamando de natureza?
Ao invés de responder, ele continuou:
– Há vários mundos. Mas este aqui que participei da criação teve sua história reescrita pelos cientistas, graças a esta liberdade que lhes foi dada. Este mundo que criamos é tão especial, tão auto-consistente, que lá no seu começo estabelecemos sua evolução de um tal modo que mais adiante, depois de muitos acontecimentos extraordinários, estabelecemos as condições para que aparecessem agentes – os homens – que iriam construir uma história da criação do mundo diferente desta verdadeira – esta que estou contando. São precisamente estes cenários cosmológicos científicos que você se refere que, cientistas como seu pai, estão desenvolvendo.
MLuisa foi aos poucos percebendo que isso parecia fantasticamente semelhante à inversa do famoso princípio antrópico, que seu pai lhe contara!
Parecia que se podia repetir o que o demiurgo havia dito de um outro modo e que simplificadamente seria mais ou menos assim :
O Universo que conhecemos, que os cosmólogos examinam e cuja evolução descrevem – chegando mesmo a propor modos possíveis de análise dos momentos primordiais de sua formação, isto é, de seu nascimento – teria sido criado por estes deuses ou Demiurgos, de tal modo que em sua origem, no instante mesmo de sua criação, em seu corpo físico real, estaria embutida a informação que nortearia sua evolução para que fosse possível o aparecimento futuro de homens que produziriam teorias sobre as origens deste mundo na qual este Demiurgo – que o teria criado – não desempenharia papel algum!!
Para seu espanto, isso parecia estar intimamente ligado ao famoso princípio antrópico que alguns cientistas haviam adotado. Esta aqui seria uma versão modificada, adaptada ao cenário descrito pelo Demiurgo. Como se ele opusesse, ao princípio antrópico dos cientistas, a sua inversa!
MLuisa foi correndo contar o sonho para seu pai.
– – – – –
CAPÍTULO 8: Jogo da Criação: Versão moderna
O dr Luis estava muito preocupado. M Luisa tinha apreciado – e muito! – a leitura que havia feito sobre os modos pelos quais antigas civilizações produziram suas cosmogonias, suas diferentes
histórias sobre o nascimento do mundo. Isso certamente não lhe agradava.
Ele se sentia responsável, pois fora ele que havia dado, como presente, um belíssimo livro onde vários mitos da criação que antigos povos, os mais conhecidos, de diferentes regiões do mundo, na aurora da história haviam construído são apresentados de modo tão atraente que a menina não parou de ler a semana inteira.
Ela sonhara, mais de uma vez, com essas histórias e comentado que nestes sonhos aparecia, como personagem central, a figura grandiosa e aterrorizante de um gigante que correspondia à gravura que seu pai mantinha à frente da mesa em seu escritório. Ele costumava dizer que essa era a pintura mais atraente extraída dos livros de William Blake.
No começo ela ficara com medo – apavorada, mesmo – mas à medida que o sonho se desenrolara, desenvolveu-se entre eles uma conversa normal, agradável que a tinha feito mudar de opinião sobre aquelas leituras. Isso a levara pensar que os diferentes cenários que os cientistas inventaram para descrever o universo em sua totalidade, – incluindo seus momentos iniciais de formação – e que seu pai lhe explicara, não lhe pareciam muito diferentes dos mitos de criação das civilizações antigas.
Essa observação deixara o dr Luis muito tenso.
-“Ora”, disse quando ela fez este comentário, “isto é completamente fora de propósito, um absurdo! Não se pode comparar o conhecimento científico com essas fantasias ingênuas!”
Embora MLuisa sempre tivesse se comportado de modo independente e com idéias próprias, essa era a primeira vez, no que se referia à cosmologia, que manifestava uma opinião diferente da de seu pai. Para tentar modificar esta visão e fazê-la voltar a compreender a superioridade da versão cientifica, o dr Luis tinha tomado uma atitude drástica: levá-la para passar uma tarde inteira, com o professor Friedmann, o principal responsável pelo cenário cientifico atual de descrição completa do universo, em seu lugar de trabalho, o CBPF.
