6 Lições para a filosofia de Nietzsche – parte 5
Zaratustra é o personagem antiniilista, um salvador da vontade, que restituirá ao mundo sua fidelidade. Nem pastor, nem coveiro, nem político. Zaratustra é aquele que se une aos que criam, aos que colhem e aos que festejam (1998, I, 9, p. 48). O homem das promessas, a soberania da lei, a alma cheia de remorsos, o espírito de vingança, o deus santo, terão desaparecido no futuro que ele anuncia e então o mundo voltará a viver na inocência.
Zaratustra é o convalescente, isto é, aquele que junta as suas forças para o retorno à casa, ao lar. Pensadores como Heidegger e Foucault, a partir de Nietzsche, voltam aos gregos, porque estes se preocuparam em produzir uma estética da existência, isto é, se preocuparam em produzir uma vida bela e uma vida livre e o homem só constituiria sua liberdade se realizar o campo de batalha entre as forças ativas e reativas. É preciso pensar a vida sem que ela seja culpada ou responsável, mas sim inocente. Como diz Nietzsche,
ninguém é responsável por existir, por estar constituído de tal ou tal maneira, por se encontrar nestas circunstâncias e neste meio. A fatalidade do seu ser não deve divorciar-se da fatalidade de tudo o que foi e será. Ninguém é a consequência de uma intenção própria, de uma vontade, de uma finalidade; com ninguém se deve fazer a tentativa de atingir um ‘ideal de homem’ ou um ‘ideal de felicidade’ ou um ‘ideal de moralidade’ – é absurdo querer deslocar o seu ser para qualquer fim (1988, p. 53. Grifo do autor).
O objetivo da filosofia de Nietzsche é libertar o pensamento do niilismo e de suas formas, o que implica uma transmutação. No ideal kantiano a vida humana tem que ser sacrificada em nome do progresso e da paz perpétua, mas no pensamento de Nietzsche o homem não é mais suficiente: ele deve ser conduzido para além de si mesmo.
A filosofia de Nietzsche é um convite a viver de modo que nem os arrependimentos nem os remorsos tenham nenhum espaço, nenhum sentido. A doutrina do amor fati (amor ao destino ou amor do que é no presente) leva o homem a fugir do peso do passado, assim como das promessas do futuro. Nada desejar além do que é, viver amando tudo o que existe. É preciso se liberar tanto dos remorsos dos fatos passados quanto da hesitação em face do futuro, pois só assim se pode ser sereno.
Em Nietzsche o pensamento afirma a vida e a vontade de vida e expulsa todo o negativo. Ele diz ser preciso uma nova interpretação da existência em que ela não é nem culpada nem responsável, mas sim inocente. O pensamento tem que deixar de ser uma ratio e a vida tem que deixar de ser uma reação (DELEUZE, s/d, p. 153).
Zaratustra será, pois, o anunciador do super-homem. Diz ele: “eu caminho entre os homens como entre fragmentos do futuro: daquele futuro que descortino” (1998, II, p. 172).
6.1 As três metamorfoses
Em Assim falou Zaratustra Nietzsche apresenta o discurso de Zaratustra sobre as três metamorfoses: de como o espírito se torna camelo, leão e criança (1998a, p. 51-53). O espírito da suportação, da carga pesada, aquele que perde as suas forças, é o camelo. Ele se ajoelha para receber ainda maiores cargas e alegremente suporta o que o torna cada vez mais fraco e mais curvado frente às verdades do mundo, marchando pelo deserto. O camelo significa a submissão, aquele que se inclina – seja ante à onipotência de Deus, seja ante à submissão da lei moral, aquele que guarda grande respeito, que carrega o fardo de toda fraqueza produzida pelo niilismo. O espírito do camelo é o espírito do homem que está sob o peso da transcendência. Ele é aquele que segue o mandamento do “Tu deves!”.
A segunda metamorfose do espírito é o leão: aquele que quer conquistar o direito de ser senhor do seu próprio deserto. Ele diz não à submissão do camelo, lutando contra o idealismo e se crê livre. Há no leão uma recusa de pensar a vida pelas imposições dos antigos e veneráveis valores. Mas para Nietzsche essa ainda não é a verdadeira liberdade, mas antes uma liberdade negativa, ainda uma reatividade. Este espírito ainda não está diante de uma filosofia criadora, de criação de novos valores (isso o leão ainda não pode fazer).
