A construção do tempo: Tempo da transcendência
PALESTRA /
Leonardo Boff* //
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“Ao falar sobre tempo de transcendência é necessário começar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino, Martín Fiero, o entende. Ele diz que o tempo é a tardança daquilo que está por vir. Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais concreto e escondido do ser humano. Porque nós, seres humanos, homens e mulheres, na verdade somos essencialmente seres de protestação, de ação, de protesto.
Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. Não há sistema militar mais duro, não há nazismo mais feroz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra alguma coisa nele. Porque com seus pensamentos ele habita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso, nós, seres humanos, temos uma existência condenada a abrir caminhos sempre novos e sempre surpreendentes.
O que é anterior e o que subjaz às expressões imanência e transcendência?
É a experiência do próprio ser humano como ser histórico, um ser que está se fazendo continuamente. É o que chamamos de experiência originária. Quando falamos filosoficamente em existência, falamos ex-istência. Estamos sempre nos projetando para fora, construindo o nosso ser. Nós não o ganhamos pronto, nós os moldamos mediante a nossa liberdade, mediante os enfrentamentos e intimidações do real.
Nessa experiência emerge aquilo que somos: seres de imanência e de transcendência, como dimensões de um único ser humano. Imanência e transcendência não são aspectos inteiramente distintos, mas dimensões de uma única realidade que somos nós.
Possuímos essa dimensão de abertura, de romper barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os limites. É isso que chamamos transcendência, essa é uma estrutura de base do ser humano.
A dimensão da transcendência não tem nada a ver com as religiões, embora elas procurem manipular a transcendência. Elas afirmam, Deus está na transcendência, habita uma luz inacessível, e nós temos a sua revelação, a chave para falarmos Dele. Isso é pura metafísica, uma tradução da experiência originária, mas não A Experiência Originária.
O que é o ser humano então? É um ser de abertura, é um ser concreto, situado, mas aberto. É o nó das relações, voltado em todas as direções.
Nem mesmo nosso moderno sistema globalizado dentro do pensamento único, que afirma não haver alternativa fora dele e reforçado pelo fundamentalismo da economia de hoje que garante que só existe um modo de produção capitalista global. Essa concepção supõe um conceito pobre do ser humano, transforma-o, no fundo, em um mero consumidor, que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para projetar.
Onde fazemos cotidianamente a experiência da transcendência?
Considero que há alguns eixos existenciais pelos quais todos nós passamos e onde fazemos uma experiência de transcendência límpida, cristalina.
Para mim, a experiência mais fundamental é a do enamoramento.
A experiência da transcendência também se manifesta de modo especial na cultura popular.
Mas a transcendência se dá principalmente no encontro com as pessoas. Às vezes acontece de você estar numa crise existencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavras seminais, que lhe acende uma luz, que coloca a mão no seu ombro, que aponta um caminho.
Há também uma pseudotranscendência que a cultura atual promove de forma inflacionada. Todo esse universo do marketing, do show business, do entretenimento nacional e mundial são campos onde se produz experiências de pseudotranscendência. A maior dessas pseudo-experiências é a droga.
Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja nossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. A grande chave da pseudotranscendência é manipular nossa estrutura de desejo, é canalizar toda nossa potencialidade de desejo para uma coisa limitada. É então que nos frustramos, porque o desejo quer o todo e só alcançamos a parte.
Transcendência não é algo que temos ou não temos. Todos têm. Precisamos transformar essa dimensão de transcendência num estado permanente de consciência e num projeto pessoal e cultural.
Por fim, qual é a singularidade do cristianismo em face dessa experiência universal da transcendência? A experiência que o cristianismo traz não é propriamente a transcendência. A tradição judaico-cristã fala em transcendência. “Somos convidados não apenas a superar e voar para cima, mas, fundamentalmente, a descer e a buscar o chão.”
Para começar, não quero deixar de dizer uma palavra de agradecimento por esses quatros anos de seminários realizados aqui no Planetário onde se criou, efetivamente, um centro de excelência do pensamento mais aberto, mais criador, de um pensamento que vem das várias procedências das buscas humanas. Faço votos que essa herança não se perca, porque já é um patrimônio dessa cidade.
E quero agradecer muito ao Planetário que sempre manteve esse espaço aberto a essas discussões, eu mesmo já tendo participado várias vezes, e é um dos poucos lugares onde sinto um axé fantástico, e me inspiro para além daquilo que me preparo.
Bom, dito isso, queria hoje refletir com vocês, e se o espírito criador nos auxiliar, também fazermos uma experiência de espiritualidade. Porque o tema é esse, o tema é espiritualidade no contexto da nossa cultura, dos dramas que estamos vivendo no nível mundial, e uma reflexão que quer captar a urgência da espiritualidade.
Porque nós vivemos certas situações dramáticas hoje e circulam na nossa cultura mitos como o da exterminação da espécie, da liquidação da biosfera, da ameaça do nosso futuro. Em momentos assim, dramáticos, o ser humano mergulha na profundidade do ser e se coloca questões básicas: o que estamos fazendo nesse mundo? Qual é o nosso lugar? O que podemos esperar para além dessa vida? E como devemos agir para garantirmos um futuro que seja esperançoso para todos os seres humanos?
É nesse contexto que devemos colocar a questão da espiritualidade, pois ela é uma das fontes primordiais de inspiração da esperança humana, da geração de um sentido pleno, e da capacidade do ser humano autotranscender. O ser humano só é humano sendo super-humano. Isso que nós dizíamos numa palestra realizada anteriormente aqui – O Ser Humano como Projeto Infinito. Palestra que foi muito bem acolhida pela editora Sextante, e que transcrevi num livro cujo resumo abre essa nossa conversa de hoje.