– Podemos tratar o professor Friedmann como um demiurgo moderno, o nosso demiurgo científico, disse, em um tom que parecia brincalhão, mas que bem podia, em sentido mais amplo, ser estritamente verdadeiro.
A visita de MLuisa ao professor Friedmann
Se a experiência com o Demiurgo tinha passado por altos e baixos, transformando o medo inicial em agradável sensação de admiração que se seguiu ao tranquilo diálogo que tiveram, a do professor Friedmann foi bem diferente. Não havia possibilidade de temer o bom homem. Sua figura gentil, agradável, prestimosa, quase de espontânea amizade instantânea, o uniu de imediato à menina. É bem verdade que muitos detalhes de seu comportamento, tinham uma extraordinária semelhança com os de seu pai. Logo se deu conta que não podia tocar em suas canetas, nem seus livros e muito menos em suas coisas mais pessoais, tais como sua garrafa de água mineral exposta em sua mesa de trabalho, e coisas desse tipo. Enquanto isso lhe causava ansiedade quando se tratava de seu pai, reconhecer neste bom velhinho hábitos semelhantes, ao contrário, lhe causou de imediato um certo conforto, como se os reconhecesse. Talvez essa tenha sido uma das principais razões pelas quais ela o considerou uma pessoa “muito agradável”, como disse no mesmo dia para o dr Luis.
Logo começaram a conversar e Mluisa se pôs a descrever detalhes da criação do mundo que o Demiurgo lhe contara, para tentar impressioná-lo. Em seguida, sem esperar nenhum comentário, foi perguntando:
– E para os cientistas, a criação do mundo, de tudo-que-existe, foi diferente? menos fantasiosa? menos imaginativa?
Com seu ar bonachão e sem se preocupar com a aparência zombeteira do tom que ela impôs à pergunta, o dr Friedmann começou a explicar.
– Antes de tratarmos desta questão – que me agrada muito, é bom que se diga – é mais conveniente começarmos por falar um pouco sobre uma outra questão, menos crucial, um pouco mais conhecida mas que é, certamente, uma etapa anterior necessária para que se possa entender melhor os mecanismos de criação que os cientistas têm à disposição.
Seu jeito de falar lembrava muito o Demiurgo. Ela pensou que talvez a brincadeirinha de seu pai, chamando-o de demiurgo científico, iria acabar se tornando realidade.
Como a menina tinha explicado que o Demiurgo tratara sempre dos mitos de criação como se fossem jogos, ele entrou no mesmo esquema sem demonstrar nenhum constrangimento com isso, mas também sem lhe dar importância – como se fosse nada mais do que um modo curioso de falar.
- Em verdade, é bom que se diga, há duas formas distintas deste jogo, correspondendo a dois modos de descrever o mundo. Um, que chamamos de criação local, e outro de criação global. Se tivermos oportunidade, em outra ocasião contarei algumas novidades que os cientistas vêm descobrindo e que fazem entender que essa divisão é uma boa simplificação da realidade. Aqui, trataremos de situações simples, deixando as complexidades para outra ocasião.
Comecemos pelo modo de criação local. O dr Luis deve ter te explicado que cada partícula que existe, cada campo da Fisica, possui o seu vazio, o que os físicos costumam chamar o seu vácuo, que nada mais é do que o estado fundamental. As partículas que podem frequentar este estado são virtuais. Isto é, não são de verdade. Alguns destes estados são estáveis, outros são instáveis. Como você deve ter percebido, este vazio não é o que comumente chamamos desta forma. Trata-se de uma propriedade válida lá no microcosmos, no mundo quântico. Por isso ele é chamado de vácuo quântico.
A menina achou estranho que ele tivesse usado a palavra frequentar. Dava a impressão que este vácuo seria um estado de passagem, não um estado permanente, que se poderia reconhecer como parte integrante do mundo.
– A estabilidade deste estado, continuou, não é nem necessária, nem em certas situações, desejável. Ao contrário, vazios instáveis são bastante importantes e, vamos ver a seguir, indispensáveis para o Jogo da Criação de tudo-que-existe.