A criança é a terceira metamorfose do espírito, depois do camelo e do leão. A criança é o esquecimento, o novo começo, um sagrado dizer sim, necessário ao jogo da criação, ao múltiplo. Diz Deleuze: “A inocência é a verdade do múltiplo” (s/d, p. 37).
A criança pode expressar verdadeiramente um novo começo e o afirmativo dizer sim. É o homem que se aventura em novas conquistas e novas interpretações, que renova todos os critérios, estabelecendo uma existência sempre nova.
7 O super-homem
O super-homem que Zaratustra anuncia não é nem uma superdimensionalização do homem nem um descarte do humano, mas é aquele que vai além do homem vigente para trazer o homem para a sua essência ainda pendente, para o seu porvir.
O super-homem não é uma mera ampliação do homem até aqui. Sua essência é ir além do homem que até então existiu, porque este precisa de ideais e idealizações que pairam acima dele. O super-homem já não precisa desse “sobre” (HEIDEGGER, 2007b, p. 93).
O homem é, aos olhos do super-homem, nada mais do que um macaco – um motivo de riso ou dolorosa vergonha (1998, I, 3, p. 36). Macaco é o homem do Estado que vive no reino da mentira e da rapinagem. “Nele tudo é falso. Morde com os dentes roubados, esse mordedor; falsas são, até, suas entranhas”. O Estado, de modo ardiloso, inventou a morte apregoada de vida, “o lugar onde o lento suicídio de todos chama-se ‘vida’!”. É o reino dos macacos: os homens que sobem uns por cima dos outros e que querem devorar a si próprios, sem contudo ter meios, sequer, para digerir. Todos querem subir no trono como se ali estivesse sentada a felicidade. Esses seres supérfluos que louvam a sua pequena pobreza exalam mal cheiro e sufocam aqueles que ali permanecem ao invés de buscarem ar puro (1998, I, p. 75-77).
Quando o homem enunciou a morte de Deus, na modernidade, ele acredita livrar-se do niilismo. Ocorre que ele toma para si o fardo da morte de Deus e se assume como seu novo substituto, o que significa dizer que por mais significativo que tenha sido esse acontecimento da história do homem, ele marca ainda um novo niilismo. A reatividade mantém-se como ideal e triunfa agora pelos valores do homem. E é aí que aparece o homem da sanguessuga, o que substitui os valores divinos, religiosos e mesmo os morais pelo conhecimento. O conhecimento científico, exato, incisivo substituirá a crença nos maiores valores. O conhecimento é a própria sanguessuga, pois toma o lugar da moral e da religião para fazer o mesmo papel: mutilar e julgar a vida (DELEUZE, 1990, p. 38).
É por isso que o super-homem marca a hora do grande desprezo, desprezo à condição humana de miséria, sujeira e mesquinha satisfação. Depois da morte de Deus o homem superior se tornou o senhor, mas Nietzsche que superar toda e qualquer forma homem. Ele não anseia pelo homem (seja esse o próximo, o mais pobre o mais sofredor ou o melhor), mas pelo super-homem.
7.1 Os homens superiores
Os que aprenderam a passar sem Deus ou mesmo a valer por Deus, os substitutos de Deus, serão chamados por Nietzsche de homens superiores, aqueles que só são capazes do sim asnático. Estes homens estão próximos do bobo ou macaco, a caricatura de Zaratustra, pertencem plenamente ao niilismo.
Os homens superiores são os reis, os sacerdotes, o espírito consciencioso, o burro. Todos homens de grande anseio, de grande náusea e de grande tédio (1998, IV, p. 329). Homens que só sabem viver se têm esperança. Tais homens, para Nietzsche, não são suficientemente elevados e fortes e, portanto, não servem à sua guerra. São camelos: possuem fardos demais, recordações demais – há anões empoleirados nos desvãos de suas almas.