Bem, voltemos ao nosso tema. Todos falam de espiritualidade, esse é um tema recorrente da nossa cultura não só no âmbito das religiões, que é seu lugar natural. Mas no âmbito das buscas humanas, dos jovens, dos intelectuais, de grandes cientistas, e, por surpresa nossa, de grandes empresários. Além do povo, que sempre vive uma dimensão mística, espiritual, como fator natural à sua própria cultura.
Tenho falado nos últimos tempos, nos últimos dois, três anos, para grupos daqui e de fora do país, ligados ao grande poder econômico, executivos de grandes empresas, que colocam como tema questões como mudanças sociais, novos paradigmas, produtividade e espiritualidade. Às vezes, começo dizendo que no fim da vida até o diabo costuma virar sacristão. A crise deve ser realmente muito grande para que grandes empresários de multinacionais, empresas das maiores desse país, coloquem-se em questões de espiritualidade. Significa que os bens materiais que eles produzem, que as lógicas produtivas que eles incentivam e que o universo de valores que inspira suas práticas não deve estar suficiente. Há um vazio profundo, um buraco imenso dentro desses seres que suscita questões como essa da espiritualidade.
Embora sempre devamos manter nosso espírito crítico, porque com espiritualidade também se pode fazer dinheiro e às vezes há verdadeiras empresas que manejam os discursos da espiritualidade para criar um exército de seguidores, e muitas vezes falam mais aos bolsos deles do que aos seus corações, mas pouco importa. O fato é que a nível mundial, independentemente de que países sejam, há uma demanda importante por valores não materiais e por uma redefinição do ser humano. Na medida em que os seres humanos buscam sentido e, portanto, os valores que inspiram profundamente a vida, é natural que se sintam indignados com um destino previamente definido em termos políticos, pelos quais a humanidade está tendo que trilhar. É quando dizem: nós merecemos um destino melhor e temos que beber de outras fontes para encontrar luz que ilumine o nosso caminho.
Voltando ao tema da espiritualidade, certa vez perguntaram ao Dalai Lama o que era espiritualidade e ele respondeu: espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior.
E essa pessoa perguntou novamente: mas se eu praticar a religião e observar as tradições, tudo isso não é espiritualidade?
E o Dalai Lama comentou: pode ser espiritualidade, mas se isso não produz em você nenhuma transformação não é espiritualidade. Um cobertor que não é mais um cobertor, porque ele não aquece, ele deixa de ser cobertor.
Então atalhou a pessoa: a espiritualidade muda?
E o Dalai Lama disse: como diziam os antigos, os tempos mudam e as pessoas mudam com eles. O que ontem foi espiritualidade hoje não precisa mais ser. O que comumente se chama de espiritualidade não é outra coisa que a lembrança de antigos caminhos e métodos religiosos.
E arrematou: corte de tal maneira um manto para que ele se ajuste aos homens, não corte os homens para que eles se ajustem ao manto.
Desse pequeno diálogo me parece que o principal que devemos reter é isto: que a espiritualidade é aquilo que produz dentro de nós uma mudança. E não necessariamente a religião produz dentro de nós uma mudança.
Dessa forma, o primeiro que temos que distinguir, mas também não separar, é religião e espiritualidade. Aliás, o diálogo acima mostra que ele o fez de uma forma extremamente brilhante nesse livro que está entre os best Sellers não só no Brasil mas no mundo inteiro: Uma ética para o movo milênio, sua santidade o Dalai Lama. É um livro que merece ser lido.
Creio que hoje há uma confusão de ideias muito grande ao redor do tema da espiritualidade e da religião, e ao redor do tema da ética e da moral.
Todos falam disso, mas não temos ideias claras sobre esses temas. Nunca vi alguém com tanta claridade e com tanto poder de convencimento falar dessas realidades como Dalai Lama. Eu o tenho escutado muitas vezes pelo mundo afora. Por três vezes participei das mesmas mesas que ele e, então, pudemos conversar rapidamente, e eu o considero uma das figuras mais messiânicas desse final de século. Porque é uma das pessoas que mais consola os aflitos, que mais gera sentido aos desesperados e o que mais prega a paz como o diálogo entre as religiões, como abraços entre os povos, se quisermos salvar a humanidade como família, e garantir um futuro para nossa casa comum, que é o planeta. Ele corre pelo mundo todo pregando isso.
Certa feita, em Berlim, numa conversa informal ele me dizia: “olha Boff, eu acho que nós tibetanos que estamos no exílio, que perdemos nossa pátria, estamos realizando a vocação dos judeus quando perderam sua pátria e estavam no exílio babilônico, e foi no exílio babilônico que eles escreveram as escrituras judaicas e que espalharam o monoteísmo entre os povos, isto é, que Deus é único, e por isso é Deus de todos os povos”.
E ele disse que talvez o sentido espiritual do nosso exílio seja o de nós sermos obrigados a correr o mundo para falar de espiritualidade, de paz entre os povos, de diálogos entre as religiões. E nós estamos fazendo isso com profundo empenho e grande humildade.
Acredito que Dalai Lama, mais que outros lideres espirituais, realiza isso com grande leveza, cheio de humor, mas, ao mesmo tempo, com uma linguagem que nasce do fundo do coração, por isso mesmo profundamente verdadeira, profundamente convincente.