Ademais, sabemos que, graças a esta instabilidade, algumas partículas se desintegram em outras mais estáveis. Consequentemente, maior ou menor estabilidade não é um bom critério para caracterizar o que existe.
Ela ficava admirada por ver que ele tratava, o vazio, como uma coisa real. Dava a impressão que para ele, este vazio era um estado observável como qualquer outro! Achou que deveria perguntar isso.
– Mas qual a diferença entre uma partícula de verdade e uma virtual?
– Entre muitas outras, a mais abrangente, a que tem maiores consequências, a que choca mais o bom-senso, é que as virtuais não precisam satisfazer as regras do Jogo de Proibição. Em outras palavras, podem violar algumas leis da física, dentre as quais a mais famosa é certamente a lei de conservação da energia! E isso sem maiores restrições, como se fosse à vontade delas… Mas não pense você que este estado seja a quinta-essência, a maravilha das maravilhas, uma sequência eterna de encantamento, sem obrigações! Ao contrário. Ali se trabalha forte, duro mesmo, continuamente, noite e dia, para – depois de uma longa negociação envolvendo a aceitação de regras de outros jogos – finalmente, em uma instância sublime, reproduzir um momento mágico, atingir o alvo esperado, isto é: a produção da partícula real, pois é a partir do vazio – diferente para cada classe de partícula – que ela é fabricada.
Parou um pouco para ver o efeito destas revelações. Como ela permanecia extasiada, sem perder uma só de suas palavras, continuou:
– Produzir esta partícula verdadeira, real, no vácuo, é um longo e extenuante processo. Não acontece de um momento para outro, mas requer uma longa e dramática luta.
De um lado, matéria e antimatéria, pares de partículas de propriedades opostas, como o eletron e antieletron. De outro lado, radiação, representada pelos fótons. Um eletron encontra um antieletron e ambos se aniquilam, desaparecem, deixando em seu lugar alguns fótons. Por sua vez, um fóton produz um par de partículas opostas, um eletron e um antieletron, por exemplo, para depois de um momento fugaz, voltar a ser um fóton. Essas múltiplas aparências repetem-se e repetem-se e repetem-se. Em uma sequência infatigável, sem fim, sem um momento sequer de repouso, numa atividade ininterrupta e contínua. Esse estado do vazio, com sua indecisão de permanência e virtualidade, este estado aparente de não-ser, é, certamente, muito cansativo.
Fez uma pausa como quem vai dizer algo que não devia, e à meia voz acrescentou:
Ser, é mais fácil.
Ficou com os olhos parados em um ponto longínquo e calou-se.
Como ela queria saber algo que a estava agitando lá por dentro, mas não tinha tido coragem, aproveitou o silêncio e conseguiu perguntar:
– Mas como pode existir alguma coisa, qualquer coisa, no vazio?
– Bem, de um certo ponto de vista você tem razão. Aplicar esta palavra – existir – a este estado é temerário, é quase um abuso. No vácuo, existir é uma palavra forte. Mas o que se pode afirmar, sem nenhuma dúvida, com a concordância de todos nós …
A menina ficou em dúvida a que nós ele se referia…
…de que o vácuo possui, contém uma suspeita de partícula, uma fragrância, um perfume, em resumo, sua essência!
– O vácuo é a essência da partícula? …
E, lembrando que o fóton lhe dissera que ele era a materialização de um campo, e que todos os campos que existem possuem igualmente uma materialização – o seu quantum – associado, acrescentou balbuciando, em voz muito baixa:
– …a essência do campo…?
Ficou um bom tempo sem saber o que falar, olhando para lugar algum. Friedmann interrompeu seu devaneio:
– Pois nesse domínio, o mundo quântico, muitas descrições que os cientistas fazem parecem estranhas e fora de nossa realidade. Você deve ter ouvido o dr Luis falar sobre o comportamento duplo do mundo quântico e das brincadeiras dos físicos quando dizem que o fóton se comporta como onda pela manhã e como corpúsculo à tarde…
- Sei, disse a menina. Até conheço a brincadeira famosa do professor Einstein que esconde uma crítica a esta interpretação dizendo:
Deus não joga dados.