7.2 O último homem
Na saída dos homens superiores está o último homem, aquele para quem tudo é vão, que deseja a morte e que prefere um nada de vontade a uma vontade de nada. Aqui nada é bom (Deus morreu e dá-se uma negação de qualquer vontade – já não existe vontade; ele não se atreve a nada, não realiza nenhum projeto. O último homem é o anunciador do grande cansaço, que diz que nada vale a pena, que o mundo não tem sentido; é o homem das lamúrias, o profeta do mau agouro. O último homem é aquele que tudo apequena e o que tem a vida mais longa (1998, I, 5, p. 41). Diz Heidegger: “o último homem é o homem da ‘felicidade mediana’, o homem que tudo conhece e empreende com a maior esperteza, mas que torna todas as coisas, com isso, inofensivas e medianas, que simplifica todas as coisas em geral. Em torno deste último homem, todas as coisas se tornam a cada dia, menores” (2007a, p. 220). Daí Nietzsche sentenciar que o que há de mais desprezível é o último homem (1998a, I, 5).
O último homem é o homem do niilismo passivo, no qual se extinguiu toda a potência criadora do ser humano. Ele não faz outra coisa senão vegetar; em sua alma já não arde a chama do entusiasmo. Diz Fink que este último homem é o retrato do homem moderno, o homem se pode reconhecer em cada um de nós.
Com uma mordacidade corrosiva desenhou Nietzsche a imagem de nossa vida moderna: o último homem somos nós, todos nós, que no domingo cremos em Deus, que fazemos uso das diversões massivas, do tempo livre organizado por outros, para não sermos devorados pelo horroroso aborrecimento de uma vida que não quer nada, que no fundo quer ‘o nada’ (1994, p. 78)
As forças reativas tornam-se vontade de negar a própria vida reativa e inspira no homem o desejo de destruição. Eis o homem que quer morrer, eis a meia-noite, quando tudo se apronta para a transmutação. Diz Deleuze:
foi preciso ir até o último dos homens, depois até o homem que quer morrer, para que a negação, voltando-se por fim contra as forças reativas, se torne ela própria uma ação e passe ao serviço de uma afirmação superior e onde surge a fórmula de Nietzsche: o niilismo vencido, mas vencido por ele próprio…) (1990, p. 28).
A transmutação implica e produz o super-homem, dado que a essência humana é marcada pela reatividade e pela combinação das suas forças com o niilismo. “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo (1998, I, 4, p. 38). Ou seja, o homem é uma ponte, uma transição, uma necessidade para se chegar ao super-homem. Nietzsche não cansa de afirmar a sua importância enquanto passagem, mas sempre há o perigo de tremer diante do abismo, parar e não fazer a travessia, afeiçoando-se aos modos caricatos – ao macaco. Aquele que não despreza a si mesmo, que não quer o seu próprio ocaso, que não esquece de si mesmo, que não transborda, não está preparado para a transvaloração.
Diz Nietzsche:
“e o grande meio-dia será quando o homem se achar na metade de sua trajetória entre o animal e o super-homem e festejará seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança: porque será o caminho de uma nova manhã” (1998, I, p. 106). Ou seja, o homem será o ancestral do super-homem, aquele que deve ser superado, uma vez que a história humana é a história da vergonha, da pouca alegria, do permanente sofrimento.
O super-homem é a forma superior da afirmação, aquele que converte a negação em afirmação, o que pressupõe uma transformação na essência humana. Diz Fink: “Quanto mais próximo do super-homem está uma existência, tanto mais longe se encontra do meramente atual e presente, tanto mais aberto está o abismo da luz” (1994, p. 110) – o homem aberto ao universo.
O super-homem é o herói trágico, porque é o homem do amor fati, aquele que ama a vida tal como ela é, pois segundo o filósofo, “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justificado” (NIETZSCHE, 1992b, 9, p. 69). Portanto, o super-homem é aquele que ultrapassa o homem, que vence os niilismos, encontrando outra forma de pensar e de viver.