Então, a primeira diferenciação que cabe fazer é entre religião e espiritualidade. Nós conhecemos as religiões, nós habitamos as nossas religiões e as religiões são edifícios culturais grandiosos. O que primeiramente toda religião promete ao ser humano? Promete salvação, promete vida, promete eternidade e mostra o caminho para se chegar a essa eternidade, que é o caminho da reta doutrina. Ao elaborar doutrinas, mostra uma visão sobre Deus, sobre o céu, os caminhos da luz, sobre quem é o ser humano e o que se deve fazer nesse mundo.
Mas não só anuncia prédicas, acentua práticas. As religiões são fontes de uma ética, isto é, de comportamentos. E no caso do cristianismo os comportamentos são tão importantes que são eles que definitivamente salvam. Não são as prédicas, mas as práticas, e no budismo – e o Dalai Lama diz muitas vezes isto em seu livro –, da mesma forma que o cristianismo, a salvação, o ingresso no nirvana e a transfiguração das pessoas humanas, só ocorre se elas conseguirem transformar toda a sua visão reta do mundo numa prática profundamente coerente, numa amorosidade para com o próximo, numa compaixão com todos os que sofrem, num sentido de responsabilidade pela vida dos outros, e numa vida de total despojamento para poder estar aberto a colher tudo o que vier da realidade. Se conseguirmos essa prática, então conseguimos construir um caminho que nos leva inexoravelmente para aquilo que é o céu, que é o nirvana, que é a suprema realização do ser humano.
As religiões constroem edifícios teóricos que são as doutrinas; práticos, as morais; celebrativos, as liturgias e os ritos, mas também artísticos, que são os grandes templos e catedrais. Talvez ninguém tenha construído templos mais fantásticos que o hinduísmo, na Índia, ou as grandes catedrais medievais, que são verdadeiras sumas teológicas. A música sacra, a arte pictórica, todas são formas de, pela arte, chegar a Deus. As religiões são, pois, uma das construções mais extraordinárias do ser humano e todas elas trabalham com o divino, com o sagrado, com o espiritual, mas elas não são o espiritual. Espiritualidade é outra coisa.
Porque as religiões podem substantivar, os poderes religiosos se articulam com outros poderes. Os poderes religiosos podem ganhar hegemonia, como durante três séculos no Ocidente teve o cristianismo. E que talvez também sejam os séculos de maior violência religiosa que o Ocidente conheceu, com cerca de dois milhões de ‘bruxas’ que foram queimadas, os milhares silenciados e supliciados pela inquisição, as guerras religiosas de alta devastação.
As religiões podem substantivar-se, perder a fonte a partir de onde elas vivem. E de onde vivem as religiões? Se nós pensarmos nos pais fundadores dos caminhos espirituais, pode ser um Buda, um Isaias, um Jesus Cristo, um São Paulo, ou pode ser, modernamente, um Luther King, um Gandhi. São sempre pessoas profundamente carismáticas, que fizeram um mergulho fantástico no mistério do Ser, que tiveram e testemunharam o encontro com a realidade última. Pessoas que se encontraram com Deus, e esse encontro modificou suas vidas, por isso elas tiveram uma profunda mudança interior.
Penso que Jesus, já que ele é a referência da nossa religião dominante, teve duas experiências de base e que estão como pilastras sustentando o cristianismo como religião. A primeira experiência é a de que ele se sente filho de Deus, porque experimenta Deus como paizinho, como abá, como um pai que tem todas as características da mãe, porque é de infinita misericórdia, perdoa os ingratos e os maus. É o pai do filho pródigo, que olha na curva da estrada para ver se o filho volta, e quando volta corre ao seu encontro e o cobre de beijos.
É um Deus que tem entranhas, por isso se comove disso, é um Deus que é mais pai do que mãe, e mais mãe do que pai, ou melhor, é uma mãe paternal, ou um pai maternal. E quem fala e chama Deus de pai, sente-se filho, e essa é a consciência de Jesus, e essa consciência abriu a todos nós a possibilidade de que cada um, por menores que sejamos, possamos nos sentir também filhos e filhas de Deus que é a nossa suprema dignidade.
A segunda experiência é que Deus não atua indiferentemente no mundo, ele tem uma política na sua criação e a essa política ele chamou de Reino de Deus, que é aquela presença de Deus dentro do Universo, uma presença cósmica, comunitária, social, pessoal, na intimidade de cada pessoa humana, porque dentro de cada um de nós está o Reino de Deus. Ele é a presença transformadora de Deus, é a forma pela qual Deus se acercou a nós e veio buscar o que é seu, veio buscar seus filhos e filhas, veio resgatá-los, purificá-los e, por isso, transfigurá-los.
Então Jesus anuncia uma grande utopia, uma revolução absoluta, que é o Reino de Deus, que anuncia tentando atualizar em todas as pessoas o fato de cada um ser filho e filha de Deus. Desse Deus libertador, que começa pelos últimos, os pobres, os destituídos, e a partir daí engloba o universo inteiro.
Mas como se traduz essa experiência? Ao traduzir essa experiência, surge a religião, surgem os credos, portanto os quatros evangelhos; surge a ética, e então temos todas aquelas listas de obras boas e más, e de como deve ser a ética cristã. Surge o sermão da montanha que é o resumo daquilo que o cristão se propõe a viver em termos de comportamentos; surgem as celebrações, não mais aos sábados, mas aos domingos da ressurreição, as missas, o cultivo da memória dos mártires, a celebração das várias situações da vida quando nascemos, quando decidimos, quando casamos, quando morremos, quando adoecemos, isto é, a religião procura cobrir todo o ser humano a partir dessa fonte originária.