– O Demiurgo que conversou com você, achava essa brincadeira de dados muito infantil. Há outros jogos mais interessantes para tudo-que-existe poder se divertir. …
Hesitou um pouco sobre se valia a pena fazer algum comentário adicional. Coçou a barba ao longo do rosto e, com lentidão, continuou:
- Alguns físicos foram mesmo além desta brincadeira e modificaram a frase de Einstein, afirmando:
Deus não somente joga dados, como esconde o resultado!
Eles estavam querendo se referir às limitações da observação impostas pelas propriedades do Buraco Negro, quando associadas ao mundo quântico.
Maria Luisa achou que era hora de mudar de assunto e perguntou se eles poderiam se dedicar à segunda questão, a que mais a interessava: a criação do universo.
O dr Friedmann fez um sinal com a mão e re-começou a exposição.
– Uma coisa é criar partículas em laboratório ou até mesmo fora da Terra, em alguma estrela ou conjunto de estrelas, as galáxias. Outra bem diferente é criar o universo inteiro. Saber como se deu o nascimento do mundo. A melhor saída seria abdicar de procurar responder a esta formidável questão. Disse-me o dr Luis, que você já ouviu da boca de um famoso e onipresente personagem – o fóton –que o modo como alguns cosmólogos tratam dessa criação é muito superficial. Pois agora vou contar um outro modo de descrever esta criação. Deixe-me começar por dizer que aquilo que os cosmólogos chamam de modelo cosmológico completo consiste não somente na descrição do aparecimento da matéria como também no surgimento do próprio espaço-tempo. A descrição mais simples, e que está de acordo com a observação, o cenário padrão, contém duas etapas que chamamos global e elementar. Esta divisão diz respeito ao modo pelo qual se estabelece uma hierarquia na natureza. Podemos simplificadamente entendê-las como dois mecanismos distintos. O primeiro, global, estabelece uma hierarquia da construção da totalidade espaço-tempo e subsequente criação da matéria. Como se agissem do todo para as partes. O segundo, elementar, ao contrário, começa pela criação dos constituintes elementares para a partir daí, induzir a criação da estrutura global. Isto é, neste caso vai-se dos constituintes elementares para o global.
No primeiro, a estrutura elementar inicial é a totalidade que chamamos espaço-tempo. O tabuleiro inicial onde irão acontecer todos os jogos está completamente vazio. Neste estágio, a matéria ainda não foi criada.
– E como é que se dá a criação da matéria? perguntou ML.
Ele hesitou um pouco se devia responder a esta pergunta, que certamente levaria a conversa para um lado mais dificil. Como seu amigo Luis tinha lhe dito que poderia falar qualquer coisa para ela que mesmo se não entendesse certamente alguma informação ela
reteria, respondeu:
– Há várias teorias, várias propostas. O dr Luis gosta mais da que concede este papel ao campo gravitacional.
Parou um pouquinho e continuou:
– Ele cria tudo. Começa por criar o vazio de matéria. Depois a matéria, os corpos materiais e toda a energia sob suas diferentes formas, a radiação luminosa, por exemplo. No segundo caso, uma matéria primordial gera, graças a uma rapidíssima expansão, a configuração que chamamos espaço-tempo.
Ela ficou sem compreender. Então poderia existir matéria, partículas, e tudo isso sem que eles estivessem no espaço? Do lado de fora – ou, mais incompreensível ainda – sem tempo?
O espanto da menina fez com que Friedmann se visse obrigado a fazer um comentário:
– Um dia, você deve pedir a seu pai que ele explique iso para você. Há muitas novidades que os fisicos estão descobrindo que parecem, quando ditas em nossa linguagem cotidiana comum – o que chamamos de dialeto newtoniano – fantásticas ou até mesmo em contradição com algumas de nossas crenças mais seguras! A história é longa e cheia de meandros e levaria um longo tempo para dar um panorama, mesmo que superficial, destas propostas novas que os cientistas fizeram e ainda continuam fazendo. Algumas envolvem até modificações das próprias regras do jogo da Natureza! Mas agora, seria melhor passarmos para a pergunta que te trouxe aqui! Isto é, examinar um modo específico usado pelos cientistas para descrever a criação do mundo.