É porque falta-nos criação, falta-nos resistência. A criação como resistência é um apelo por uma vida futura e invoca uma nova terra e um novo povo que ainda não existe. Diz Deleuze: “o artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo, com todas as suas forças… Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento, que faz pressentir o advento de um povo. Eles têm em comum resistir, resistir à morte, à servidão, ao intolerável, à vergonha, ao presente” (1992, p. 142). A filosofia e a arte vão se juntar nesse ponto: na constituição de uma terra e de um povo ausentes, como correlato da criação, como invenção de novos modos de vida.
Pode-se sempre perguntar: e se nada disso for possível? Como diz Ulpiano, que pelo menos reste uma vergonha em todos nós. Deleuze diz que o sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos em filosofia porque não experimentamos a vergonha ser humano apenas em situações extremas (como as que Primo Levi descreve), mas nas condições mais insignificantes – ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam todas as coisas, inclusive a democracia (1992, p. 140).
8 A reversão do niilismo
8.1 Ser e valor
Nietzsche vive no século XIX, o século do amadurecimento do positivismo científico, da experimentação como caminho infalível do critério de verdade. Mas ele aderiu à rigorosa abnegação desse positivismo que se contenta, como diz Andreas-Salomé, com o conhecimento racional que lhes é acessível (1992, p. 147). E por aí que ele chega ao valor de um modo de pensar inteiramente novo, a uma filosofia hostil ao niilismo da razão, da ciência e da vontade de verdade.
Em realidade, Nietzsche busca um novo começo em filosofia, diferente da tradição metafísica que, fundada na ideia de ser, impôs valores que atrofiaram, oprimiram e enfraqueceram o pensamento e a vida. Assim, Nietzsche troca a questão do ser pela questão do valor, ou, dito de melhor forma, a própria ideia de ser vai ser pensada como um valor.
É preciso esclarecer, contudo, que a filosofia do valor de Nietzsche não é uma filosofia da crítica dos valores, uma filosofia moral, de acusação da vida. A pergunta pelo valor é a pergunta pelas forças que constituiram uma ideia, uma verdade. Como uma ideia se produz? Qual o sentido de sua criação? Quais foram as condições de possibilidade de aparecimento desse discurso?
O pensamento nasce como uma expressão do valor, como criação de valor, como criação de uma imagem no mundo. Deus, o estado, o homem, são valores – não há realidade ontológica neles. E não há nada por trás dos valores.
Nunca uma coisa tem um só sentido. Cada coisa tem vários sentidos que exprimem as forças e o devir das forças que agem nela. E mais: não há “coisa”, mas somente interpretações, e a pluralidade de sentidos. Interpretações que se ocultam em outras, como máscaras encaixadas (DELEUZE, 2006, p. 156).
Essa é também a idéia de Zaratustra dançarino, ou seja, aquele que salta sobre os valores. Ao compreender que determinado discurso é um mero valor, ao compreender como esse valor foi produzido, é possível afirmá-lo e reafirmá-lo ou não. Antes de aceitar determinado pensamento como certo ou errado, como bem ou mal, é preciso colocá-lo numa anterioridade amoral, e dizer: o conhecimento é um valor, é uma invenção. Quando os valores se estabelecem, eles viram crenças, mas novos valores sempre são possíveis – a vida é uma potência infinita para produzir novos valores.
A questão é: esse valor ao qual você se filia te produz força ou fraqueza? Ele é um ímpeto de atividade ou de reatividade? Tal invenção serve a que propósitos? Permite que tipo de existência? Permite que conquistas ao pensamento? O pensamento deve partir de uma neutralidade inaugural, de uma inocência e ir em busca sempre daquilo que lhe dá maior potência.
A noção de valor em Nietzsche explode todos os valores estabelecidos ou reconhecidos, “para criar, num estado de criação permanente, coisas novas que se furtam a qualquer reconhecimento, a qualquer tentativa de torná-las estabelecidas” (DELEUZE, 2006, p. 176)
8.2 A reversão do platonismo
Nietzsche disse certa vez: “minha filosofia é um platonismo invertido: quanto mais afastado do verdadeiro ente, tanto mais puro, belo e melhor é. A vida na aparência como meta” (Fragmentos Póstumos I, IX apud HEIDEGGER, 2007a, p. 140). Ou seja, a tarefa da filosofia nietzscheana, a tarefa da filosofia do futuro é definida como a reversão do platonismo.