O que conta em Jesus, portanto, é fundamentalmente a sua experiência – e nós somos herdeiros de Jesus – e não apenas se habitamos a instituição cristã (e ela pode ser muito contraditória), mas se nós tentarmos continuamente refazer a experiência de Jesus, entrarmos no seu movimento de nos sentirmos como filhos e filhas de Deus – e ao mesmo tempo olhar os outros também como filhos e filhas –, num ato vivo, como Deus nascendo dentro de cada um e fazendo de cada mulher e de cada homem seus filhos e filhas.
Se a religião produzir continuamente essa experiência, ela se transforma em espiritualidade. Se ela não transforma a nossa interioridade, ela continua apenas religião, que pode ser usada, manipulada, pode ir para mídia, pode se tornar negócio, pode armar exércitos e convencer pessoas para certas causas. Mas se ela não reconduzir o ser humano continuamente à dimensão espiritual, ela pode ser o ópio do povo, pode se transformar num fetichismo, e, mesmo com a religião, podemos pecar continuamente contra Deus. Por isso sábio é o profeta e condutor de povos que foi Moisés ao dizer para não se usar o nome de Deus em vão. O segundo mandamento talvez seja o mandamento contra o qual as religiões mais pecam, porque usam o nome de Deus para todas as coisas.
Especialmente hoje, e isso é comum para as religiões midiáticas, dos cristianismos televisivos e mercadológicos, Deus é uma grande fonte de mobilização e de fazer dinheiro. Então, nós usamos o nome de Deus para os nossos interesses, não para o interesse de Deus, ou no interesse da natureza, mesmo do sagrado e do espiritual.
Gostaria de sistematizar rapidamente quais são as duas experiências básicas que a humanidade conhece e que estão por detrás da espiritualidade, sustentando os grandes edifícios religiosos que nós conhecemos na humanidade.
Uma é do Ocidente e é a experiência de Deus, no qual captamos o todo. A outra é a experiência do Oriente, que capta o todo e dentro do qual está Deus. São caminhos diferentes, mas ambos os caminhos são complementares e estão na base de duas propostas espirituais que hoje, no encontro das civilizações, são oferecidos aos seres humanos. E nós, cada um segundo a conaturalidade da sua experiência, escolherá qual é a mais fecunda para ele. Não quero ser dogmático e dizer, por que somos do Ocidente dentro do qual se deu a experiência cristã, ipso facto, que ela é a única .
Aqui, mais uma vez, volto ao Dalai Lama. Certa vez lhe fiz uma pergunta, não sem certa malicia, e ele deu uma resposta, com suprema sabedoria, que me impactou muito.
Perguntei a ele qual era a melhor religião. Ele fez uma pequena pausa, deu um sorriso, me olhou bem nos olhos e disse: “A melhor religião é aquela que te faz melhor”. Eu que esperava que ele dissesse que era o budismo tibetano, as religiões orientais, muito mais antigos do que o cristianismo, me surpreendi. E para sair da perplexidade, perguntei: e o que me faz melhor?
E ele disse: “Aquilo que te faz mais compassivo. E aí sentimos a ressonância tibetana, budista, taoista, aquilo que te faz mais sensível, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável, quem conseguir fazer isso de você, essa é a melhor religião”.
Então não podemos dizer, como nosso contraente em polêmicas, o Cardeal Ratzinger, que o cristianismo, ipso facto, tem o arsenal absoluto, completo e perfeito para caminharmos para Deus, dispensando qualquer colaboração das outras religiões.
Além de ser arrogante essa afirmação, ela é equivocada, porque todo o oceano não cabe no nosso copo, toda a grandiosidade de Deus não se exaure nos nossos discursos. Então, cada um é desafiado a dizer qual é o caminho no qual desabrocha melhor a minha humanidade, onde eu possa ter um encontro mais radical com Deus e dar a ele o nome da minha referência. E ser realmente um ser de radiação que, junto com outros, possamos crescer e ter mais humanidade, mais perdão, mais capacidade para a inclusão de todos, para que ninguém fique de fora do nosso mundo, da nossa comunidade e do nosso amor.
O caminho do Ocidente fundamentalmente foi marcado pela experiência judaico-cristã. Ela é centrada em um encontro com um Deus que aparece dizendo o seu nome, Javé – aquele que está aí com você e que te acompanha – e com o qual você estabelece um diálogo, e nesse diálogo de eu/tu é que cresce a profundidade humana.
E foi a partir do tu que nós descobrimos o nosso próprio eu, que se sente envolto por essa realidade divina que é uma experiência fundamentalmente de encontro amoroso. Não é um encontro meramente intelectual, por que então Deus caberia só na nossa cabeça. É um encontro na sua totalidade, na medida em que move a nossa interioridade, e nós caímos de joelho como Moisés ou como São Pedro. Nós dialogamos com Deus e queremos conhecer mais o outro, num processo de enamoramento.
Quando nos enamoramos por uma pessoa, tudo dela parece interessante. Desde o lugar onde ela nasceu, até quem são os amigos, onde estudou, seus gostos, enfim, cada detalhe é importante, porque é nesse encontro que nós crescemos, nos extasiamos, e fazemos a experiência da nossa mais radical humanidade.
Então, voltando ao que dizia anteriormente, a experiência que o Ocidente fez é uma experiência de encontro com Deus, de encontro no amor. E quanto mais amamos uma pessoa, mais a queremos entender, nos sintonizar com ela, e até mudamos nossos hábitos para que isso aconteça. Às vezes nem fazemos caso do tempo e das dificuldades.