Criação científica do mundo
Nos dois cenários apresentados pelos cientistas, o estado inicial do universo possui a mesma dicotomia daquela presente nos jogos de xadrez e Go. Numa, a global, os componentes materiais – as peças do Go – estão em algum reservatório externo. Noutra, a elementar, a matéria aparece no momento do começo do mundo. Estes modelos de criação podem ser separados em duas classes que dependem, do tempo de duração gasto na criação completa. São eles:
*Criação instantânea de tudo-que-existe;
*Criação contínua.
No primeiro caso, como o próprio nome indica, a criação se dá de um só golpe. Este momento único é conhecido como Big-Bang. O segundo caso é menos preciso: o tempo de criação coincide com a existência do próprio universo. Não se trata de re-criação do mundo a cada instante, mas sim devido a uma criação incompleta, novas formas de energia e matéria são injetadas neste universo. Esta teoria esteve na moda há alguns anos atrás, graças a meu amigo Fred Hoyle, mas hoje poucas pessoas acreditam nela. Eu não acredito que ela esteja totalmente errada, como alguns mais afoitos pensam, mas certamente a maioria dos cosmólogos não acreditam nela.”
Parou um pouco e acrescentou:
– “Bem, pelo menos não do modo como ele a apresentou.”
ML ficou por um breve momento muito, mas muito espantada. O que o dr Friedmann acabara de contar, estes dois modelos rivais propostos para descrever cientificamente a criação de matéria no universo, coincidia – até mesmo nas expressões usadas – com o que ela escutara antes referente à versão antiga da criação feita pelo Demiurgo. Ela ficou um bom momento sem entender o que significava isso.
Além disso, ela tinha percebido que, como o Demiurgo, o dr Friedmann parecia também se comportar como se tivesse à sua disposição, diferentes possíveis cenários de nascimento do universo para que junto com seus colegas, escolhessem um, precisamente este que vivemos!
A atitude dos cientistas e do Demiurgo era muito parecida. Só os métodos eram diferentes. É bem verdade que havia também uma diferença de estilo. Enquanto o Demiurgo dava a entender que seu poder, nesta escolha, era absoluto, e que a natureza deveria se curvar à sua vontade; os cientistas – demonstrando uma timidez que não correspondia à sua prática – diziam que eles somente tinham conseguido entender a escolha que a natureza havia feito. Mluisa achava essa diferença pouco importante.
A ausência de uma resposta que a satisfizesse, espantou a menina, que havia sido criada acreditando em uma superioridade absoluta da ciência sobre os outros saberes. E, agora, depois destas conversas dos últimos dias foi levada a reconhecer que a diferença entre eles não era tão grande; estas alternativas de explicação do nascimento do mundo eram até bem semelhantes e aquilo que as distinguiam parecia ser apenas aparências, nuances, detalhes menores de uma sofisticada representação do mundo.
Enquanto ela pensava isso, o dr Friedmann começava a detalhar um modelo cosmológico, para explicar seu método.
– Vejamos agora um exemplo de cenário completo sobre o universo. Mas é bom que se diga: trata-se somente de uma possibilidade, nada mais do que isto. Por razões que daqui a pouquinho você vai entender, ele tem um nome muito especial, retirado do livro que o dr Luis te deu sobre mitos cosmogônicos:
UROBOROS
A menina não sabia o que era isto, nem sabia de qualquer referência a este nome no tal livro, pelo menos até onde conseguira ler. Vendo a cara de surpresa que ela fez o dr Friedmann resolveu explicar.