O platonismo é a doutrina dos dois mundos: o mundo verdadeiro que se contrapõe ao mundo do devir, sendo este pensado apenas como um mundo aparente. Duas realidades distintas são estabelecidas: o mundo terreno e mutável, o qual se conhece por meio dos sentidos (sempre enganosos) e acima deste, o mundo que o transcende, não se oferecendo pois à sensibilidade, onde reside a verdade e os modelos para tudo o que se pode conhecer, agir ou julgar. O supra-sensível estabelece os critérios de medida, sendo, desde a eternidade, unicamente normativo e com isso, desejável (HEIDEGGER, 2007a, p. 179).
A inversão do platonismo seria então, antes de tudo, a destruição do primado do supra sensível como ideal, isto é, a destruição da ideia de que o supra sensível é o lugar da verdade e o sensível o lugar da aparência. Mas atenção: essa inversão não é pra fazer do sensível o legítimo lugar da verdade, mas para aniquilar todo e qualquer possibilidade de pensamento que distinga dois mundos, que estabeleça idealidades e, portanto, que negue a vida que se apresenta. Em uma só palavra, aniquilar toda e qualquer perspectiva niilista.
O fim do niilismo é o colapso do domínio do supra-sensível e dos seus ideais emergentes. É o colapso da ideia de verdade como ideia dominante; o colapso da verdade como meta e inspiração para a vida. Nietzsche quer realizar o contramovimento, a reversão de tudo o que dominou até hoje na história do pensamento ocidental. Ele quer a libertação desses valores como valores supremos – uma aniquilação de toda submissão ao supra-sensível, não para que se coloque outros valores supremos substitutos, mas para que não haja mais valores supremos, ideais.
Nietzsche não quer dizer: não é a religião ou a moral os valores supremos! Existem outros! De forma alguma. Na realidade a religião e a moral são modos fundamentais de instauração e de imposição de valores supremos. Ou seja, não se trata de refutar determinados valores, mas de negar a própria instauração de valores supremos.
Quando se suprime o mundo verdadeiro, não é que reste apenas o mundo aparente. Desaparece propriamente a distinção entre mundo da essência e mundo da aparência. A qualidade de aparente deixa de fazer sentido e claro, a oposição deixa de fazer sentido. Algo só pode ser considerado aparente em oposição ao que é verdadeiro. Se se elimina o mundo ideal, a qualidade de aparente também desaparece. Como diz Nietzsche, o mundo verdadeiro se torna fábula (1988, 82-83; 2008a, 567-568).
Na unidade do ser orgânico há uma mutiplicidade de pulsões e capacidades que possuem, cada uma delas, sua perspectiva e que se acham em luta umas com as outras. Com uma tal pluralidade perde-se a univocidade da perspectiva única na qual o a cada vez realmente efetivo se encontra. A plurissignificância do que se mostra nas múltiplas perpectivas é dada, e, com isso também, o elemento indeterminado, aquilo que aparece ora desse, ora daquele modo, e que oferece, por conseguinte, ora essa, ora aquela aparência. No entanto, essa aparência só é um aparecer no sentido da mera semblância se o que se mostra em sua perpectiva se cristaliza e é fixado como o unicamente normativo em detrimento das outras perspectivas que alternadamente afluem (2007a, p. 189).
Tal inversão “não é certamente nenhuma virada mecânica, por meio da qual o mais baixo, o sensível, assume o lugar do mais alto, o supra-sensível, permanecendo os dois inalterados juntamente com as suas posições. A inversão é a transformação do mais baixo, do sensível, na ‘vida‘ no sentido da vontade de poder” (HEIDEGGER, 2007b, p. 9). Em outras palavras, suprime-se a oposição entre ser e devir, a oposição entre mundo verdadeiro e mundo aparente. Quando isso ocorre, o que resta? Resta o mundo como vontade de poder. “A inversão do platonismo se torna ‘transvaloração de todos os valores’… Agora não continua subsistindo senão a superfície única da ‘vida‘ que outorga o poder a si mesma em virtude de si mesma” (2007b, p. 14, grifo do autor).
Referências
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