Quem leu os grandes místicos cristãos, como São João da Cruz, Santa Tereza, o Mestre Eckhart, por exemplo, já vivenciaram essa experiência. Ainda hoje estava lendo um pouco do Mestre São João da Cruz, onde ele apoliticamente diz: “Se encontrares aquele a quem eu amo digam a ele o quanto sofro, o quanto gemo, que eu morro de saudade dele”. Só é possível isso numa relação mística, numa relação de encontro, onde também sempre há o desencontro. Onde, por mais que nos encontramos e conhecemos a pessoa, nunca desvendamos completamente os mistérios, pois ele se vela e se revela, se dá e se retrai, por isso é um encontro de magias e de fascínio, onde entra muito cuidado e reverência. Onde ninguém pode atropelar porque um pequeno gesto pode obnubilar toda a experiência do encontro.
A partir de Deus encontramos o todo, porque tudo está ligado a Ele. E o Cristianismo criou até uma expressão que é o panteísmo – Deus está em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus. Não é o panteísmo de todo indiferentemente a Deus, não é isso. É que nós descobrimos que Deus está presente em todas as coisas, que não há distância para ele, que ele está na profundidade do nosso coração e por isso nós não estamos longe dele, porque nele nós vivemos, nele nós nos movemos, nele nós somos, como o ar que respiramos.
É aquilo que Teilhard de Chardin chamava meio de vida – Le moyen de vie. Nós estamos dentro de Deus e por isso nunca fugimos dele, nunca vamos à Deus porque estamos sempre dentro de Deus, e a tarefa da fé é descobrir esse Deus que está presente mas também oculto sobre mil sinais.
Então se Deus está em todas as coisas, se o universo é um grande sacramento, a matéria é sagrada, por que a natureza é espiritual? Porque é templo de Deus e o Universo não é indiferente a Deus, está no seu coração. O Papa atual (João Paulo II) diz muitas vezes isso e acho que é profundamente consolador que nos diga que nós nascemos de um ato amoroso de Deus, que nós estamos ancorados no coração de Deus.
Se nós traduzimos isso em uma doutrina, pode ser uma entre tantas outras. Mas se nós transformamos a doutrina em uma comoção do coração, então nós fazemos uma experiência de espiritualidade e uma experiência de profunda libertação.
Por que temer se Deus está no nosso meio? Por que temer se nós estamos em suas mãos? Por que frear nosso coração se ele é habitado por Deus? A vida é leve, é um encantamento, é uma poesia, porque, como no cântico espiritual de São João da Cruz, tudo pode falar de Deus, é a ovelha, a campina, é o ar, é a água, são outros acenos de Deus, e quem vive essa experiência da fé viva, que não é mais doutrina, mas que é a comoção do coração.
Bem dizia Pascal: “Crer em Deus não é pensar Deus, crer em Deus é sentir Deus”. E quem sente Deus é o coração, então, nosso desafio é como passar do catecismo, que está na nossa cabeça, para o coração, que está nosso sentimento.
São João, na primeira carta, diz tão bonito isso: “Aquele que nós tocamos, que nossos olhos viram, que nossos ouvidos ouviram, esse nós vos comunicamos”. Então, é uma experiência de tocar, de sentir, de falar.
O cristianismo Ocidental fez essa experiência, e a partir daí sintetiza a realidade, como São Francisco de Assis que faz seu cântico de Irmão Sol e Irmã Lua, as irmãs doenças, a irmã morte, porque se tudo está dentro de Deus, nele estão também as coisas que não são alegres. Deus está tão presente na cruz como está na ressurreição. Então a fé deve ser tão vigorosa que possa ver Deus até nas torturas dos campos de concentração nazistas. Isto não está fora de Deus, por mais terrível que isso possa parecer a uma inteligência instrumental e analítica.
Como Tomás de Aquino diz: “Nós, cristãos, não entendemos o mal, mas cremos que Deus é tão poderoso que pode tirar do mal, um bem”. Porque se não fosse isso Deus não seria poderoso, e então podemos dizer: feliz culpa pela qual caímos, porque experimentamos a misericórdia de Deus. E não é um Deus pequeno, como o Salmo 141 diz tão bem, Deus sabe do pó que nós fomos feitos e por isso sabe que nós somos frágeis e pecamos muitas vezes, por isso a sua misericórdia não tem limites. O problema não é o pecado, é a misericórdia que torna pequeno o nosso pecado, por pior que seja.
Então a fé transfigura a partir dessa experiência do encontro, e a partir daí vão as muitas famílias espirituais que se alimentam desse encontro com Deus, de toda a mística do sufismo dos muçulmanos, e de tantos outros místicos, que têm a mesma estrutura que a tradição judaico-cristã, do antigo testamento, do novo testamento e dos grandes místicos cristãos.
O Oriente fez outro caminho e de certa forma até mais grandioso do que o nosso, mais ancestral e mais abrangente. A experiência primeira que a pessoa, que o monge, o professante, e o caminho espiritual principal que o Oriente faz é o da unidade da realidade, da grandiosidade do universo, que as coisas não estão colocadas uma ao lado das outras, em justaposição, mas que todas elas estão sincronizadas, conectadas. Uma grande unidade de toda realidade, mas uma unidade complexa, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, mas todos eles ligados e religados entre si, e por isso de forma profunda e em um grande dinamismo.
Nós somos toda essa realidade, somos parte e parcela do todo. O drama do ser humano é ele sentir-se parte de uma totalidade e perder a memória de que ele é parte dessa totalidade, dele sentir-se um elo vivo e esquecer que esse elo é um elo de uma corrente de vida.