– Se você tiver um pouquinho de paciência, vai me dar razão que, para designar o modelo cosmológico em questão, este nome vem bem a calhar. Vamos a ele. Nós não precisamos de nenhum Demiurgo…
Olhou para ela para ver se percebera que se tratava de uma brincadeira. Com o riso que ela fez, se deu conta que poderia continuar.
…mas somente de um estado especial. Começa-se escolhendo para estado inicial o vazio. Não somente o vazio de matéria, mas a própria estrutura de fundo, o cenário básico, o espaço-tempo, está em seu estado fundamental. Este estado vazio se constitui instável. Desta instabilidade vai aparecer a matéria e tudo-que-existe. Na cosmogonia cientifica chamamos instabilidade do vazio, e isso caracteriza esta ação que gera a matéria.
– Mas quem provoca essa instabilidade do vazio inicial?
– Ele mesmo!
A menina não entendeu esta auto-perturbação, mas ele continuou.
– Da evolução deste processo, da criação de estados de matéria a partir do vazio, aparece um universo dinâmico que se expande, isto é cujo volume espacial total aumenta com o passar do tempo, exatamente como esse em que vivemos. Entretanto, contrariamente ao Big-Bang, este modelo aqui não possui um começo singular, não tem uma origem separada uma distância temporal finita de nós, mas está dotado de uma fase anterior, colapsante – onde o volume diminui com o passar do tempo cósmico. Assim, depois dessas fases colapsante-expansiva, ele termina onde começou: no vazio completo de matéria e de espaço-tempo. Se tivéssemos que resumir este cenário em uma só frase, eu diria:
O Universo começa no Vazio e termina no Vazio.
Agora podemos entender porque se chama Uroboros. Trata-se do mesmo tipo de brincadeira, como aquela feita com o Big-Bang. Essa representação do universo foi criada pelos amigos do dr Luis, a partir da semelhança com uma imagem da mitologia. A razão é fácil de entender. Basta ver a figura onde Uroboros é representado por uma cobra que morde a própria cauda. O universo que começa do nada e termina no nada, permite imaginar um ciclo que pode ser repetido e, talvez, indefinidamente. Pensando bem, vejo que não há nada melhor que possa simbolizar a idéia de eternidade.
– Termina onde começou? Isso quer dizer que posso tratar os dois vazios – do estado inicial e do estado final – começo e fim do universo, como sendo a mesma coisa? Uma só coisa? Então vai começar tudo de novo? Isso não tem mais fim? – perguntou ansiosa.
– Bem, isso ninguém sabe. Mas é bom não esquecer que este vazio que estou falando aqui não é o vazio absoluto tradicional como conhecemos no cotidiano e na física newtoniana, mas se trata de um outro tipo de vazio. Este aqui possui estrutura.
Ela ouvira tanto sobre este vazio que podia dizer que já o conhecia de longa data. Volta e meia, os amigos de seu pai falavam
dele. Ate mesmo o Demiurgo falara dele. Ela chegou a pensar que, pelo menos em relação a este estado, eles estavam de acordo: todos o achavam muito importante.
Parece até que fazem parte da mesma seita, pensou a menina. E se tivesse que dar um nome eu nem hesitaria, os chamaria de adoradores do vazio.
Riu para si mesma deste nome e achou que se não fosse o respeito que tinha por eles, diria isso em voz bem alta! Afinal, não resistiu e comentou:
– Esses dois modos de criação do mundo – o moderno e o antigo – são tão parecidos que eu juraria que devem ter a mesma origem.
O professor Friedmann não gostou desta comparação entre os dois modos de descrição do Jogo da Criação e, visivelmente pouco satisfeito, foi ríspido com ela:
– Olha: isso que te expliquei, não é um sonho, nem uma fantasia, nem um delírio coletivo de uma civilização à procura de uma explicação mágica para o universo. Eu estou falando de uma verdade cientifica! Estou tratando de um cenário cientifico do mundo!
E, repetiu ainda mais uma vez:
-“É a visão de cientistas sobre a criação do mundo!
Parou um pouco para pensar e achou conveniente acrescentar:
– Você deveria pedir a teu pai que explique, com detalhes, as razões que levaram os cientistas a considerar esta versão como sendo a verdadeira.