Então como combinar a nossa consciência que é singular, que é pessoal, com essa totalidade? Toda a busca dos orientais é refazer um caminho que nos leve a uma experiência que eles chamam de não dualidade. De eu sentir-me junto da pedra, junto ao animal, junto da planta, junto da estrela, sentir-me o universo.
O próprio Dalai Lama conta que certa vez grandes cientistas, em Harvard, o levaram ao centro de pesquisa nuclear e mostraram a ele em um aparelho os sinais que os elétrons deixam, porque ninguém consegue ver os elétrons e muito menos o átomo.
O Dalai Lama sorriu e disse: “Desde jovem eu via todos os átomos, todos os elétrons, todos os prótons; eu via as estrelas mais distantes porque fui iniciado à comunhão com todas as coisas, então não é que o elétron esteja lá, o elétron está aqui. E o primeiro exercício que o místico oriental faz no caminho da yoga, no caminho do Tao, é o exercício da luz, que vocês todos conhecem, que é representar se uma luz que venha do mais profundo do universo, incide sobre você, que interioriza essa luz, e essa luz vai tomando o teu corpo primeiro, a tua centralidade, teu coração e cada parte do teu organismo, todo o teu corpo, e ela se expande, e engloba as paredes, engloba as árvores que nos cerca, engloba os oceanos, as montanhas, e se estende para todo o universo, até o ponto que você não se sente mais você, você é a totalidade. Você faz a experiência da não dualidade, eu sou tudo isso”.
O caminho espiritual do Oriente é o caminho que busca a interioridade do ser humano. Nosso caminho ocidental busca a exterioridade: Cristo está lá, Deus está lá, o universo está lá. Vamos à Lua, vamos às estrelas mais distantes, é o caminho para fora. O Oriente não, é o caminho para dentro.
Como diz um dos místicos do Sri Lanka, que o caminho para dentro é tão perigoso como o caminho para fora. É tão arriscado como ir à Lua, à Marte, às galáxias mais distantes, porque podemos nos perder, podemos nos equivocar. Então toda a mística oriental procura criar um centro com tal força e vigor, que catalisa toda a realidade ao redor e refaz a percepção da totalidade, e você se move nessa totalidade como na sua casa, com profunda serenidade, sem nenhum medo, porque nada pode ameaçá-lo, porque tudo está envolto no entorno desse centro poderoso, conseguido pela meditação, pelo desprendimento e pelo caminho ético extremamente coerente.
Essas duas experiências construíram os edifícios históricos do budismo, do hinduísmo, das religiões do Tao, seja no Japão, seja na Coreia, que são formas culturais de traduzir essa experiência, e como no cristianismo, ou no Ocidente, produziu-se muitas instituições religiosas atrás das quais está uma experiência religiosa.
Seria interessantíssimo, mas nós não temos tempo para isso, analisar essa grande experiência espiritual que está por detrás das religiões afrobrasileiras, que são experiências profundamente ecológicas e que se dão conta que o axé é como nosso Espírito Santo, é energia cósmica que prevalece por todo o universo e se concentra no ser humano. Fundamentalmente mais na mulher do que no homem. E, por isso, faz com que toda realidade seja viva.
E o Exu não é aquele demônio que nós devemos expulsar; é o portador, por excelência, do axé, da energia universal, que atua dentro de nós como força de irradiação, com abertura para captar mais energias e colocá-las a serviço dos demais. Seria longo o caminho e não quero entrar por ele.
O que quero dizer é o seguinte, para retornar ao nosso tema: que nós falamos de espiritualidade quando mergulhamos nessa profundidade e experimentamos essa realidade. Espiritualidade tem a ver com experiência e não com doutrina, não com dogmas, não com ritos, não com celebrações.
Podem esses caminhos institucionais até nos ajudar na espiritualidade, e grandioso é quando a religião consegue canalizar a experiência espiritual e beber continuamente da sua fonte. Então uma religião que guarda a sua altura, a sua reverência, a sua grandeza, não manipula os seres humanos, nem os aterroriza nas suas consciências, nem os prende na trama dos seus dogmas, mas entende tudo isso como acenos sobre o mistério, como indicações sobre o inefável, e só está contente quando leva o ser humano a mergulhar nessa realidade e não prendê-lo nas suas instituições.
Nós vemos isso de forma paradigmática e exemplar no livro de Jó. São quarenta e dois capítulos em que Jó começa brigando com sua mulher, depois com seus quatros amigos, depois com todo mundo que se acerca e, no fim, ele se enfrenta com Deus. E Deus aceita o desafio e diz: vem cá, já que você quer litigar comigo, vamos litigar. Porque é a suprema arrogância de Jó e a suprema dignidade nossa, nós não queremos brigas pequenas, mas com Deus mesmo. Por isso os Salmos estão cheios de lamentações, blasfêmias, gritos com Deus e louvações, essa é a experiência do sagrado.
Então Deus desafia Jó a dialogar com ele, e Deus começa grande, e diz: onde você estava Jó quando eu criei o universo? Joguei as estrelas, coloquei as montanhas, criei os mares com seus monstros, onde você estava? E Jó fica cada vez menor e diz: sou tão pequeno, não quero litigar, não digo mais nenhuma palavra. E Deus continua descrevendo os grandes monstros, os crocodilos, contando a história de Israel e sempre desafiando Jó, onde você estava? E até que Jó se cala e diz: agora não falo mais. E termina o capitulo quarenta e dois, que é quase o fim do livro, dizendo: agora eu sei de Deus, não por ouvir dizer, não por que os catecismos disseram, as pessoas religiosas contaram, as instituições transmitiram, eu sei de Deus porque meus olhos o viram, porque eu experimentei Deus, agora eu sei Deus.
Então, o que nós todos queremos não são pessoas como eu aqui falando sobre Deus. Estamos cansados de teologias, livros – eu mesmo já escrevi muitos. Nós estamos cansados de encíclicas, discursos e pessoas que falam sobre Deus. Nós queremos encontrar pessoas que falam a partir de Deus, que falam a Deus.
Certa vez fui pregar num retiro espiritual para bispos e fiz um círculo para que cada um falasse como rezava, e cada um fazia um discurso sobre a oração. Até que chegou a vez de Pedro Casaldáliga, que é um místico e fez uma belíssima oração. Ele não falou sobre a oração, ele fez uma oração começando com o universo e a grandiosidade de Deus, a proximidade de Deus junto aos pobres e a indignação contra a injustiça. Essa é uma experiência de um místico que não fala sobre a oração, mas ele reza, ele fala a Deus, não expõe doutrinas sobre Deus. Desses seres nós temos fome e sede, e é por isso que quando surgem eles atraem multidões, porque são pessoas seminais, que funcionam como sementes, que alimentam nosso chão e despertam em nós essa dimensão do profundo.
A dimensão espiritual é essa dimensão que vai para além dos nossos interesses de trabalho, para além da competição que nossas profissões nos obrigam, que vai para além da luta cotidiana para ganharmos nosso pão. A espiritualidade vive da gratuidade, da disponibilidade e da capacidade de enternecimento, de compaixão, de escuta da mensagem que vem da realidade, portanto, uma relação não de posse das coisas, mas de contemplação com as coisas.
Quando estamos diante do mar e daquelas ondas grandiosas, nós não vemos o mar, vemos a majestade, a imponência. Ou, se nós estamos lá no alto do Corcovado, vemos a beleza, é mais do que a pedra. A pedra e o mar têm mensagens, falam a nós. E se nos vergamos sobre uma criança recém-nascida, nos enchemos de enternecimento diante do mistério da vida e do brilho do seu olhar. E quando encontramos uma pessoa sábia, apesar de sem cultura, nós nos enchemos também de reverência, de respeito, e queremos escutar essa pessoa.
Então desenvolver essa capacidade é desenvolver a nossa capacidade de contemplação, de escuta das mensagens e dos valores. Então não existem só coisas e não existem só fatos; existe irradiação nas coisas, existe o sentido que vem a partir dos fatos. Mesmo as crises mais profundas que passamos, quando perdemos um ente querido e entramos em profunda crise, se destruímos nosso matrimônio, se perdemos um filho na droga, e podemos perguntar qual é o significado que vem disso tudo para mim? Não basta chamar o psicólogo e nem o médico. Não basta tomar um remédio e dormir horas e horas. Nós devemos confrontar e perguntar que sentido mais profundo essa realidade traz para mim, que pode me fazer crescer, e especialmente naquelas situações quando não se tem mais nada o que fazer.
Em momentos assim é fundamental a espiritualidade, de poder sentir a temporalidade das coisas, a usura do tempo, e que nós não vivemos apenas por que não morremos, mas porque a vida é um desafio para crescer, para aceitar nossas canseiras, nossos limites, nosso envelhecimento. E que vamos passando pela vida e preparando um grande encontro, o grande mergulho na realidade suprema de Deus. E nos habituarmos a esse encontro, a essa amorosidade e enamoramento com Deus.
É importante encontrar pessoas assim, para as quais Deus é uma experiência de pele. E me desculpem se conto a experiência de minha mãe que era analfabeta e nunca quis aprender a ler. Um dia trouxe-lhe de presente um caderno e um lápis bento pelo Papa Paulo VI. Jogou tudo longe e disse: “Para quê? Eu tenho onze filhos que fizeram universidade, quase todos se doutoraram, para que eu quero aprender a ler e a escrever? Eles sabem para mim”.
Mas ela era uma mulher de uma grande sabedoria existencial e uma profunda piedade. E eu costumava gravar coisas minhas para ela escutar, e ela dizia: “onde você aprendeu tudo isso? Eu nunca te ensinei”.
Em uma dessas gravações, em que eu falava da experiência de Deus, ela me olhou e disse: “você já viu Deus”?
E respondi: “Minha mãe, a gente não vê Deus. Deus é espírito, Deus é invisível”.
Ela deu como que um suspiro, colocando a mão no peito, me olhou com infinita tristeza e disse: “Você tantos anos padre e nunca viu Deus!” E continuou: “Você não vê Deus e eu vejo todos os dias. Quando o sol se põe ele passa com um manto fantástico, lindo. Ele vem sempre sério e teu pai, que já faleceu, vem atrás, olha para mim, dá um sorriso e vai junto com Deus. Eu o vejo todos os dias”.
Bom, eu fiquei parado e disse, quem é o teólogo aqui? É ela ou eu? Então, há pessoas que têm essas experiências e nós temos que aprender que a fé é uma experiência tão global, que entra nos olhos, no coração, na fantasia e nas projeções. Deus é substância da sua própria substância. Essas pessoas não creem em Deus porque sabem de Deus, experimentam Deus.
Para finalizar queria enfatizar o seguinte: que a espiritualidade não é monopólio das religiões e nem dos caminhos espirituais codificados, que a espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano, cada um de nós tem uma dimensão espiritual, cada ser humano tem a dimensão do amor, da sensibilidade, da responsabilidade, do cuidado, a percepção de valores para os quais vale sacrificar a vida para defender um filho ou a pessoa amada. E se a pessoa não faz isso, mesmo que ninguém a culpe, estará sempre fugindo da sua própria consciência.