MLuisa ia fazer um comentário para apaziguar o professor Friedmann, mas este saíra abruptamente da sala deixando a menina
sozinha. De repente, sem saber de onde vinha essa voz, ouviu nitidamente:
– Bem, considerando que nenhum desses dois jogos de criação – nem o do Demiurgo, nem o do dr Friedmann – não tem nada a ver com a gente, eu acho que você tem toda a razão…
Quem falava assim era seu velho conhecido, o fóton. Ela ficou espantada, não com a aparição inesperada dele, pois isso ela já começara a se acostumar. O que a espantou foi essa critica comum aos dois modos de criação. Que ele criticasse os mitos ela entendia. Afinal, seu pai lhe havia explicado direitinho o significado que os cientistas atribuíam a estes mitos. E, embora ela achasse realmente que estes dois modos de criação fossem parecidos, concordava com seu pai quando este dizia que a versão cientifica, era de verdade. Por isso, retrucou:
– Eu posso até entender que você critique os Jogos antigos, a criação pelo demiurgo, aquela versão misteriosa que as civilizações antigas foram levadas a criar. Mas não posso aceitar de forma alguma que você diga seriamente que toda essa modernidade, esse conhecimento científico não diga respeito a você, a tudo-que-existe. O dr Friedmann explicou direitinho como os cientistas estão produzindo conhecimento capaz de permitir entender como se organizou o universo em que vivemos.
A menina parecia realmente furiosa. Ela aceitava todas as críticas que poderiam ser feitas, menos essa.
– Você ainda não percebeu que a natureza não tem nada a ver com esses jogos humanos? – contestou o foton.
MLuisa se lembrava que em diversas ocasiões, conversando com seu pai, tinha conseguido entender que uma coisa era a versão científica, ou melhor dizendo, a representação cientifica; e outra, a Natureza. Mas o que os cientistas haviam produzido com seus modelos do começo do mundo, se tratava de uma boa representação! E, certamente, deveria ter alguma relação com a Natureza. Logo, o fóton não podia dizer aquilo impunemente!
Mas ele parecia não se preocupar com a virulência dela e continuou o diálogo no mesmo tom zombeteiro.
– Olha só: parece que você não percebeu que a natureza não se identifica com tudo-que-existe. Em geral, essa distinção não tem maiores consequências, mas quando se trata de começar um mundo, ela é crucial!
Ela ia contra-argumentar, mas como os passos do dr Friedmann pareciam cada vez mais perto, aconteceu o esperado: o fóton desapareceu e a conversa não pôde continuar. Ela pensou: não importa. Quando eu o encontrar de novo ele vai ter que me ouvir!
Ainda do corredor, o dr Friedmann se dirigiu à menina:
– Eu acho que esta nossa conversa ainda não terminou, mas hoje vamos ter que suspendê-la, pois tenho que presidir uma sessão na Universidade. Só espero que você tenha entendido que os cientistas de hoje estão produzindo cenários bastante representativos da Natureza em sua totalidade, do Universo e de sua história.
Ela agradeceu. Neste momento, a secretária anunciou que seu pai a esperava na porta do prédio. Ela então se deu conta que o professor Friedmann o havia chamado e possivelmente contado a ele esta sua conversa. Um leve temor de ser criticada pelo pai apareceu.
Já no carro, de volta para casa ela toma a iniciativa e pergunta:
– Papai, por que as diferentes descrições dos modos de criação do universo, feitas pelos homens ao longo do tempo, mesmo as científicas, são tão parecidas.
O dr Luis percebeu, com essa pergunta, que afinal de contas, o professor Friedmann não tinha conseguido mudar a opinião da filha sobre os diferentes modos de descrever o começo do mundo. Decidiu que outro dia, não hoje, mas muito em breve, deveria se dedicar seriamente a convencê-la da superioridade da descrição científica. Foi pensando em como fazer isso até chegarem à casa.
– – – – –
*Mario Novello é cosmólogo e professor emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – ICRA/CBPF.