Toda pessoa escuta uma voz, uma mensagem que vem do universo, de toda a realidade, e se pergunta o que se esconde atrás das estrelas. Nos nossos escritórios, nos nossos gabinetes de trabalho, nós podemos ser cínicos, podemos acreditar em qualquer coisa, e desacreditar de qualquer coisa. Nós não podemos desprezar a aurora que vem, não podemos odiar o olhar inocente de uma criança que nasce. Não podemos ser indiferentes frente à profundidade do céu estrelado sem cair no silêncio e na profunda reverência, e se perguntar o que se esconde atrás das estelas, qual é o caminho da minha vida, o que posso esperar depois da minha vida estar tão cansada e longa, o que me espera.
O ser humano se coloca sempre essas questões. Elas estão sempre na agenda de cada pessoa. Quando nos colocamos tais questões, nos revelamos seres espirituais e quando nos abrimos a escutar essas mensagens, orientar nossa vida para que isso produza leveza, irradiação, humanidade, aí exercemos a nossa dimensão espiritual.
Quero ler um texto de uns dos grandes conhecedores, junto com Freud, da psique humana, que foi Carl Jung. Ele deu muita importância à religião no processo de individuação porque a religião trabalha com a mística e espiritualidade trabalha grandes sonhos, projeta grandes esperanças e aí diz Jung: “Em todos os meus clientes, na segunda metade da vida, isto é, tendo mais de trinta e cinco anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão da sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por terem perdido aquilo que uma religião viva sempre deu em todos os tempos aos seus seguidores, e nenhum ancorou-se realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto está claro, independente de uma adesão a um credo particular ou tornar-se membro de uma igreja, mas tem que integrar a sua dimensão espiritual”.
Creio que isso é profundamente verdadeiro. Nós estamos acostumados a analisar nossos problemas financeiramente, psicologicamente, juridicamente, Penso que devemos analisar nossos problemas também espiritualmente. Muitas das nossas angústias, das nossas doenças, vêm por uma dimensão espiritual não desenvolvida, ou anêmica, ou distorcida, ou totalmente ocultada. Então há dentro de nós uma chama sagrada, mesmo nessa cultura coberta de cinzas, de consumo, da busca de bens materiais, de uma vida distraída das coisas essenciais.
Devemos tirar essas cinzas e despertar a chama sagrada. Talvez esse seja o significado maior da festa que dentro de pouco tempo celebramos, que é a festa do Natal, que o espírito do Natal, exatamente oposto ao espírito dominante na cultura contemporânea, que é um espírito marcado pelo mercado, pelo consumo, pela compra, pelo negócio, pelo interesse e pela mercadoria.
O Natal vive da gratuidade, da singeleza, vive da doação, o dom, um fazer presente ao outro, vive da alegria de ver uma vida nascendo, e não pode haver tristeza quando nasce a vida. E saber que essa criança, divina e infante que está aí somos nós fundamentalmente, porque é uma dimensão de criança que nunca se perdeu, e que mesmo para além da idade adulta ela está aí reclamando seus direitos, que é de entender a vida também como algo lúdico, leve, algo que vale por ele mesmo. Pouco importa os interesses que nós investimos na nossa vida, que a vida valha por ela mesma, porque é um valor absoluto.
O Natal quer ressuscitar essa dimensão espiritual no ser humano e dizer que é nessa atmosfera que Deus também se acercou a nós, não veio como um César poderoso, nem como um sumo sacerdote no auge da sua santidade, mas se acercou na forma de uma criança pobre, que nasce no subúrbio, no meio de animais, para que ninguém se sentisse distante dele, e que todos pudessem ter o sentimento de ternura para com a criança que nós carregamos no colo, e nos vergamos sobre ela maravilhados, pois esse é o caminho que Deus escolheu para acercar-se de nós, para poder caminhar conosco. Talvez seja um Deus que não nos explique por que o mal existe no mundo, mas ele sofre junto, que não nos dê as razões de tanto trabalho para tão pouca felicidade, mas ele trabalha junto, é carpinteiro, isto é, não deixa de assumir nada do que seja radicalmente humano.
Assim é que encontramos Deus dentro de nós. Não precisamos buscá-lo aqui e ali, mas na nossa interioridade, porque aí ele penetrou e nunca mais saiu, nos fazendo filhos e filhas, e depois ele vem e toma o que é Dele e leva para o seu reino. Nos leva cada um para a sua casa, porque nós pertencemos à casa Dele. Esse para mim é o significado maior da encarnação e do mistério, do Natal que nós celebramos, que é um dos pontos altos da espiritualidade cristã. Que mesmo dentro de um mundo altamente conflitivo, ameaçado por diversos fatores, podemos quase fazer um intervalo e dizer: agora não, agora vamos festejar, vamos comer, vamos ser todos irmãos e irmãs, vamos acender a luz na convicção de que a luz tem mais direito que todas as trevas. Então se nós reservarmos um pouco de espaço em nossas vidas para essa espiritualidade, ela vai se transformar de uma brasa em uma chama, e dessa chama em um grande fogo interior que produz e irradia calor e nos dá mil razões para vivermos como seres humanos que caminham serenos na direção da fonte de toda a espiritualidade, que é fonte de espírito, de vida, de grandiosidade e de absoluta realização.
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*Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff (Concórdia, 14 de dezembro de 1938), é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário.